Robaldo Luis de Meneses. O nome era bizarro, um misto em homenagem aos avôs Roberto Alves, pai de sua mãe, e Clodoaldo de Meneses, pai de seu pai. Embora o dia estivesse quente, ele ordenou que o almoço fosse feijoada, sua comida predileta. Em regozijo, continuava a comemorar – após a ausência de quatro anos no cenário político municipal – sua vitória quase unânime no último pleito eleitoral. Os concorrentes, ainda que tivessem maior integridade moral que ele, não gozavam de tamanha popularidade, conquistada na ação dissimulada de ajudar a classe pobre que o procurava nos momentos difíceis em sua modesta casa.
Depois de saborear tão suculenta refeição, eles tentavam dormir. O corpo suado e desabituado ao banho se enroscava na cama com duas jovens que tinham quase a metade de sua idade. Ele vestia uma camisa de colarinho, sem mangas, e bermuda. Elas cobriam as curvas com shorts minúsculos e mini-blusas que mal continham os seios em desabrocho. Ele rosnava, sonolento, buscando o aconchego de corpos tão viris. A cama, às vezes, rangia, suportando o peso da indecência que fervilhava naquela casa. Em verdade, eram três jovens que foram abandonadas pela família por se prostituírem, sendo a mais nova, recém-ingressa na maioridade. Todas viviam em concubinato com Robaldo. Indiferente ao divórcio e ao casal de filhos que gerou, ele enveredara por uma vida que oscilava entre a atividade política e a devassidão pessoal. Sua inclinação pela bebida e por mulheres muito mais jovens do que ele denotava evidente desequilíbrio e perversão, fato de que fora acusado pela oposição após o término do primeiro mandato na prefeitura. Mas nunca as ofensas e calúnias de natureza política lhe causaram algum abalo no estilo imoral e indigno de viver. Acreditava que ajudando os pobres, exercendo as obrigações triviais do cargo e mantendo-se, dentro do possível, longe de falcatruas e conchavos podia manter-se no exercício da política.
A terceira jovem abriu a porta do quarto em penumbras e disse:
- Robaldo, Robaldo, acorde! O “Seu” Felisberto está aí e quer falar contigo...
Ele resmungou alguma coisa e virou-se para o lado, expelindo gases intestinais enquanto apalpava o busto de uma das jovens. A atitude enojou a garota mais jovem. Quem o procurava era Felisberto Ferreira, um de seus assessores mais íntimos, parceiro fiel em falcatruas que ele já perpetrara em sua primeira passagem pela prefeitura. A garota se aproximou e sacudiu o amante, insistindo:
- Robaldo, Robaldo, acorde! Acorde! Ele quer falar contigo, disse que é urgente!
Um momento de silêncio e o dorminhoco respondeu, a voz em tom aparvalhado:
- O que ele quer?
- Não entendi muito bem, mas ele disse que é sobre a BioTrans.
BioTrans era uma das empresas de transporte coletivo credenciadas pela prefeitura.
O homem corpulento levantou-se num sobressalto.
- O quê?! O que você disse, menina?!
- “Seu” Felisberto disse que quer falar sobre a BioTrans.
Robaldo empurrou o corpo de uma das concubinas e sentou-se na beira da cama. Massageou os cabelos grisalhos da nuca e depois coçou a barba que sempre estava por fazer. Resmungou alguma coisa e calçou as sandálias de couro. Levantou com dificuldade e foi ao encontro de Felisberto, que o aguardava na varanda da casa. O corpo esquálido e coberto por um terno surrado, sem gravata, estava acomodado numa das cadeiras de vime. O assessor bebia um café requentado, servido momentos antes pela jovem que ficara encarregada de lavar a louça naquela tarde.
- Por que veio atrapalhar o meu sono? – perguntou Robaldo em desagrado.
O assessor se empertigou e, com um sorriso amarelado, repousou a xícara sobre a superfície de vidro da mesa.
- Estamos com problemas na prefeitura...
Robaldo expirou impaciente e disse:
- A prefeitura de São João do Vale sempre tem e sempre teve problemas, isso não é nenhuma novidade... e daí?
- Aquele nosso “colaborador” da BioTrans me procurou a pouco...
- E o que tem isso, homem?
- Ele disse que necessita de mais recursos... de mais recursos para seus negócios...
- O quê?! Aquele pilantra quer mais dinheiro?!
- Calma, senhor... ele disse que aquela contribuição não atendeu as necessidades, digamos, operacionais dos negócios.
O prefeito franziu o cenho e arrotou.
