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"A literatura insinua e coloca questões muito mais do que as responde ou resolve."

-------------------Milton Hatoum, escritor brasileiro



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terça-feira, 24 de agosto de 2010

UM HOMEM CHAMADO MACÁRIO (10)

- Somos de família pobre... a Débora sempre foi responsável, mas ultimamente ela andava estranha... tentei descobrir o que era, afinal éramos amigas, mas ela não falava sobre o que andava fazendo ou com quem saía...

Silvana abaixou a cabeça e ficou calada por um instante.

- O quê você está pensando? – perguntou Macário.

- Ela sempre estava estudando, era muito dedicada aos estudos, mas nesses dois dias da semana, ela ficava diferente, ansiosa, conversava pouco e abandonava qualquer coisa, para sair, não dizendo para onde ia... só voltava no dia seguinte, pela manhã, sempre exausta, e dormia o dia inteiro...

Atentamente, Macário fazia anotações.

- A Débora tinha algum namorado? – indagou Castilho.

- Não, ela não era uma garota de namorar... estava quase sempre sozinha, que eu saiba ela não tinha namorado...

- Ela lhe confidenciava coisas íntimas? – perguntou Castilho.

- Não, nem tudo... ela conversava muito comigo, falava de seus desejos, de se formar e ter um bom emprego, mas algumas coisas ela não dizia.

- O que seria, por exemplo? – indagou Macário.

- Eu perguntei algumas vezes onde ela conseguia dinheiro para comprar aquelas roupas e sapatos tão caros, você sabe a gente pergunta, mas ela mudava de assunto, ficava de cara feia...

- O dinheiro não seria o enviado pelos pais? – perguntou Macário.

- Somos pobres, os pais dela mandavam pouco dinheiro, eu vi alguns extratos bancários da conta da Débora... eles mandavam o que dava para comer e viver.

- Ela conversava assuntos íntimos com as garotas da república? – perguntou Castilho.

- Não, ela não costumava se envolver com as outras garotas... conversava mais comigo e pouco falava de sua intimidade.

- Quantas meninas moram aqui na república?

- Somos seis.

- Você está sozinha? – indagou Castilho.

- Sim, as outras estão fora...

- Alguma delas, em algum momento, comentou alguma coisa sobre a Débora, sobre algum relacionamento que ela possa ter tido com algum homem da cidade? – inquiriu Macário.

- Não que eu saiba.

- Ela trabalhava ou trabalhou em algum lugar, aqui na cidade? – perguntou Castilho.

- Não que eu saiba... como eu disse, os pais dela mandam dinheiro para as despesas.

Macário olhou em derredor, para depois encarar Silvana.

- Você disse que dividia o quarto com a Débora... – observou ele.

- Sim.

- Podemos dar uma olhada no quarto, nos pertences dela? – perguntou Macário.

A jovem titubeou. O detetive fitou-a nos olhos.

- É importante para a investigação – insistiu ele.

- Tudo bem, eu mostro para vocês.

Ela levantou-se e foi seguida pelos detetives, dirigindo-se para uma das portas que havia no pequeno corredor. Castilho repousou o olhar nos quadris que embalavam harmoniosamente a sua frente.

- É aqui, vocês podem mexer no que quiserem.

A dupla entrou no cômodo e passou a vasculhar o local. Não havia roupas e objetos espalhados pelo quarto. As jovens não costumam apresentar o senso de organização – um dos fatores incondicionais do sucesso – principalmente na fase universitária. Todavia, pela arrumação do quarto, as duas jovens interioranas demonstravam que além de organizadas eram cuidadosas com seu recanto. Cada coisa estava no seu devido lugar. Livros, revistas, bolsas, sapatos e tantos outros objetos de uso pessoal.

Encostada no umbral da porta, Silvana ficou a observar a dupla em ação. Macário verificou roupas, calçados e bolsas. Castilho inspecionou livros, cadernos e o conteúdo das gavetas da cômoda. Passados alguns minutos, a jovem perguntou:

- Encontraram alguma coisa importante?

Macário cessou sua busca e disse:

- Aparentemente não... – ele ficou encarando-a por um instante – por acaso lembra se alguma vez Débora comentou alguma coisa sobre uma boate chamada Rosas da Noite?

A jovem desviou o olhar, hesitante, temendo ser traída por sua memória saturada de informações escolares. O olhar perdido em algum canto do quarto reencontrou o semblante do detetive.

- Não, não lembro dela ter dito alguma coisa sobre essa boate... por que é importante?

- Talvez... encontramos uma caixa de fósforos com uma propaganda da casa noturna, na bolsa de Débora – esclareceu Macário – você sabe ou ouviu alguma coisa a respeito dessa boate por alguma das garotas que residem na república?

- Não, ela nunca falou nada sobre essa boate e eu nem ouvi nada pelas meninas.

