Meu olhar taciturno, de viés, encontrou os raios esmaecidos que invadiam a janela do quarto. Antes de levantar, lembrei-me da noite anterior. Eu voltara cedo para casa, depois de presenciar, parcialmente, a entrega dos trabalhos de minha disciplina aos assistentes em sala de aula. Naquele momento, sorri, regozijando-me com a expressão apavorada dos alunos que entregavam uma pesquisa solicitada no plano de matérias. Uma pesquisa tão simples de elaborar – para mim – que para eles não passava de um Everest. Abandonei a quentura de minha cama de casal que, duas ou três vezes, recebera um visitante masculino que me acalorou os desejos. Ainda com o pijama de lã, vesti o robe que dobrado adormecera na cadeira ao lado da cama. Depois de pronto o café, adicionei creme e fui apreciar a deliciosa mistura na varanda de minha casa em Tiradentes. A escolha do imóvel não foi por sua beleza ou conforto, mas pela localização. Ele ficava na periferia e confrontava-se com a serra adjacente. Sentei-me na cadeira de balanço e, como tantas outras vezes, fiquei a contemplar a elevação alcantilada. O escuro e gigantesco muro de pedra ascendia aos céus azulados da cidade, soberbo, imponente. Sorri e passei a beber, em pequenos goles, o afrodisíaco de meus devaneios. Minha atenção fixou-se na magnitude da serra. Ela ficava distante, mas em meu íntimo estava muito próxima.
A paisagem me lembrava a casa nas montanhas, que Stuart me levava sempre que eu estava no Canadá. Embora algumas vezes fosse verão, sempre havia vestígios da neve que caíra em períodos anteriormente frios. Sentávamos na varanda amadeirada e, como os poucos jovens que eu via na universidade, ficávamos abraçados, apreciando a vista. Entre um gole e outro do chocolate quente, carinhosamente preparado por ele, meu amante desferia um beijo adocicado em meus lábios já vincados pelo tempo. Embora eu já tivesse cinquenta e oito anos de idade não me furtava aos ardores do amor. Correspondia calorosamente ao afeto e descrevia minhas aventuras escolares na universidade brasileira em que trabalhava. Falava do medo, da insegurança e da inquietude de meus alunos durante as aulas. Em alguns momentos, Stuart ria alegremente ante o sufocamento e opressão desenvolvidos pela professora Cátia Madeira. Eu me vangloriava de minha austeridade e da atitude amedrontada dos alunos em relação a mim. Eram tantos Carlos, Marisas, Cristinas, Rodolfos, Pedros e Marias que tremiam sob minha orientação espartana que eu já perdera a conta. Aquela tirania com meus alunos me proporcionava um prazer mórbido, inusitado, que preenchia a severa solidão que me angustiava todos os dias. O desconhecimento, a ignorância em relação ao saber dos alunos me enervava. Se eles seguissem minhas orientações, estudassem como eu estudei, declinassem das festinhas e orgias que promoviam nas repúblicas, certamente obteriam o saber que eu tanto valorizo. Mas pertencem a uma geração ensandecida pelo prazer, pelo egocentrismo, pela ignorância desmedida. Por isso devo pressioná-los a aprender, a aprofundar seus conhecimentos, para que possam se tornar excelentes profissionais, como eu me tornei. Acredito que, possivelmente, minha capacidade cognitiva decorra da solidão que o destino me impôs. Não tive muitas oportunidades no amor e só restou-me abrigar meus anseios e sonhos na busca do saber. O mestrado e o doutorado, em oposição à graduação, foram aventuras ardorosas e gratificantes, que permitiram enraizar meus conhecimentos. A marcha implacável do tempo levou minha mãe há poucos anos atrás. A situação que se formou arrebatou à solidão cruel, fazendo-me dividir o lar com dois gatos e um papagaio. Os felinos ouvem minhas neuroses e a ave interage com meus devaneios. Minha mãe era a única pessoa que eu amava e que me restara na vida. Stuart, ou melhor, Steve Stuart era um engenheiro elétrico no Canadá, que eu conheci durante uma de minhas viagens aquele maravilhoso país. Depois de alguns jantares e várias taças de vinho, ele me levou a sua alcova e me fez mulher depois de tantos anos de virgindade. Tive que voltar ao Brasil, por obrigação profissional, mas sempre que posso vou ao encontro de meu amor distante e secreto.
Um pássaro interceptou meu olhar, despertando-me de meus devaneios, fato que me desagradou. Bebi um longo gole da mistura que já se arrefecia e voltei a olhar para a serra. Ela estava longe, como meu amor. Sua magnitude lembra a grandeza de Stuart, de seus afagos, de suas palavras tão calorosas que me alegravam não somente o ânimo, mas o coração frio e solitário. Quando estávamos no aconchego da cabana, comendo, sorrindo, brincando, nos amando, a vida apresentava o seu valor. A serra ali adiante, muda, bela, escura, portentosa, fazia-me lembrar dos momentos que ainda valiam a pena em minha vida tão amarga e tão povoada de alunos atemorizados e incultos. Um bafejo frio perpassou meu corpo amolecido e estriado. O calafrio eclodiu estas lágrimas que correm de meus olhos cansados. É o sangrar de meu coração apenas visto pelos gatos que, deitados diante de meus pés, observam meu alheamento.
A campainha da porta da frente soou estridente, despertando-me violentamente dos devaneios. Quem seria o insolente que interrompia meu descanso e meu prazer?! Ah, que cabeça a minha, certamente era um de meus assistentes que, inseguro, trazia-me o calhamaço de trabalhos que eu começaria a corrigir, definindo o destino de tantas pessoas. Quem passaria ao meu crivo tão severo? Quem deveria repetir a matéria no semestre seguinte? Quem seria arremessado ao paraíso da aprovação? Quem seria arrebatado ao penoso inferno da repetência? Eu aumentaria a minha galeria de inimigos ou apenas me tornaria, mais uma vez, numa lembrança dolorosa da matéria mais temida pelos alunos da universidade? Esse poder de definir destinos me trazia prazer, satisfação. Tornava-me uma deusa, solitária e despótica, empunhando o cetro da aprovação.
A campainha soou novamente. Eu deveria ser severa ou misericordiosa na correção? Austera ou condescendente? Ah! Deixarei meu estado de espírito decidir. Vou receber meu visitante com um belo sorriso, que tenho só para os homens e raramente para uma mulher. Afinal, um homem é um homem, e eles me fazem bem aos olhos, mesmo que olhem endurecidamente para uma mulher como eu, com essa idade e ausência de beleza, momentos depois que acordou, vestindo um robe de seda por cima desse velho pijama de lã.
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