Eu emagrecia lenta e progressivamente, sem dar conta disso. Todas as noites a sudorese umedecia o lençol, e depois o colchão, que passou a ter o cheiro do meu corpo que adelgaçava. Numa manhã eu percebi, mas o contínuo cansaço mascarou a imundície. No transcurso da madrugada meu sono era interrompido, algumas vezes, pela tosse. A dor inusitada que mesmo leve percorria o peito, incomodava, restringia meus movimentos pelo medo. Sempre tive medo de dores no peito, talvez pela morte de minha avó que nunca conheci e que minha mãe disse ter morrido de infarto. Creio que adquiri a enfermidade em alguma prosa com amigos, entre um cafezinho e outro. Talvez de um amigo que tossiu, espirrou ou na retórica de um falso erudito que lançou os bacilos no ar. Possivelmente inalei um ou mais germes que penetraram infaustos em meus pulmões. O diagnóstico demorou, porque posterguei a consulta. A tosse que persistia por semanas e a evolução da discreta anorexia me alertaram para o precipício que eu caminhava, contudo as desprezei. O trabalho e o prazer que ele me proporcionava dominavam minha atenção. Fora difícil fixar-me naquele emprego depois de peregrinações trabalhistas. Outros tinham melhores qualificações, todavia eu acreditava na minha vocação e no meu talento. A persistência da sensação de febre baixa, numa tarde deixou-me preocupado. A noite avançou e adormeci, achando que era apenas mal-estar decorrente de um longo dia de trabalho na redação. No dia seguinte, durante a higiene matinal, após lavar o rosto encovado escarrei na pia do banheiro. A nódoa densa e avermelhada me assustou. Algo estava errado. Fui ao médico e depois de alguns exames ele constatou que eu estava com tuberculose. Tentou não me assustar, mas era tarde. Disse-me que a desnutrição, o tabagismo e o consumo exagerado de álcool eram fatores que interferem na redução das defesas do organismo, aumentando a possibilidade do aparecimento da doença. Eu relatei que não fumava, procurava me alimentar bem e era avesso ao álcool. Então ele alegou que o uso exagerado de corticosteróides poderia aumentar o risco de formas graves da doença. Depois de tanta argumentação, a dor no peito aumentou. Efeito psicológico ou não, o sintoma se exacerbou. Receitadas as drogas, voltei ao trabalho. E não faltava trabalho na redação do jornal. O diretor me incumbira de uma reportagem laboriosa, além do artigo semanal o qual eu era responsável. Tentei ponderar, envergonhando-me de dizer que fora acometido por uma das principais doenças causadoras de altos índices de mortalidade no mundo. Mas faltaram-me argumentos. Não, faltou-me coragem. Se eu revelasse meu estado de saúde, com a pandemia de AIDS e sua associação com a tuberculose que ocorre atualmente, talvez o diretor ficasse repulsivo e certamente, no cafezinho, espalharia meu infortúnio. Pensariam que eu era um promíscuo, talvez até um homossexual enrustido. E aquela morena recém-admitida que eu observava sequiosamente, quando soubesse, eliminaria todas as minhas chances de dormir com ela. Quanta tormenta. Preferi ocultar tudo e segui no labor de minhas tarefas. Iniciei o tratamento, conhecido como quimioterapia de curta duração. O tratamento era para durar seis meses, o qual mesmo me sentindo melhor eu não deveria interromper. Mas traí a mim mesmo. A melhora repentina, a absorção causada pelos afazeres profissionais e a aventura amorosa que enveredei com a possante morena me fizeram esquecer o tratamento. Eu me sentia forte novamente, estimulado pelo sexo ardoroso que a morena me proporcionava e pela progressão positiva do trabalho. Minha amante abandonou-me depois de três semanas de peripécias na alcova. Foi transferida para outra filial para se tornar amante de um dos poderosos da diretoria do jornal. Frustrado, mergulhei mais ainda na reportagem que não havia concluído para tentar esquecê-la. Eu passava o dia quase sem comer, uma anorexia que considerei saudável, pois não me compelia a parar de trabalhar causando uma solução de continuidade. Numa noite, sob a luminária, digitando algumas páginas de minha empreitada, senti novamente a dor que deixara de existir no início do tratamento. Seria um mal-estar decorrente do excesso de trabalho. Toquei o cenho e tive a sensação de febre baixa. Achei que fosse cisma devido ao fim do relacionamento e da exaustão causada pelo contínuo trabalho. Passaram-se alguns dias e ressurgiu a tosse, que passou a atormentar-me mais do que nunca. Numa manhã, no instante que sentei na cama senti uma pontada no peito. Fiquei assustado. Minha mão trêmula tocou o lençol e percebi que estava úmido. Levantei-o e o meu cheiro se evolou do colchão. Deixei a cama e me dirigi para o banheiro. No percurso, notei a sensação de fraqueza. Iniciei minha higiene e percebi como estava magro. Magérrimo. Uma sensação de insegurança me dominou. Novamente algo estava errado.