Castilho aproximou-se com uma fotografia, a qual estava no interior de uma agenda que pertencia à universitária assassinada.

- Precisamos de uma fotografia atual da Débora – disse Castilho. – Podemos levar esta que estava na agenda?

A jovem assentiu.

- E a agenda? – perguntou Castilho. – Também podemos levar?

- Podem levar o que quiserem, se ajudar em alguma coisa...

O grupo retornou à sala.

- Você tem como avisar a família o que aconteceu? – perguntou Macário.

- Sim, eu posso avisar os pais dela, mas como será esse negócio de velório, de enterro, eu não entendo dessas coisas... estou tão nervosa...

- Apenas ligue para a família e peça que venham para a cidade – orientou Castilho entregando um pequeno cartão à jovem. – Diga que procurem este policial... ele irá orientá-los com relação o que fazer e como proceder.

- Obrigada, mas o que eu digo que aconteceu?

Os detetives entreolharam-se.

- Diga que aconteceu uma fatalidade com ela, que a polícia informou que ela sofreu um acidente e que eles devem vir rapidamente para cá – orientou Macário.

- Está bem, obrigada, eu já vou ligar.

- Caso lembre de alguma coisa, qualquer coisa sobre a Débora, entre em contato conosco – disse Castilho.

- Bom, nós já vamos indo – despediu-se Macário.

A dupla dirigiu-se para a escada, seguido pela jovem, quando Macário estacou. Volvendo o corpo, ele fitou-a nos olhos.

- Silvana, eu tenho só mais uma pergunta...

- O que é? – retrucou a jovem de olhos marejados.

- A Débora fumava?

- Sim, ela fumava, por quê?

- Sabe qual a marca de cigarro preferida por ela?

- Acho que era Derby... não tenho certeza.

- Obrigado, até logo.

Os detetives desceram a escada e chegaram na rua. Passaram a caminhar em direção à rodoviária. Castilho acendeu um cigarro e tragou, para saciar um prazer contido durante o interrogatório que ocorreu minutos antes. Ele encarou o colega e disse:

- O que você achou?

- Encontramos a república e pelo menos descobrimos alguma coisa... a Débora era uma garota pobre, do interior, de família humilde... provavelmente suscetível a todo tipo de malefícios... acabou se envolvendo com quem não devia e se meteu em encrencas...

Súbito, Macário silenciou. O olhar fixou-se no vazio, indiciando o divagar da mente que perlustrava as informações que se aglutinavam.

- O que foi? – perguntou Castilho.

- Você percebeu o guarda-roupa da Débora?

- O que tem ele?

- Como se explica o fato de uma garota pobre ter roupas tão finas, que custam muito caro?... se a família é pobre e enviava dinheiro, provavelmente remetia um quantitativo que apenas supria suas necessidades básicas, nada que fosse suficiente para que ela comprasse roupas e objetos femininos que custam caro...

- Aonde quer chegar?

- Eu que pergunto: de onde vinha o dinheiro para compra de roupas finas, que vimos no armário, e as jóias, que encontramos nas gavetas da cômoda?

- Não é fácil ganhar dinheiro, a não ser que...

- A Débora além de universitária fosse...

- Garota de programa?

Macário balançou a cabeça em afirmação.

- Ela confidenciava suas intimidades a amiga de quarto, mas nunca falou nada sobre a boate Rosas da Noite – disse Macário. – Acho isso estranho... e mais estranho o fato de ser uma garota recatada, de não namorar, como disse a amiga, e acabar se envolvendo com o Alcides...

- Talvez não tivesse vergonha de ser vagabunda e por isso não contava nada para a amiga...

- Pode ser, pode ser...

- A Débora para se envolver com o Alcides devia ser garota de programa...

- Tudo indica que sim... e isso nós vamos investigar.

Macário consultou o relógio.

- As horas passaram e nós nem percebemos... vamos para o velório?

- Ok.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

UM HOMEM CHAMADO MACÁRIO (9)

A grande demanda de jovens vindos de outras cidades, que iriam cursar a universidade federal de São João del Rei, e a oportunidade de lucro pelos proprietários de residências particulares que se encontravam vazias foram os fatores da relação de causa e efeito que gerou um forte e constante aquecimento no setor imobiliário local. O atendimento desta necessidade fez surgir aquilo que comumente chamou-se de república. E cada uma delas, em sua natureza e estruturação, recebia de seus integrantes um designativo muitas vezes jocoso.

República das Meninas das Geraes. A busca por esta república, em particular, era uma atividade que exigiria paciência e perseverança, qualidades que não faltavam a Macário. A universidade dividia-se em campus, diametralmente opostos, sendo um deles denominado de Santo Antônio e o outro de Dom Bosco. Seu instinto detetivesco orientou-o no sentido de que a procura fosse iniciada pela área onde se localizava o segundo campus, onde eram desenvolvidos os cursos de Psicologia, Ciências Biológicas, História, Letras, Pedagogia, Filosofia, Matemática, Química e Física.

