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"A literatura insinua e coloca questões muito mais do que as responde ou resolve."

-------------------Milton Hatoum, escritor brasileiro



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quinta-feira, 18 de março de 2010

O GLAMOUR DO CRIME

A beleza da vida está na paz, no amor, na alegria, na satisfação de realizar-se. Esta visão luminosa está ao longo dos anos desaparecendo. A violência tem se apresentado em nossas vidas em quase todos os momentos. E exemplos verídicos é que não faltam. O notório seqüestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro; a morte da pequena Isabela Nardoni, aparentemente perpetrada pelos pais; o assassinato da jovem Eloá em Santo André, causada por seu insano namorado, o jovem Lindemberg; o assassinato do cartunista Glauco, criador do famoso personagem “Geraldão”, e de seu filho, por um amigo do próprio filho; e tantas outras atrocidades não menos relevantes que deixaremos de no momento apresentar. Deparamo-nos com a violência na televisão, através dos noticiários; nos acidentes envolvendo veículos nas ruas e estradas; nos seqüestros hediondos; nos assassinatos, tiroteios e crimes retratados pelos jornais. A violência se tornou um fato banal, como o próprio povo pronuncia “faz parte” do nosso cotidiano tão turbulento. E põe turbulento nisso.

A violência, se podemos assim caracterizar, é o fluido que corre nas “veias” dessa entidade conhecida como crime. Cruel e impiedoso em sua essência, o crime transmuta as pessoas, sejam elas crianças, jovens, adultos ou velhos. Nossas crianças estão se tornando jovens brutais e, conseqüentemente, adultos violentos pela falta de valores. O crime está soterrando progressivamente os valores que tornam digna nossa sociedade. Integridade, honestidade, educação, correção de atitudes, respeito, cordialidade e tantos outros valores estão, há muito tempo, desaparecendo da esfera social. Hoje em dia é visto como “correto”, como camarada, aquele que perpetra um pequeno e ingênuo ato de corrupção aqui ou outro ali. Paradoxalmente ser criminoso passou a valer a pena. É uma forma de chegar ao estrelato. E porque tantas pessoas se entregam a “arte” do crime? Por que tantos jovens e adultos matam, roubam, seqüestram, comercializam drogas? Em tese, quando perdemos alguma coisa, outra deverá substituí-la. A natureza humana nos leva a isso. A sociedade perde a cada dia seus valores e eles estão sendo substituídos pelos valores do crime. Ser bandido, traficante, assassino, corrupto ou corruptor proporciona status, importância, brilho a sua personalidade. É prazeroso para o jovem ser venerado pelos colegas que, como ele, atuam no crime. É demonstração de poder e grandeza para o adulto transgredir violentamente e a justiça se quer tocá-lo, dando-lhe ainda destaque nos jornais televisivos. E porque o ser humano é seduzido a atuar no crime? Em todos os níveis e classes o crime seduz visceralmente o homem: proporciona-lhe emoção, prazer e poder. Estes são os valores do crime, que explodem na forma de adrenalina na mente e no espírito do ser humano, a mesma adrenalina que os esportes radicais trazem àqueles que possuem dinheiro para praticá-los.

Infelizmente, a mídia televisiva tem contribuído notadamente para a queda dos valores que me referi no parágrafo anterior. Ela enfoca o criminoso como alguém poderoso, intrépido, que possui muitos bens desejáveis por todos e que a Justiça, caso o tenha alcançado, logo o deixará escapar das grades, seja pela ação deturpada dos direitos humanos, seja pela própria fraqueza estrutural que a rege. Tornou-se comum vermos um assassino cruel frequentar a mesma passarela que personalidades do show business desfilam. Essa falsa valorização estampa-o como “um exemplo a ser seguido”. O criminoso não é mais visto como figura emblemática do mal, ícone da perversidade. Não se exige com rigor que ele seja retirado das ruas, punido e, se possível, reabilitado ao convívio social. Sua presença e atuação são encaradas como fato trivial, pois é considerado como mais um componente da sociedade. O inusitado glamour que o envolve permite que ele assim permaneça em nosso meio, contaminando irrestritamente todas as mentes que se deixam aliciar por sua natureza perniciosa. Aqueles que valorizam a vida em sua expressão mais pura e significativa devem se articular no sentido de uma sociedade mais íntegra, mais digna. Devem resgatar os valores supracitados e já tão esquecidos e fazer com que tornem a vigorar nos bancos escolares, nas ruas, no trânsito, nos supermercados, nos shopping centers e principalmente em nossos lares. A sociedade é a família num contexto mais amplo. Se minimizarmos a violência em nossos lares, através do diálogo, do carinho, da compreensão e da disciplina, certamente o crime perderá adeptos a sua causa.