- Não me venha com esse palavreado de doutor, Felisberto, eu num entendo bem, fale em miúdos...
O assessor pigarreou e disse:
- Quero dizer que nosso colaborador quer mais dinheiro para ocultar nossas negociações e para... manter o silêncio... segundo ele, a diretoria da empresa está investigando possíveis desvios nas finanças...
- Que aquele pilantra mantenha a boca fechada! Para que a gente não tenha que fechar ela, entendeu?
O assessor abaixou a cabeça e, em seguida, levantou-a, fitando o patrão nos olhos.
- Não seria a melhor solução...
- Não me interessa qual seria a melhor solução, quero esse cara de boca fechada, entendeu?! Boca fechada!
- Tudo bem, tudo bem, mas o que eu faço?
Robaldo coçou os cabelos desgrenhados.
- Use a pasta preta, aquela que está no armário do quartinho lá na prefeitura... será que cinco mil acalma o sujeito?
- Para começar acredito que sim.
- Como para começar?! Esse patife está pensando que vou ser a aposentadoria dele enquanto eu estiver no mandato?! Acabo com a alegria dele!
- Calma, Robaldo, calma, eu acho que ele não vai ficar extorquindo dinheiro da gente... se continuar, mando aqueles rapazes “dar um medo” nele e logo ele fica calado, caladinho...
Naquele instante a campainha tocou. Robaldo olhou para frente e avistou três homens diante do portão de pedestres.
- Carina! – gritou Robaldo chamando a jovem que o acordara. – Carina! Vai ver quem está lá no portão!...
A garota passou correndo pela varanda. Seus quadris arrebitados atraíram o olhar sequioso do assessor.
- Quem deve ser?
- Que delícia – murmurou o assessor.
- O que você disse?
- Ahn? Nada, prefeito, nada... quando posso pegar o dinheiro?
- Agora mesmo... apanha a grana e entrega a ele no local de sempre, fora da cidade...
- Pode deixar.
A garota voltou correndo. Esbaforida, disse:
- É, é o delegado...
A natural tranquilidade do político evolou num piscar de olhos.
- Delegado?!
Robaldo contraiu as sobrancelhas.
- O que ele quer?
- Não sei... falou que quer falar contigo...
- M...! O que esse tira quer comigo?!
- Talvez nada demais – disse o assessor. – É bom recebê-lo.
- Mande ele entrar...
A garota dirigiu-se novamente para o portão. Pouco depois, retornou em companhia do delegado e dos policiais que o acompanhavam.
- Boa tarde prefeito.
- Boa tarde delegado – respondeu o prefeito em evidente desagrado. – O que você quer?
O delegado não respondeu. Retirou um envelope pardo do interior de uma pasta que carregava. Abriu o envelope e entregou um conjunto de fotografias ao prefeito.
- O que é isso?
- Olhe as fotografias, por favor – solicitou o delegado.
Robaldo passou a manuseá-las. Ele procurou ocultar, mas enquanto verificava cada uma delas o cenho porejava.
- O senhor reconhece essas imagens? – indagou o delegado.
O prefeito ficou calado. Verificou novamente as fotografias. Enquanto passava fotografia por fotografia, sua mente inculta retornou ao passado. A um passado obscuro, que ele mesmo desejava esquecer...
Durante um churrasco promovido semanas antes da eleição, numa fazenda afastada da cidade, Robaldo violentou uma jovem enquanto todos estavam bêbados. Ela fugiu pela mata e foi perseguida por ele, que a agarrou, terminando por estrangulá-la. O corpo macilento e ferido foi abandonado na mata. Um dos asseclas de Robaldo foi até o local e deslocou o cadáver para um ponto distante, na tentativa de eliminar evidências. Os restos mortais foram encontrados pela polícia dias depois da denúncia de seu desaparecimento.
- Por que está me mostrando estas fotos?
- Essa jovem desapareceu semanas atrás e o que restou de seu corpo foi encontrado recentemente nas proximidades de um riacho, fora da cidade...
- E o que eu tenho haver com isso?
- Na época em que ela desapareceu não tivemos indícios de seu paradeiro, nem mesmo a família sabia onde ela fora e como desapareceu... sabemos que o senhor realizou um churrasco numa fazenda, pouco antes de ser eleito, no qual convidou muitas pessoas, dentre elas, jovens meninas da cidade... essa garota era uma delas...
- Sim, convidei muitas pessoas, mas não lembro dessa garota... ela deve ter entrado escondida no churrasco...