A dupla de detetives passou a verificar prédios e moradias, exaustivamente. Moradores e inquilinos desconheciam a existência e a localização do objeto procurado. Instantes do acaso, quando caminhavam para a nova rodoviária depararam-se com um jovem que, pelos cabelos desgrenhados e a aparência irreverente, não deixava dúvidas que era um universitário. Perguntado sobre a república procurada, ele respondeu numa letargia irritante, indicando com o dedo em riste, um prédio de três pavimentos, próximo à avenida Leite de Castro. A dupla agradeceu, seguindo em direção ao prédio avistado.

- Por que você sugeriu que começássemos pelo campus Dom Bosco? – perguntou Castilho.

Macário encarou o colega.

- Não foi apenas por intuição, meu amigo...

Castilho tragou profundamente e arremessou para longe a guimba do cigarro que fumava.

- Sugeri que a nossa busca começasse por aqui pelo fato deste núcleo da universidade ser freqüentado em sua maioria por garotas e pela ausência de linhas alternativas de transporte de coletivo...

- O que tem a falta de ônibus haver com elas morarem no por aqui?

- As garotas que estudam no Dom Bosco, em sua maioria, pertence à classe pobre, e devido a isso têm preferência em residir por aqui, devido à proximidade do campus...

Castilho meneou a cabeça.

- Não devo subestimar você... não sei como consegue pensar em tudo.

O prédio de três pavimentos localizava-se próximo a um semáforo. A pressão do dedo indicador de Macário numa das teclas do interfone gerou um sibilar, sufocado pelo ruidoso movimento de veículos que arrancavam na mudança do luminoso de controle de trânsito. Após um terceiro toque, alguém atendeu.

- Quem é? – inquiriu uma voz sensual.

- Boa tarde, é da república das meninas que moram no prédio?

- Sim, por quê?

- O nome da república é Meninas das Geraes?

- Sim...

Macário encarou o colega, com um leve sorriso de satisfação.

- Sou da Polícia de São João del Rei e preciso falar com uma das garotas que reside na república, você pode me receber?

Ocorreu uma breve pausa.

- O que você quer? – indagou a voz feminina.

- Aqui embaixo há muito barulho, eu preferia falar pessoalmente sobre o assunto, você pode abrir a porta?

Para a população, de uma forma geral, o contato com a polícia é um fato intimidador, em especial para as mulheres, que julgam que todo policial é um indivíduo truculento e uma provável fonte de aborrecimentos. Ocorreu um lapso de segundos até que a portaria fosse aberta eletronicamente. A dupla subiu a escada e após galgar o último degrau, deparou-se com uma pequena sala de estar. As repúblicas caracterizavam-se pela ausência de ostentação na aparência e na mobília que apresentavam. Ali havia um pequeno e velho sofá de três lugares, uma mesa de canto, que sustentava um abajur comprado em algum brechó, e dois quadros que preenchiam as paredes do cômodo. Um corredor estreito desembocava na sala e por ele surgiu uma jovem. Ela apresentava um rosto bonito e a tez aveludada. Descalça, aproximou-se da dupla de detetives pisando na ponta dos pés pequeninos. Seus cabelos estavam presos num coque, no alto da cabeleira loira, deixando grandes brincos à mostra. O short branco e justo, de cunho perturbador, era muito curto, salientando suas atraentes curvas e atraindo a atenção do varão mais desatento. Apesar dos olhares convergirem para o púbis saliente, Macário fitou-a nos olhos, não permitindo que as cálidas formas perturbassem sua serenidade de homem da lei.

- O que vocês querem? – perguntou a jovem sem hospitalidade alguma.

Ele declinou sua qualidade de policial, apresentando a carteira de identidade funcional.

- Tudo bem, são da polícia e daí, o que querem?

- Sou o detetive Macário e este, o detetive Castilho... conhecia uma garota chamada Débora Dantas de Pessoa?

- Querem falar com ela?

O desagrado da jovem era notório.

- Vocês são amigas?

- Sim, mas ela não está em casa.

- Tudo bem, mas gostaríamos de conversar com você – disse Castilho.

A jovem entreabriu a boca e contraiu as sobrancelhas.

- Não estou entendendo...

O olhar sequioso de Castilho perlustrou o corpo que vicejava. A jovem estava bronzeada e os pêlos dourados das pernas excitavam o detetive.

- Seu nome, por favor? – perguntou Macário.

- Silvana... mas não estou entendendo... se vocês sabem que a Débora não está aqui porque vieram procurar minha amiga?... aconteceu alguma coisa?

A dupla de detetives entreolhou-se.

- Acredito que você não sabe, mas, infelizmente, temos que informar que sua amiga foi assassinada ontem à noite – disse Castilho.