quarta-feira, 17 de março de 2010

APENAS UMA FASE

Ansiedade. Ele vivia uma grande ansiedade. Esse grande mal-estar que assola a mente de qualquer ser humano. Levantou-se da cama e foi para a cozinha. Comer. Comendo era uma das formas que encontrava para saciar aquele desejo intenso que o perturbava. Haviam ficado uma vez sem fazer amor por vários dias e esse período fora o maior desde então. Em todas as outras oportunidades os períodos foram menores e isso não lhe consumia a tranquilidade. Entretanto, desta vez estava ficando fora de controle. Completariam vinte dias de abstinência e ele não suportava mais. Ela inicialmente alegou dores de cabeça; depois foram dores nas costas; depois uma diarréia intermitente, resultado da ingestão exagerada de salgadinhos; e, por último, o período menstrual que se alongara por quase dez dias.

Ele abriu a geladeira e retirou os ingredientes que necessitava. Alface, tomate, pepino, hambúrguer, maionese, mostarda, pão de forma e coca-cola. Queria estufar o estômago, talvez conseguisse diminuir a inquietude que o afligia. Sozinho, na friagem da apertada cozinha, passou a preparar três sanduíches, todos para ele. A mulher estava na cama, coberta por um edredom, somente de camiseta e calcinha, prostrada pelo mal-estar que alegava ser efeito do fim do período menstrual.

Enquanto suas mãos preparavam o lanche, a mente estava em alvoroço. A mulher de pouco mais de trinta anos de idade reclamava do corpo que tinha, possivelmente fosse este o motivo que arrefecia seu apetite sexual. Ele discordava. Ela reclamava do volume dos seios, alegando que estavam caídos, e que o bumbum estava cheio de celulite. Ele discordava. A mulher tinha um corpo muito desejável, pelas curvas que ele adorava acariciar e pela maciez que o excitava. Seu corpo exercia forte efeito sobre o desejo do marido, apesar dela não acreditar. Ele foi um homem ativo, esbelto, craque da pelada nos finais de semana, com uma apimentada pulsão sexual. Agora estava grisalho, um pouco mais gordo, mas sua pulsão parecia não arrefecer com o passar dos anos. Sempre que a observava sair do banho, a desfilar nua pelo quarto à procura de um creme ou uma calcinha, ele se intumescia. Quando casaram, faziam sexo cinco ou seis vezes por semana. Não foi a passagem, por duas vezes, pela maternidade que mudou o corpo da mulher e nem diminuiu a libido do marido. Ela perdeu os bebês. Mulher vaidosa conseguiu manter o corpo que tinha ainda antes de casar, após tantos anos, mas sentia-se insatisfeita com ele. Dizia gostar de sexo, algumas vezes, selvagem, embora o procurasse pouco para satisfazer seus desejos. E ele não entendia o porquê.

Eram as circunstâncias. A mulher era uma profissional exemplar no ambiente de trabalho: estilo superpreocupada com seus afazeres, ela trabalhava numa multinacional, na área de planejamentos e contratos. Exigia eficiência de seus subordinados e cobrava-se no mesmo patamar. Ela era admirada e... cobiçada pelos superiores. Quem seria o Adão que se deliciava com aquela Eva de saias justas e blusas que infundiam desejos? Numa oportunidade, comentara com ele que havia um pensamento no mercado de trabalho no sentido que as mulheres deviam apresentar melhores resultados que os homens, nas mesmas funções. Dizia-se injustiçada, como todas as mulheres com as quais comentava tal situação. Mas não era somente seu desempenho que era constantemente avaliado. A bela loira, de olhos verdes e simpático sorriso, tinha curvas desejadas pelo segmento masculino com o qual trabalhava. Surgiam insinuações pecaminosas, que ela fingia não entender, mantendo-se fiel ao homem que amava. Ele confiava nela, contudo, sentia ciúmes. Ocultava sua insatisfação com o exercício da profissão da mulher. Aceitava que ela trabalhasse fora de casa para atender necessidades que seu salário não tinha como suprir. E ela gostava de vestir-se elegantemente, de ser invejada pelas outras. Mas o trabalho da mulher trazia outra insatisfação. Em muitas oportunidades, quando chegava do trabalho, dizia-se exausta e com pouca disposição para o sexo, indo dormir logo após um breve bate-papo. Ele tentava conter-se, mas era inevitável esconder sua irritação.