A expressão do médico depois do meu relato de sintomas foi sarcástica e preocupante. Ele me disse que a interrupção da quimioterapia de curta duração permitia que muitos bacilos permanecessem vivos e escondidos em partes remotas dos pulmões. Franzi o cenho e um calafrio percorreu minha espinha, dos quadris a nuca, causando-me rigidez. Despótico, o médico esclareceu que os bacilos remanescentes possivelmente se tornaram mais fortes e mais agressivos, multiplicando-se rapidamente. Ele solicitou novos exames que não demorei a fazer. Os resultados chegariam dentro de alguns dias.
Voltei para casa, desolado. O apartamento se tornara menor. Suas paredes pareciam comprimir-se sobre mim. Meus sentidos se reduziam, causando-me a impressão que eu me extinguia. A água quente do chuveiro me relaxava os músculos, amenizando a tensão que adquiri no consultório do médico. Deixei os feixes úmidos atacarem minha nuca enrijecida por um longo tempo. Surgira uma dor de cabeça. Tossi algumas vezes e numa oportunidade cuspi no chão do box. O escarro apresentava manchas de sangue. Fiquei mais atemorizado. Com os cabelos ainda molhados e vestindo um robe, sentei-me numa das poltronas da sala. Meu olhar entibiado pairou sobre o teclado do computador. Meu entusiasmo e minha energia para trabalhar foram sequestrados para algum lugar e uma dor intestinal tomou-lhes o lugar. Com ela, surgiram intermitentes dores no peito. O médico não fora nada otimista em suas palavras. Dissera que a taxa de cura com a quimioterapia eram superiores a 95%, entretanto, eu fora acometido de uma reincidente e nessa situação a doença se agravava significativamente. Senti a dor no peito. Em seguida, tossi e sem que pudesse evitar uma golfada de escarro fugidio caiu no tapete. Medrei, medrei como nos tempos de garoto, naquelas situações em que pensei que ia morrer que não conseguiria tornar-me adulto e gozar das belezas e sabores da vida. Com a reincidência havia a possibilidade que eu engrossasse a porcentagem de mortalidade. Tentei não me desesperar, mas é possível alguém não se desesperar diante da possibilidade de morrer tão jovem? Eu estava com apenas trinta anos de idade e estava cheio de planos para o futuro. Pensei em beber um copo de leite. Quando levantei, tive a sensação de fraqueza, das pernas afrouxarem ante o movimento. Meus sentidos se extinguiam novamente e esta sensação era como se eu estivesse sendo apagado do mundo, como se a vida estivesse se esvaindo de dentro de mim. Passei a caminhar em direção a cozinha. O movimento das pernas era dificultoso e fraqueza se agravava. No instante que entrei na cozinha, tudo começou a girar. Tentei caminhar até a bancada, contudo desmoronei muito antes de alcançá-la. Meu corpo bateu no piso frio. Tudo ao redor girava. A dor no peito aumentava. Meu rosto se contraiu e lágrimas passaram a correr pelos cantos dos olhos. Eu queria gritar, pedir ajuda, entretanto minha voz era sufocada na garganta. Respirava com dificuldade e o ar parecia tornar-se mais rarefeito. Continuei tentando gritar e a minha visão se turvou.
Minhas pálpebras estavam cerradas e eu não conseguia erguê-las. Percebia meu corpo inerte, em repouso sobre uma cama fria. Minha respiração era precedida por um som mecânico que preenchia meus pulmões de ar. O som de vozes desconhecidas ao redor invadia meus ouvidos. Com dificuldade, identifiquei que uma delas pertencia ao médico que me assistia no tratamento da tuberculose.
- Não entendo o que houve...
- Ele é cardiopata?
- Não, não é...
- Então o que houve?
- Eu o tratava de uma tuberculose... executei o tratamento padrão, iniciando com a quimioterapia, mas ele não a cumpriu integralmente.
- Então ele é mais um daqueles que logo que se sentiu bem parou de tomar os remédios...
- Sim, mais um... e eu o avisei, recomendei que não parasse com os medicamentos, mas...
- É uma pena... um homem tão jovem, tão bonito...
Percebi que a segunda voz era doce, meiga, de uma mulher, provavelmente de uma médica.
- Ele acabou tendo uma reincidência e a doença se agravou... e muito...
- Também, com a saúde tão debilitada não é estranho essa parada cardíaca... pobre coitado, se escapar dessa...
- Se escapar...
Ouvi passos e as vozes foram se afastando, se afastando, até que desapareceram. O desespero me dominou. Eu queria me comunicar, avisar que não estava morto, que ainda havia chance para mim, que deveriam lutar para me salvar. Tentei gritar, mover minhas mãos, minhas pernas, no entanto nada respondia. Havia vontade, mas faltava energia. Um estado de desesperança tomou conta de mim. Eu quis chorar, mas não consegui. Momentos depois, os sons ao redor foram diminuindo de volume. Devagar, muito devagar. Fiquei novamente aflito. O que estaria acontecendo? O som dos aparelhos que me assistiam começou a reduzir-se. A luminosidade do ambiente, que eu percebia mesmo de olhos fechados, também foi diminuindo. Súbito, tive a impressão de cair, de ser arrebatado vertiginosamente para as profundezas escuras e a frialdade da imensidão me envolveu. A aflição se arrefeceu e um torpor me subjugou. Não havia porque gritar. Não havia mais porque chorar.