Silvana engoliu em seco. Seus olhos marejaram e ela sentou-se no sofá. A mão foi ao cenho que começava a empalidecer.

- Não pode ser verdade – disse a jovem.

- Infelizmente, ela morreu ontem à noite – confirmou Macário.

A fisionomia da jovem contraiu-se, como se uma lança a tivesse percutido o peito e o perfurasse de lado a lado do tórax. Repentinamente, ela explodiu em prantos. Um choro profundo e incontido. Castilho aproximou-se, sentando-se a seu lado, abraçando-a.

- Calma, tenha calma, estamos aqui para ajudar – disse o detetive.

- Por que isso aconteceu?! Por quê?!

Macário retirou um lenço do bolso interno da jaqueta e entregou a jovem.

- Tente se acalmar, tente se acalmar – disse Castilho tentando confortá-la.

- Ainda não sabemos exatamente como e o porquê, mas estamos investigando – elucidou Macário, sentando-se numa poltrona. – E é por isso que estamos aqui... precisamos da sua ajuda...

A jovem chorava intensamente. Seus seios arfavam, comprimidos pela camiseta justa que usava. Suas mãos delicadas e trêmulas seguravam o rosto premido pela dor oriunda do coração.

- Não acredito, não é possível, isso não pode ter acontecido, não pode!

- Tente se conformar – disse Castilho.

- Sabemos que é difícil para você, mas infelizmente aconteceu – disse Macário.

- Calma, tente se acalmar... onde tem um copo d’água? – perguntou Castilho.

Com a mão trêmula, ela apontou para o corredor. Castilho levantou-se e percorreu o corredor, encontrando uma cozinha pequena e revestida por azulejos viscosos, dos quais o odor de gordura saturada invadia as narinas. Louças a lavar cobriam a pia e ocupavam todo o espaço antes livre. Havia copos, mas todos estavam sujos. Impaciente, lavou o copo que julgou menos sujo e procurou por um vasilhame contendo açúcar. Segundos depois, ele voltou e serviu a jovem que soluçava. Ela segurou o copo d’água com as mãos trêmulas e bebeu com dificuldade. As lágrimas ainda lhe corriam pelas faces e ela enxugava-as com o lenço. A dor que invadiu seu coração começava a esvair-se, como a bruma da manhã que fugia aos raios fúlgidos do sol. Ela expirou profundamente, meneando a cabeleira loira, devolvendo o copo a Castilho.

- Como você está? – indagou Macário.

- Eu, eu, estou melhor... obrigada...

A dupla de detetives ficou a observá-la, em silêncio.

- Você nos confirmou que a Débora e você eram amigas...

- Sim, ela era... ela era a minha melhor amiga... nós dividíamos o mesmo quarto aqui na república... mas como foi que isso aconteceu?

- Estamos iniciando as investigações sobre o crime e para isso contamos com a sua ajuda – disse Macário.

A jovem ficou pensativa por um instante. Depois encarou o detetive e perguntou:

- Em que posso ajudar?

Macário retirou o caderno de anotações do bolso da jaqueta e uma caneta.

- Pois bem, como era o seu relacionamento com ela? – indagou Macário.

- Nós, nós morávamos na mesma cidade... viemos para São João para cursarmos a universidade juntas... ela era como uma irmã para mim...

- Quando foi a última vez que esteve com Débora?

- Foi ontem...

- Por volta de que horas? – perguntou Castilho.

- Acho que eram nove ou dez horas da noite... às quintas-feiras e sextas-feiras ela não tinha aula na universidade e, como sempre, saía...

- Ela costumava sair nestes dias da semana? – perguntou Macário.

- Sim...

- Ela dizia aonde ia?

- Não...

- Quando ela saía nestes dias retornava cedo para casa?

- Não, normalmente chegava no outro dia, pela manhã...

- Você não achava estranho esse hábito?

- Sim, eu achava...

- E nunca perguntou a respeito?

Ela inspirou profundamente antes de falar.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

UM HOMEM CHAMADO MACÁRIO (8)

A bruma da manhã começava a ascender. A baixa temperatura impingia que as pessoas que se dirigiam para o trabalho, a pé ou em seus veículos, vestissem roupas mais pesadas, fato que não ocorria de forma generalizada. O baixo poder aquisitivo e a ausência de um expressivo mercado de trabalho, mesmo que informal, não gerava empregos na pequena cidade mineira. A maioria da população de São João del Rei andava desagasalhada devido à penúria em que estava inserida.