Terminados os sanduíches, devorou-os num suspiro. Tentava recalcar a ansiedade que o afligia. Despejou a louça do lanche na pia da cozinha e voltou para cama. Ela dormia. O semblante contraído pela dor que sentia o comoveu. Ele entendia o estado que a mulher se encontrava, mas o desejo de possuí-la o inquietava. Vivia uma agonia há quatro longos dias. A mulher rolou na cama e parte do corpo ficou descoberta. Ela podia discordar, mas ele achava seu corpo atraente, sedutor. A calcinha se atrevia na divisão das nádegas e a imagem do bumbum excitou-o ainda mais. Ele queria invadir suas vergonhas, deleitar-se dentro dela, sentir a umidade que muito lhe aprazia. Ficou apreciando o corpo macio na penumbra do quarto mal iluminado. Tocou-lhe o cenho que parecia febril, mas que era apenas efeito da enxaqueca e das dores que ela reclamava. Abraçou-lhe o corpo aquecido. Passou a acariciar os cabelos desgrenhados e o rosto jovial. Ela balbuciava alguma coisa, de vez em quando, mas logo tornava a ficar quieta. Apesar de o desejo o afligir, ele tinha domínio de si. Lembrou-se dos infreqüentes, mas muito ardentes momentos na cama que ela lhe proporcionou tantas vezes. Eram casados há quase três décadas e ele sabia que ela o amava, profundamente. Pensou que aqueles momentos de recato sexual não se constituíam num ato deliberado ou desejo proposital. A lembrança de uma conversa com seu falecido pai levou-o a recordar que o casamento tem seus altos e baixos. Beijou-a nos lábios ressequidos e foi dormir.

quinta-feira, 11 de março de 2010

A MÃO QUE BALANÇA O BERÇO

O título do artigo reportaria a apenas uma boa produção cinematográfica hollywoodiana se não fosse uma experiência pessoal que vivenciei durante minhas férias. Entre um passeio e outro, pelas ruas largas e limpas de uma das mais belas cidades mineiras, não há como não nos deparamos com fatos que inevitavelmente mudam nossa forma de pensar, de ver a vida sob outra ótica, sob outro ângulo.

Numa manhã do período carnavalesco, na praça principal da cidade, existiam foliões desanimados em torno do coreto e vários transeuntes caminhando sob o sol que brilhava no firmamento. Alentado pelas mãos e palavras de minha musa AnaCris estávamos a caminhar pela praça, entrecortada por um riacho sinuoso, de torrentes onduladas e suaves, ladeado por árvores e plantas ornamentais. Num lado da praça podia-se contemplar um grande hotel, muito antigo e de arquitetura colonial, visitado por idosos em épocas remotas, à procura de repouso e cura para suas mazelas. No outro, um balneário de águas termais que se impunha por suas proporções e majestade, atualmente muito visitado por turistas, na busca de um banho revigorante e relaxador, devido às águas sulfurosas existentes no subsolo da região. Próximo do balneário destacava-se uma pequena ponte arqueada, de muretas metálicas azuis, que trazia ao ambiente uma sensação de nostalgia. Inegavelmente, o lugar era acolhedor e muito aprazível. No momento que andávamos nas proximidades da pequena ponte, nosso passeio foi interrompido por uma cena inusitada. Chamo de inusitada em nome daqueles que ainda acreditam no amor, sentimento tão carcomido e desacreditado pelas instituições e pessoas nos tempos atuais.