- Acho que o prefeito devia forçar a memória... o senhor conheceu essa garota e muito bem...
- Como pode dizer isso? É mentira, eu não conheço essa garota... delegado, o que você está dizendo é calúnia.
- Calma Robaldo, calma – disse o assessor tentando acalmar o prefeito que era tomado por um rubor.
- O senhor violentou e matou essa garota durante o churrasco...
O prefeito se levantou e encarou, furioso, o delegado que se mantinha calmo.
- Como pode me acusar de um crime?! Ficou louco?! Daqui a pouco vai querer me prender! Esqueceu que eu tenho imunidade parlamentar?!
- Não, não esqueci – retrucou calmamente o delegado. – Posso afirmar baseado em evidências e eu tenho mais de uma.
O delegado retirou da pasta um envelope plástico que continha um cordão dourado. Naquele instante, Robaldo sentiu um calafrio percorrer-lhe as costas.
- Até o corpo da jovem ser encontrado não tínhamos nenhuma pista do paradeiro do assassino, mas este cordão foi encontrado em sua mão... segundo a perícia, ele foi arrancado pela vítima do pescoço do agressor enquanto ele a estrangulava... a garota manteve o medalhão preso em sua mão mesmo depois de morta...
O delegado abriu o pequeno medalhão retangular e o apresentou ao prefeito.
- O senhor reconhece essas fotografias? – indagou o delegado. – São seus filhos, correto?
Robaldo discretamente engoliu em seco.
- São seus filhos, prefeito, não são?
Robaldo fitou-o nos olhos.
- Certamente que são, pois eu procurei sua ex-esposa e ela afirmou que este cordão lhe foi dado de presente de aniversário há anos atrás... isto significa que ele é seu e que pelo fato de estar na mão da jovem encontrada não deixa dúvidas que foi o senhor que a matou.
- Isso é um absurdo, eu não matei essa garota, eu, eu perdi esse medalhão há muito tempo atrás...
- Creio que não, prefeito – disse o delegado retirando outro envelope da pasta. Ele retirou mais algumas fotografias do envelope e entregou-as ao prefeito.
- Essas fotografias foram tiradas durante o churrasco que o senhor promoveu na fazenda, antes da eleição, e na época que a garota desapareceu...
Robaldo passou a verificá-las. Suas mãos suavam e tremiam, apesar dele tentar mantê-las firmes.
- O senhor pode ver que numa delas está sem camisa, usando este cordão... e pelo que parece, no momento o senhor não usa o cordão... isto não nos deixa dúvidas que o senhor é o autor do crime.
- Tome suas fotos e vá embora, eu tenho imunidade parlamentar e...
- Um momento, prefeito, como o senhor cometeu o crime antes de sua diplomação como parlamentar, a lei determina que poderá ser processado sem autorização da Casa Legislativa...
- O que ele está falando Felisberto?
O assessor pigarreou antes de falar.
- Prefeito, infelizmente, o delegado quer dizer que ele pode agir sem autorização da Assembléia Legislativa na apuração crime.
- Fale claro, homem!
- O senhor está preso por assassinato, prefeito Robaldo Luis de Meneses – declarou o delegado. – Tenho aqui uma ordem de prisão expedida pelo senhor juiz da comarca de São João do Vale...
- Não! – bradou Robaldo arregalando os olhos injetados. – Não! Não!
Enfurecido, ele correu para dentro de casa. Surpresos com sua atitude, o delegado e os policiais passaram a perseguição. Antes de alcançá-lo, ouviram o grito de uma de suas concubinas. Em seguida, ecoou um estrondo vindo do quarto onde Robaldo dormia anteriormente. Eles correram, para logo se depararem com a cena dantesca de um homem esparramado sobre lençóis torcidos. O sangue espirrara de sua cabeça para a parede atrás da cabeceira da cama, criando uma grande mancha sanguinosa. O crânio se esfacelara e o sangue ainda jorrava, aos borbotões, sobre o lençol roto e sujo. Num canto, as jovens concubinas se abraçavam, aterrorizadas com o que presenciaram.
- Minha nossa! – exclamou um dos policiais. – O prefeito se matou!
O silêncio dominou o lugar, apenas rompido pelo soluçar das jovens em choque. O delegado se aproximou do corpo e, sem tocar em nada, verificou seu estado, para em seguida proferir:
- É... o fim dele não podia ser diferente... a morte é o salário do pecado – disse o delegado, meneando a cabeça. – Chamem a perícia e o carro do necrotério... o caso está resolvido.