A 35ª Delegacia Regional de Segurança Pública localizava-se na avenida Leite de Castro, no número 1322. Em sua estruturada organizacional tinha um chefe geral, como delegado regional, tendo como subordinado a ele um delegado adjunto da Comarca. Subordinados a este existiam três delegados que acumulavam funções. Eles chefiavam as subdelegacias de Crime contra o Patrimônio, Repressão a Tóxicos, Furto de Veículos, Desvio de Cargas, Crimes contra a Pessoa, Crimes contra a Vida, Vigilância Geral, Trânsito e Acidentes, Medicina Legal (Setor de Polícia Técnica), Falsificações e Defraudações e Crimes contra a Mulher, sendo esta última exercida por uma mulher de quarenta anos. Ainda subordinados a estas subdelegacias figuravam a Chefe de Cartório, encarregado de remeter os processos para o Ministério Público, escrivões, auxiliares e o Inspetor de Detetives.

O delegado Herval chegou vestindo um casaco com a gola levantada devido ao frio da manhã. Embora fosse um homem carrancudo, enquanto se dirigia para sua sala, costumava cumprimentar a todos com cordialidade. Ele chefiava as subdelegacias de Repressão a Tóxicos, Crimes contra a Pessoa e Crimes contra a Vida. Sempre estava assoberbado de encargos e preocupações. Desde que assumiu a função, em decorrência do assassinato de seu antecessor, adotou uma sistemática de trabalho que logo apresentou bons resultados. A liberdade de ação conjugada com a severa coordenação das diligências era o princípio básico de seu trabalho. Esse modelo permitia que os detetives atuassem com ampla liberdade, apesar de suas ações serem controladas pelo inspetor Botelho, que mantinha o delegado informado do que acontecia.

Fumando com sofreguidão, Herval sentou-se em sua cadeira. A expressão manifesta em seu rosto era de uma noite insone. Era perceptível que algo o perturbava. O ponteiro maior do relógio da sala dos detetives passava das dez horas. Sua equipe entrou individualmente em sua sala e cada um sentou-se na cadeira que conduziu.

- O que vocês já levantaram? – perguntou o delegado.

Cada um dos presentes começou a abordar o que já havia levantado a respeito dos envolvidos no crime cometido na madrugada.

- O Alcides era divorciado e morava sozinho – disse o inspetor. – A ex-mulher não mora na cidade e reside em Lavras, com os dois filhos do casal...

- Ele tinha problemas com a mulher? – indagou o delegado enquanto acendia um cigarro.

- Segundo informações de um vizinho, que às vezes jogava uma sinuca com ele e bebia umas cervejas, ele não tinha plena liberdade para ver os filhos... a ex-mulher criava dificuldades para que os filhos passassem os finais de semana em companhia do pai – respondeu o inspetor consultando seu caderno de anotações.

O delegado tragou profundamente o cigarro.

- A ex-mulher era inimiga de Alcides?

- Que saibamos, não... a separação foi consensual e o Alcides mantinha a pensão em dia.

- Algum inimigo declarado?

- Não, delegado, ainda não sabemos – respondeu o inspetor.

- Quem era a garota assassinada? – indagou o delegado.

- Ela chamava-se Débora Dantas de Pessoa e era uma universitária – disse Macário. – E provavelmente residia numa república chamada Meninas das Geraes...

- Como você sabe disso? – indagou o delegado.

- Encontrei na bolsa da garota um convite para uma festa de universitárias...

- Eu revistei os pertences da garota e não vi esse convite – disse Castilho um tanto indignado por sua falta de observação.

- No convite tinha o nome da república – continuou Macário. – Deve ser o endereço onde residia a garota.

- A arma do crime? – perguntou o delegado.

- O assassino empregou uma nove milímetros... Alcides foi morto com seis tiros – disse Castilho.

Herval ficou pensativo.

- Algum indício de roubo, furto?

- Aparentemente não, não constatamos vestígios de arrombamento ou que alguém tenha forçado as portas ou janelas – disse o inspetor.

- Não temos um mero caso de roubo a residência... o crime tem característica de execução – disse o delegado.

Castilho encarou Herval e disse:

- O senhor acha que foi “queima de arquivo”?

- É possível, não temos informações de que o Alcides estivesse envolvido com o crime organizado ou com o tráfico de drogas.

Herval tragou seu cigarro e encarou Macário.

- Alguma idéia, Macário?

- O crime foi executado por gente experiente... talvez por algum profissional do crime.

- No que você se fundamenta? – perguntou o inspetor.

- A perícia me adiantou que não encontraram vestígios no local do crime.

- Além do vizinho do lado e da mulher que viu Alcides entrar com a garota, temos mais alguma testemunha ocular? – perguntou Herval.

- Os outros moradores estão sob a “lei do silêncio”... não querem falar nada sobre o crime, com medo de se envolver – disse Castilho.

- Estou vendo que não vai ser fácil resolver esse caso – disse o delegado. – Não temos um suspeito, mas apenas um vulto identificado como sendo o assassino, que foi visto pelo vizinho do lado, nada mais do que isso...

Herval tragou o cigarro nervosamente. O que os demais policiais presentes não perceberam foi notado por Macário. O delegado tentava ocultar sua veemente inquietação.