Um pomposo carrinho de bebê era empurrado, muito devagar, por uma babá impecavelmente uniformizada pela calçada de pedras contígua às margens do riacho. A serviçal apresentava fisionomia contraída e cansada, possivelmente por uma ou mais noites insones em decorrência de alguma indisposição digestiva da criança. Suas mãos seguravam firmemente o carrinho, como se o que ele abrigava fosse seu, criatura gerada por outro ser, mas que lhe foi outorgada a atenção e os cuidados superviventes. Ela parecia desinteressada pelo entorno, como se ele representasse mais um mero local visitado por seu corpo lasso. Em seu encalço, dois ou três passos atrás, caminhava uma jovem mulher, de tez pálida e aparência requintada. Suas vestes atestavam sua origem: pertencia a classe rica de alguma sociedade, talvez da própria cidade ou de alguma cidade paulista, do Estado vizinho. Ela caminhava vagarosamente, admirando a beleza da praça e de seus recantos. Embora um pouco distante da babá e do carrinho, sua atitude não deixava dúvidas de sua relação com a serviçal e a criança. A cena era inusitada, volto a dizer, pela expressão da mulher. Era fria, indiferente, como se a criança, expulsa de seu ventre após nove meses de convívio e intimidade, nada significasse para ela. Sua indiferença em relação ao bebê era veemente e incômoda. Parecia desdenhar do ser que trouxe ao mundo, apenas indicando que assim agira com o propósito de se dizer mãe, mulher fértil, nada mais. Não passava e não passaria despercebido a ninguém que o amor daquela mulher por seu filho era pequeno, material, sem amplitude ou grandeza, que desejou tê-lo, sem dúvida, mas que não queria arcar com o verdadeiro ônus de mãe, repassando tal encargo a uma serviçal. Certamente não quis assumir o referido encargo na pretensão de não envelhecer, de manter-se bela e jovem, viçosa e sensual.

O amor verdadeiro implica em ceder parte de si mesmo a outro; de relegar o lazer e descanso a um segundo momento; de desperdiçar noites, passando-as em claro ao lado do ente querido quando enfermo; de abrir mão de coisas que lhe são caras em prol daquele que se ama; de entregar-se à dor no lugar de quem está sofrendo. O amor verdadeiro é grandioso, mas também humilde; é simples, mas intenso; nunca pede, sempre cede; não se faz de arrogante, muitas vezes se humilha; cede espaço, quando se encontra até mesmo estrangulado, físico ou emocionalmente. O amor verdadeiro não guarda rancor quando ofendido; perdoa até mesmo aquele que lhe feriu profundamente. Sem invadir o contexto religioso ou ferir suscetibilidades, afirmo que Jesus Cristo demonstrou isso para a humanidade. Demagogia? Digo que não. Que mérito há num ser que revida uma ofensa e se mantém orgulhoso? Que valor podemos endossar naquele que comete uma crueldade e não procura se redimir? Valor verdadeiro é para aquele que perdoa quem lhe feriu, sem guardar rancor; que se redime diante de uma crueldade e abandona a maldade como atitude. Se agir desta forma, aí sim haverá mérito neste ser. Poderemos chamá-lo de digno, de valoroso. O amor verdadeiro vive num coração puro, onde não espaço para o ódio, rancor ou sentimentos similares. Reveja seus valores, reveja seu amor. Nunca é tarde para mudar.

domingo, 7 de março de 2010

DIA INTERNACIONAL DA MULHER

Segundo a doutrina católica, Deus achou que depois de ter criado o homem, ele se encontrava sozinho e que precisa de um ser semelhante, que lhe fizesse companhia e tornasse sua vida mais feliz. De uma costela, originou a mulher. E ela, ao longo dos anos de sua existência, tornou-se o ser mais importante do planeta, até mesmo que o homem. E o Criador foi generoso e benevolente com este ser cuja beleza encanta aquele que cedeu parte de si para sua criação.

A mulher foi criada em formas semelhantes ao homem, entretanto, foi agraciada com beleza superior, para que não somente se encantasse consigo mesma, mas também o próprio homem. A beleza que possui foi-lhe concedida não somente para fasciná-lo, mas principalmente seduzi-lo, para levá-lo a multiplicar-se através dela. Acredito que foi criada não tão-somente para fazer companhia ao homem e multiplicar a humanidade, mas sim para exercer um dos papéis mais nobres do universo: ser mãe. Sua presença na vida do homem serve-lhe de fator de equilíbrio, criada para torná-lo sensível, misericordioso, afastá-lo da brutalidade e frieza que lhe é comum. A mulher é tão grandiosa que foi dotada da capacidade de gerar outro ser, macho ou fêmea, coisa que o próprio homem não possui; capaz de suportar nove meses de gestação, condição que implica em deformação de suas curvas e beleza global, dores e inúmeros desconfortos para gerar outro ser e fazer o homem feliz; possui sensibilidade apurada que lhe permite identificar qualquer mudança de comportamento do homem, bem como suas dores, sejam elas físicas ou emocionais, mesmo que ele lhe oculte; capaz de executar atividades como cozinhar, lavar, costurar, pintar, dançar, cuidar de recém-nascidos, de enfermos, etc. características de sua natureza, com primor e produtividade.

