A bruma da manhã começava a ascender. A baixa temperatura impingia que as pessoas que se dirigiam para o trabalho, a pé ou em seus veículos, vestissem roupas mais pesadas, fato que não ocorria de forma generalizada. O baixo poder aquisitivo e a ausência de um expressivo mercado de trabalho, mesmo que informal, não gerava empregos na pequena cidade mineira. A maioria da população de São João del Rei andava desagasalhada devido à penúria em que estava inserida.
A 35ª Delegacia Regional de Segurança Pública localizava-se na avenida Leite de Castro, no número 1322. Em sua estruturada organizacional tinha um chefe geral, como delegado regional, tendo como subordinado a ele um delegado adjunto da Comarca. Subordinados a este existiam três delegados que acumulavam funções. Eles chefiavam as subdelegacias de Crime contra o Patrimônio, Repressão a Tóxicos, Furto de Veículos, Desvio de Cargas, Crimes contra a Pessoa, Crimes contra a Vida, Vigilância Geral, Trânsito e Acidentes, Medicina Legal (Setor de Polícia Técnica), Falsificações e Defraudações e Crimes contra a Mulher, sendo esta última exercida por uma mulher de quarenta anos. Ainda subordinados a estas subdelegacias figuravam a Chefe de Cartório, encarregado de remeter os processos para o Ministério Público, escrivões, auxiliares e o Inspetor de Detetives.
O delegado Herval chegou vestindo um casaco com a gola levantada devido ao frio da manhã. Embora fosse um homem carrancudo, enquanto se dirigia para sua sala, costumava cumprimentar a todos com cordialidade. Ele chefiava as subdelegacias de Repressão a Tóxicos, Crimes contra a Pessoa e Crimes contra a Vida. Sempre estava assoberbado de encargos e preocupações. Desde que assumiu a função, em decorrência do assassinato de seu antecessor, adotou uma sistemática de trabalho que logo apresentou bons resultados. A liberdade de ação conjugada com a severa coordenação das diligências era o princípio básico de seu trabalho. Esse modelo permitia que os detetives atuassem com ampla liberdade, apesar de suas ações serem controladas pelo inspetor Botelho, que mantinha o delegado informado do que acontecia.
Fumando com sofreguidão, Herval sentou-se em sua cadeira. A expressão manifesta em seu rosto era de uma noite insone. Era perceptível que algo o perturbava. O ponteiro maior do relógio da sala dos detetives passava das dez horas. Sua equipe entrou individualmente em sua sala e cada um sentou-se na cadeira que conduziu.
- O que vocês já levantaram? – perguntou o delegado.
Cada um dos presentes começou a abordar o que já havia levantado a respeito dos envolvidos no crime cometido na madrugada.
- O Alcides era divorciado e morava sozinho – disse o inspetor. – A ex-mulher não mora na cidade e reside em Lavras, com os dois filhos do casal...
- Ele tinha problemas com a mulher? – indagou o delegado enquanto acendia um cigarro.
- Segundo informações de um vizinho, que às vezes jogava uma sinuca com ele e bebia umas cervejas, ele não tinha plena liberdade para ver os filhos... a ex-mulher criava dificuldades para que os filhos passassem os finais de semana em companhia do pai – respondeu o inspetor consultando seu caderno de anotações.
O delegado tragou profundamente o cigarro.
- A ex-mulher era inimiga de Alcides?
- Que saibamos, não... a separação foi consensual e o Alcides mantinha a pensão em dia.
- Algum inimigo declarado?
- Não, delegado, ainda não sabemos – respondeu o inspetor.
- Quem era a garota assassinada? – indagou o delegado.
- Ela chamava-se Débora Dantas de Pessoa e era uma universitária – disse Macário. – E provavelmente residia numa república chamada Meninas das Geraes...
- Como você sabe disso? – indagou o delegado.
- Encontrei na bolsa da garota um convite para uma festa de universitárias...
- Eu revistei os pertences da garota e não vi esse convite – disse Castilho um tanto indignado por sua falta de observação.
- No convite tinha o nome da república – continuou Macário. – Deve ser o endereço onde residia a garota.
- A arma do crime? – perguntou o delegado.
- O assassino empregou uma nove milímetros... Alcides foi morto com seis tiros – disse Castilho.
Herval ficou pensativo.
- Algum indício de roubo, furto?
- Aparentemente não, não constatamos vestígios de arrombamento ou que alguém tenha forçado as portas ou janelas – disse o inspetor.
- Não temos um mero caso de roubo a residência... o crime tem característica de execução – disse o delegado.
Castilho encarou Herval e disse:
- O senhor acha que foi “queima de arquivo”?
- É possível, não temos informações de que o Alcides estivesse envolvido com o crime organizado ou com o tráfico de drogas.
Herval tragou seu cigarro e encarou Macário.
- Alguma idéia, Macário?