- Bom, quero vocês em campo – ordenou o delegado, apagando a guimba de cigarro no cinzeiro. – Macário e Castilho vão atrás de informações sobre a garota, quero saber o nível de envolvimento do Alcides com ela... Botelho, vasculhe a vida pregressa do Alcides e fique em contato com os legistas e a perícia, tente apressar os resultados... a morte misteriosa de um policial vai afetar a harmonia do pessoal da delegacia e não tenho dúvidas que teremos alguns problemas, mas acredito que poderei contorná-los... vamos trabalhar.

Todos saíram da sala do delegado. Os pensamentos de Macário convergiam para o assassinato de Alcides.

É evidente a preocupação do Herval... a morte do Alcides vai fortes reflexos aqui na delegacia e ele que administrar seus desdobramentos,afinal é para isso que ele é delegado... ele deve estar preocupado com a reação dos policiais... parece que não dormiu... acho que nenhum de nós deve ter retornado à cama...

Depois de entrar na sala dos detetives, dirigiu-se para a cafeteira elétrica que ficava numa pequena mesa. Castilho estava de cabeça baixa, folheando uma pasta repleta de documentos.

- Como está frio... você quer um café?

Castilho assentiu. Macário trouxe-lhe um copo descartável e deixou-o diante do colega, sentando-se numa cadeira que estava próxima. Do café fumegante ascendia uma coluna tênue de vapor.

- O delegado está com uma aparência horrível, parece que nem “pregou os olhos”– disse Macário.

- Também depois de uma noite dessas... ele deve estar preocupado com a reação do nosso pessoal, desde que chegou a notícia os policiais estão aos cochichos...

- Acho que a preocupação dele serão as reações negativas, tem gente que não aceita uma coisa dessas.

- É verdade.

Castilho bebeu um gole de café e acendeu um cigarro. No instante seguinte, o inspetor Botelho entrou na sala. Ele vestia um casaco de lá e friccionava as mãos na tentativa de aquecê-las.

- Como o dia amanheceu frio – disse o inspetor sentando-se numa cadeira.

- O senhor quer um café? Acabaram de passar... – disse Macário.

- Aceito.

O detetive levantou-se e foi servir Botelho.

- Não consigo acreditar no que aconteceu com o Alcides – declarou o inspetor. – Ontem mesmo ele estava trabalhando conosco e hoje está morto... é inacreditável.

Macário passou às mãos frias do inspetor o copo descartável. Ele bebeu um gole generoso e retirou do bolso do casaco um maço de cigarros.

- Se o Alcides estava envolvido com o tráfico, o senhor acha que o responsável pela morte dele foi alguém do CAF ou Comando do Araçá? – indagou Castilho.

Mecanicamente, o inspetor colocou um cigarro na boca e acendeu-o com um isqueiro descartável. Depois de uma longa tragada, ele respondeu:

- Eu pouco conhecia o Alcides... acho que precisamos saber com quem ele estava envolvido...

O inspetor voltou a friccionar as mãos.

- Acredito que isso não seja difícil de descobrir... teremos dificuldade em descobrir o porquê de sua morte – disse Macário bebendo um gole de café.

- Quem sabe de alguma coisa deve ser o Divério, era seu colega de trabalho e eles sempre andavam juntos – disse Castilho.

- A situação logo vai se complicar – disse o inspetor. – Percebi que já tem gente revoltada... como eu previa, o delegado vai enfrentar sérios problemas com os revoltados.

Macário levantou-se e encarou seu colega.

- Castilho, vamos andando...

- Aonde vocês vão? – indagou o inspetor.

- Vamos percorrer a cidade à procura da república onde a garota residia... o senhor tem algum palpite?

Botelho tragou o cigarro e disse:

- É como procurar uma agulha no palheiro... existem várias repúblicas na cidade, algumas tem o nome em cartazes na frente da casa ou no prédio onde se localizam... só posso desejar boa sorte para vocês...

- Obrigado, inspetor – disse Macário.

domingo, 1 de agosto de 2010

UM HOMEM CHAMADO MACÁRIO (7)

A madrugada estava fria e passava das quatro horas. Ele foi acordado pelo toque quase ininterrupto do celular sobre o criado-mudo. Girou o corpo na cama e atendeu. Uma voz conhecida informou-o do assassinato de um homem e de uma mulher. Fato corriqueiro que não lhe alterou o comportamento e nem muito menos os batimentos cardíacos. Calmamente, levantou-se e foi para o banheiro. Realizou a higiene, ficando a contemplar o rosto por um instante. Traços delineavam seu cariz, expressando a satisfação ebuliente que o embalava. Sorriu, quando percebeu que conseguira tocar o coração de Cibele e que ela reagira de forma positiva. Retornou para o quarto e vestiu-se. Com as chaves do carro na mão e movido pelo sentimento do dever, saiu de casa.