Embora chamada equivocamente pelo homem de “sexo frágil”, a mulher no decorrer de sua vivência foi galgando patamares cada vez mais altos no contexto sócio-econômico. Não há dificuldades em identificar a presença de uma mulher por trás do sucesso de um homem, quer seja sua companheira quer seja sua mãe, que o orientou e modelou no caminho da vitória. A mulher rebentou as correntes da submissão masculina e lutou pelos direitos humanos, por um mundo mais justo e igualitário. Ingressou no mercado de trabalho, na vida política – onde trouxe novas conquistas para o segmento feminino e demais setores da vida civil – e na carreira militar, demonstrando que é capaz de exercer funções e arcar com responsabilidades consideradas exclusivamente masculinas.

Por sua importância capital mais do que justo ser criado e comemorado o Dia Internacional da Mulher. O homem não é dotado de tantas qualidades e tem consciência disto e, por este motivo, reconheceu e promulgou o dia da mulher, com o propósito de homenageá-la e reconhecê-la como ser importante em sua vida. E se realmente avaliarmos, todos os dias são dias da mulher, da mulher que trabalha, cozinha, costura, lava, amamenta, nina, cuida, orienta, ensina, desenha, pinta, calcula, serve, administra, dirige, pilota, conserta...

Que neste dia da mulher, ela seja cumprimentada e reconhecida por seus valores e feitos. Que seja levada a jantar, que receba flores, que receba atenção, que receba carinho, que se sinta amada e valorizada. Em nome de todos os literatos, mulheres, de todos os povos e raças, de todas as belezas e qualidades, que este dia seja-lhe muito feliz e próspero.

FELIZ DIA DA MULHER!

quinta-feira, 4 de março de 2010

UMA SERRA LONGE DEMAIS

Meu olhar taciturno, de viés, encontrou os raios esmaecidos que invadiam a janela do quarto. Antes de levantar, lembrei-me da noite anterior. Eu voltara cedo para casa, depois de presenciar, parcialmente, a entrega dos trabalhos de minha disciplina aos assistentes em sala de aula. Naquele momento, sorri, regozijando-me com a expressão apavorada dos alunos que entregavam uma pesquisa solicitada no plano de matérias. Uma pesquisa tão simples de elaborar – para mim – que para eles não passava de um Everest. Abandonei a quentura de minha cama de casal que, duas ou três vezes, recebera um visitante masculino que me acalorou os desejos. Ainda com o pijama de lã, vesti o robe que dobrado adormecera na cadeira ao lado da cama. Depois de pronto o café, adicionei creme e fui apreciar a deliciosa mistura na varanda de minha casa em Tiradentes. A escolha do imóvel não foi por sua beleza ou conforto, mas pela localização. Ele ficava na periferia e confrontava-se com a serra adjacente. Sentei-me na cadeira de balanço e, como tantas outras vezes, fiquei a contemplar a elevação alcantilada. O escuro e gigantesco muro de pedra ascendia aos céus azulados da cidade, soberbo, imponente. Sorri e passei a beber, em pequenos goles, o afrodisíaco de meus devaneios. Minha atenção fixou-se na magnitude da serra. Ela ficava distante, mas em meu íntimo estava muito próxima.