- O crime foi executado por gente experiente... talvez por algum profissional do crime.
- No que você se fundamenta? – perguntou o inspetor.
- A perícia me adiantou que não encontraram vestígios no local do crime.
- Além do vizinho do lado e da mulher que viu Alcides entrar com a garota, temos mais alguma testemunha ocular? – perguntou Herval.
- Os outros moradores estão sob a “lei do silêncio”... não querem falar nada sobre o crime, com medo de se envolver – disse Castilho.
- Estou vendo que não vai ser fácil resolver esse caso – disse o delegado. – Não temos um suspeito, mas apenas um vulto identificado como sendo o assassino, que foi visto pelo vizinho do lado, nada mais do que isso...
Herval tragou o cigarro nervosamente. O que os demais policiais presentes não perceberam foi notado por Macário. O delegado tentava ocultar sua veemente inquietação.
- Bom, quero vocês em campo – ordenou o delegado, apagando a guimba de cigarro no cinzeiro. – Macário e Castilho vão atrás de informações sobre a garota, quero saber o nível de envolvimento do Alcides com ela... Botelho, vasculhe a vida pregressa do Alcides e fique em contato com os legistas e a perícia, tente apressar os resultados... a morte misteriosa de um policial vai afetar a harmonia do pessoal da delegacia e não tenho dúvidas que teremos alguns problemas, mas acredito que poderei contorná-los... vamos trabalhar.
Todos saíram da sala do delegado. Os pensamentos de Macário convergiam para o assassinato de Alcides.
É evidente a preocupação do Herval... a morte do Alcides vai fortes reflexos aqui na delegacia e ele que administrar seus desdobramentos,afinal é para isso que ele é delegado... ele deve estar preocupado com a reação dos policiais... parece que não dormiu... acho que nenhum de nós deve ter retornado à cama...
Depois de entrar na sala dos detetives, dirigiu-se para a cafeteira elétrica que ficava numa pequena mesa. Castilho estava de cabeça baixa, folheando uma pasta repleta de documentos.
- Como está frio... você quer um café?
Castilho assentiu. Macário trouxe-lhe um copo descartável e deixou-o diante do colega, sentando-se numa cadeira que estava próxima. Do café fumegante ascendia uma coluna tênue de vapor.
- O delegado está com uma aparência horrível, parece que nem “pregou os olhos”– disse Macário.
- Também depois de uma noite dessas... ele deve estar preocupado com a reação do nosso pessoal, desde que chegou a notícia os policiais estão aos cochichos...
- Acho que a preocupação dele serão as reações negativas, tem gente que não aceita uma coisa dessas.
- É verdade.
Castilho bebeu um gole de café e acendeu um cigarro. No instante seguinte, o inspetor Botelho entrou na sala. Ele vestia um casaco de lá e friccionava as mãos na tentativa de aquecê-las.
- Como o dia amanheceu frio – disse o inspetor sentando-se numa cadeira.
- O senhor quer um café? Acabaram de passar... – disse Macário.
- Aceito.
O detetive levantou-se e foi servir Botelho.
- Não consigo acreditar no que aconteceu com o Alcides – declarou o inspetor. – Ontem mesmo ele estava trabalhando conosco e hoje está morto... é inacreditável.
Macário passou às mãos frias do inspetor o copo descartável. Ele bebeu um gole generoso e retirou do bolso do casaco um maço de cigarros.
- Se o Alcides estava envolvido com o tráfico, o senhor acha que o responsável pela morte dele foi alguém do CAF ou Comando do Araçá? – indagou Castilho.
Mecanicamente, o inspetor colocou um cigarro na boca e acendeu-o com um isqueiro descartável. Depois de uma longa tragada, ele respondeu:
- Eu pouco conhecia o Alcides... acho que precisamos saber com quem ele estava envolvido...
O inspetor voltou a friccionar as mãos.
- Acredito que isso não seja difícil de descobrir... teremos dificuldade em descobrir o porquê de sua morte – disse Macário bebendo um gole de café.
- Quem sabe de alguma coisa deve ser o Divério, era seu colega de trabalho e eles sempre andavam juntos – disse Castilho.
- A situação logo vai se complicar – disse o inspetor. – Percebi que já tem gente revoltada... como eu previa, o delegado vai enfrentar sérios problemas com os revoltados.
Macário levantou-se e encarou seu colega.
- Castilho, vamos andando...
- Aonde vocês vão? – indagou o inspetor.
- Vamos percorrer a cidade à procura da república onde a garota residia... o senhor tem algum palpite?
Botelho tragou o cigarro e disse:
- É como procurar uma agulha no palheiro... existem várias repúblicas na cidade, algumas tem o nome em cartazes na frente da casa ou no prédio onde se localizam... só posso desejar boa sorte para vocês...
- Obrigado, inspetor – disse Macário.
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