Minutos depois, o carro de Macário estacionou do outro lado da rua. Era madrugada e a ocorrência de um crime numa rua tranqüila despertou a vizinhança. Debruçados em muros ou reunidos nos portões de suas residências, os vizinhos mantinham-se em vigília, tentados a satisfazer sua curiosidade. Junto à calçada, na frente da casa para onde se concentravam os olhares e as atenções, estavam estacionados três carros da polícia. Uma dupla de policiais permanecia guarnecendo sua entrada, com o intento de impedir a entrada de algum vizinho ou curioso no local do crime. O detetive desembarcou e atravessou a rua. Enquanto caminhava, sua atenção convergiu para a casa. Indubitavelmente, ela existia de longa data. As trevas cobriam a fachada, mas percebia-se sem dificuldade que estava desbotada e carcomida em várias partes, degenerada pela ação inquebrantável das intempéries. Antepondo-se à fachada, árvores e plantas elevavam-se, convolutas, taxando uma lugubridade ao local. O portão de acesso de pedestres estava enferrujado e rangia quando movido em qualquer sentido, igualmente ao da garagem, onde um carro luxuoso estava coberto por uma capa protetora. O detetive passou pelos policiais e alcançou a varanda. Esta era pequena, de piso azulejado e encardido. A porta da frente estava aberta e, por ela, o som de vozes escapava. Ele transpassou o umbral e, num extremo da pequena sala de estar, encontrou reunidos o delegado Herval, o inspetor Botelho e o detetive Castilho, seu colega investigador.

No grupo, destacava-se pela altura o delegado. Ele era um homem alto, de espáduas largas e cabelos grisalhos e ondulados. Apesar da expressão carrancuda, Herval era um homem sensato, que procurava manter um relacionamento cordial com seus subordinados, sem exceção. Titular da subdelegacia de Repressão a Tóxicos, da 35ª Delegacia Regional de Segurança Pública, ele comandava as ações de seus policiais com disciplina e dinamismo.

- Boa noite... o que foi que aconteceu? – perguntou Macário quando se aproximou.

O delegado tragava o cigarro no momento em que encarou o detetive. Na intimidade, eles eram amigos.

- Infelizmente, um dos nossos morreu... assassinaram o detetive Alcides – retrucou Herval.

Macário franziu o semblante, para embalar a cabeça em negação. Apesar de toda a violência que vogava, o homicídio de um policial era um fato inusitado na cidade, particularmente quando ele não estava em serviço.

- Como aconteceu?

- Ainda não sabemos exatamente... – retrucou Herval. – Pouca coisa foi apurada até agora...

- Temos testemunhas?

- O vizinho, que mora ao lado, estava na cozinha tomando um remédio quando ouviu disparos e os gritos de uma mulher – esclareceu o inspetor, acendendo um cigarro. – Ele ligou fazendo a denúncia e uma viatura veio averiguar... os policiais encontraram a porta dos fundos aberta e passaram a revistar a casa... acabaram encontrando os corpos no quarto.

O inspetor Botelho era um homem de cabelos pretos e lisos, com raros fios grisalhos. O corpo delgado desarmonizava-se com uma pequena e saliente barriga. O chefe dos detetives raramente sorria e tratava com relativa austeridade seus subordinados. Esta conduta criara uma aversão espontânea por todos, exceto por Macário. O detetive acreditava que a ausência de afabilidade no comportamento do inspetor refletia os fatos que assinalavam sua vida privada. A separação judicial levou sua vida ao declínio. A liberdade de visitar os filhos foi cerceada. Influências negativas da ex-mulher, sua fiel opositora, comprometeram seu relacionamento com a prole, deixando-o angustiado. O fato de passar a viver sozinho e distante daqueles que amava, levaram-no à depressão. Dia após dia, depois do término do expediente na delegacia, Botelho perambulava pela madrugada, na forma mais dissimulada possível, bebendo e trocando prosa com boêmios e dormindo com damas da noite.

- O Alcides morava nesta casa? – perguntou Macário.

- Sim – assentiu o delegado.

- O vizinho que fez a denúncia viu alguma coisa? – indagou Macário.

- Sim, pela janela da cozinha de sua casa – continuou o inspetor. – Ele disse que estava muito escuro, que viu um vulto sair pela porta dos fundos e correr pelo quintal, pulando o muro dos fundos... não sabe dizer se era homem ou mulher ou como estava vestido...

- Alguém mais viu alguma coisa? – perguntou Macário.

- Não que saibamos, tentei fazer contato com o outro vizinho do lado e descobri que ele viajou ontem para Belo Horizonte – disse Castilho. – Os demais vizinhos têm medo, não querem se envolver, dizem que não ouviram e não viram nada.

- Isso é normal – observou Macário.

- Temos também uma senhora como testemunha – declarou Botelho. – Ela mora numa das casas do outro lado da rua.