A paisagem me lembrava a casa nas montanhas, que Stuart me levava sempre que eu estava no Canadá. Embora algumas vezes fosse verão, sempre havia vestígios da neve que caíra em períodos anteriormente frios. Sentávamos na varanda amadeirada e, como os poucos jovens que eu via na universidade, ficávamos abraçados, apreciando a vista. Entre um gole e outro do chocolate quente, carinhosamente preparado por ele, meu amante desferia um beijo adocicado em meus lábios já vincados pelo tempo. Embora eu já tivesse cinquenta e oito anos de idade não me furtava aos ardores do amor. Correspondia calorosamente ao afeto e descrevia minhas aventuras escolares na universidade brasileira em que trabalhava. Falava do medo, da insegurança e da inquietude de meus alunos durante as aulas. Em alguns momentos, Stuart ria alegremente ante o sufocamento e opressão desenvolvidos pela professora Cátia Madeira. Eu me vangloriava de minha austeridade e da atitude amedrontada dos alunos em relação a mim. Eram tantos Carlos, Marisas, Cristinas, Rodolfos, Pedros e Marias que tremiam sob minha orientação espartana que eu já perdera a conta. Aquela tirania com meus alunos me proporcionava um prazer mórbido, inusitado, que preenchia a severa solidão que me angustiava todos os dias. O desconhecimento, a ignorância em relação ao saber dos alunos me enervava. Se eles seguissem minhas orientações, estudassem como eu estudei, declinassem das festinhas e orgias que promoviam nas repúblicas, certamente obteriam o saber que eu tanto valorizo. Mas pertencem a uma geração ensandecida pelo prazer, pelo egocentrismo, pela ignorância desmedida. Por isso devo pressioná-los a aprender, a aprofundar seus conhecimentos, para que possam se tornar excelentes profissionais, como eu me tornei. Acredito que, possivelmente, minha capacidade cognitiva decorra da solidão que o destino me impôs. Não tive muitas oportunidades no amor e só restou-me abrigar meus anseios e sonhos na busca do saber. O mestrado e o doutorado, em oposição à graduação, foram aventuras ardorosas e gratificantes, que permitiram enraizar meus conhecimentos. A marcha implacável do tempo levou minha mãe há poucos anos atrás. A situação que se formou arrebatou à solidão cruel, fazendo-me dividir o lar com dois gatos e um papagaio. Os felinos ouvem minhas neuroses e a ave interage com meus devaneios. Minha mãe era a única pessoa que eu amava e que me restara na vida. Stuart, ou melhor, Steve Stuart era um engenheiro elétrico no Canadá, que eu conheci durante uma de minhas viagens aquele maravilhoso país. Depois de alguns jantares e várias taças de vinho, ele me levou a sua alcova e me fez mulher depois de tantos anos de virgindade. Tive que voltar ao Brasil, por obrigação profissional, mas sempre que posso vou ao encontro de meu amor distante e secreto.

Um pássaro interceptou meu olhar, despertando-me de meus devaneios, fato que me desagradou. Bebi um longo gole da mistura que já se arrefecia e voltei a olhar para a serra. Ela estava longe, como meu amor. Sua magnitude lembra a grandeza de Stuart, de seus afagos, de suas palavras tão calorosas que me alegravam não somente o ânimo, mas o coração frio e solitário. Quando estávamos no aconchego da cabana, comendo, sorrindo, brincando, nos amando, a vida apresentava o seu valor. A serra ali adiante, muda, bela, escura, portentosa, fazia-me lembrar dos momentos que ainda valiam a pena em minha vida tão amarga e tão povoada de alunos atemorizados e incultos. Um bafejo frio perpassou meu corpo amolecido e estriado. O calafrio eclodiu estas lágrimas que correm de meus olhos cansados. É o sangrar de meu coração apenas visto pelos gatos que, deitados diante de meus pés, observam meu alheamento.

A campainha da porta da frente soou estridente, despertando-me violentamente dos devaneios. Quem seria o insolente que interrompia meu descanso e meu prazer?! Ah, que cabeça a minha, certamente era um de meus assistentes que, inseguro, trazia-me o calhamaço de trabalhos que eu começaria a corrigir, definindo o destino de tantas pessoas. Quem passaria ao meu crivo tão severo? Quem deveria repetir a matéria no semestre seguinte? Quem seria arremessado ao paraíso da aprovação? Quem seria arrebatado ao penoso inferno da repetência? Eu aumentaria a minha galeria de inimigos ou apenas me tornaria, mais uma vez, numa lembrança dolorosa da matéria mais temida pelos alunos da universidade? Esse poder de definir destinos me trazia prazer, satisfação. Tornava-me uma deusa, solitária e despótica, empunhando o cetro da aprovação.

A campainha soou novamente. Eu deveria ser severa ou misericordiosa na correção? Austera ou condescendente? Ah! Deixarei meu estado de espírito decidir. Vou receber meu visitante com um belo sorriso, que tenho só para os homens e raramente para uma mulher. Afinal, um homem é um homem, e eles me fazem bem aos olhos, mesmo que olhem endurecidamente para uma mulher como eu, com essa idade e ausência de beleza, momentos depois que acordou, vestindo um robe de seda por cima desse velho pijama de lã.