- O que ela viu? – perguntou Macário.

- É uma senhora de sessenta e cinco anos, disse que viu, um pouco antes da meia-noite, o Alcides parar o carro na frente de casa e entrar acompanhado de uma mulher de cabelos loiros... nada mais.

Um momento de silêncio estabeleceu-se. O delegado tragou o cigarro e disse:

- Temos um duplo homicídio e um dos corpos é de um policial... não sabemos em que circunstâncias o crime aconteceu, quais foram suas causas... temos testemunhas, uma delas alegou ter visto um vulto, não confirma se era homem ou mulher... a perícia está fazendo o levantamento... nós pouco conhecíamos o Alcides, ele parecia ser um bom policial, que eu me lembre não tivemos grandes problemas com ele, nem com o seu colega, o Divério...

O delegado encarou o inspetor e alteou as sobrancelhas.

- Qual a sua impressão sobre ele?

- O Alcides era um bom policial, não tive problemas com ele, trabalhava bem... desconheço se estava envolvido com algum ilícito.

- Castilho... – disse o delegado

- Tive pouco contato com ele, não éramos amigos e nunca trabalhamos juntos.

- Macário?

- Pouco conversei com o Alcides durante todos esses anos, não tenho conhecimento de nada que possa comprometer sua conduta...

Todos ficaram calados por um segundo.

- Com relação ao crime, alguma hipótese? – indagou Macário.

- Talvez roubo, talvez queima de arquivo... – observou o inspetor.

- Queima de arquivo? – indagou Macário olhando para o inspetor.

- Talvez ele estivesse envolvido com algum ilícito que não sabemos e alguém achou que sabia demais, por isso foi morto.

- Ainda não temos certeza de nada – disse Herval. – Tudo é especulação... quero que comecem logo cedo a investigar o caso, vasculhem o passado dos dois, descubram quais as pessoas que pertenciam ao círculo de relacionamentos do Alcides e da garota que foi morta, quero nomes e fatos, descubram onde estiveram nos últimos dias e com quem estavam envolvidos... mãos à obra.

Herval encarou Macário e disse:

- Vá lá dentro e dê uma olhada, depois fale conosco na delegacia.

O detetive deixou o grupo e dirigiu-se para o interior da casa. Os policiais presentes não circulavam pelo local, à procura de algum vestígio. Quando passou por uma segunda sala sua atenção foi atraída pelo fato de tudo que estava revirado. Mais alguns passos e ele parou na porta do quarto onde estavam os corpos. A tetricidade estampada na cena do crime caracterizava a violência perpetrada pelo assassino. Ali também móveis e objetos estavam fora do lugar, arremessados ao chão, indiciando que alguém procurara alguma coisa. Manchas e respingos de sangue tingiam o quarto, presentes na roupa de cama e no piso de madeira. O corpo do policial morto estava estirado, ao lado da cama, sobre uma poça sanguinolenta. Sobre a cama jazia o cadáver desnudo de uma mulher, de pouco mais de vinte anos de idade. Nele destacavam-se três perfurações, com grandes nódoas avermelhadas. Duas delas localizavam-se na região dos seios voluptuosos e a terceira no abdômen. Pela disposição de seu corpo e a expressão que permanecera em seu rosto, ela testemunhara a morte trágica de seu amante e fora executada em seguida.

Um grupo de peritos criminais movia-se pelo quarto. Um deles implementava o exame perinecroscópico, que é o exame do corpo. Meticuloso, ele assinalava e fotografava os ferimentos nos cadáveres e os sinais de morte. Em torno das vítimas, também gravitavam o papiloscopista e o fotógrafo, que procuravam vestígios, como impressões digitais, manchas, pêlos, armas e fragmentos diversos. Estes indícios, que normalmente são desapercebidos por uma pessoa comum, constituem-se em peças fundamentais no transcorrer das investigações e no esclarecimento de um crime.

Macário entrou no quarto. O intrépido detetive tinha um instinto apurado. Inúmeras vezes, baseado exclusivamente neste atributo, ele agia com determinação, preterindo fatos aparentes e procedimentos padrão, conduta que lhe redundava em bons resultados. Como sempre, objetivava ter sua impressão do local do crime. Silente, caminhou cuidadosamente até onde estava o cadáver do policial. Agachou ao lado dele e passou a analisá-lo. Seus olhos perscrutadores observaram a rigidez cadavérica e a posição do corpo, bem como as lesões aparentes e os cartuchos deflagrados próximos da porta. Em seguida, ele levantou-se e dirigiu-se para o cadáver da mulher. Novamente observou os mesmos aspectos sob os quais analisou o corpo de Alcides. Introspectivo, cruzou os braços, olhando em derredor. Havia algo de errado.

O Alcides era um policial experiente... ele foi morto com sete tiros... se formos analisar o fato, tecnicamente, o crime tem caráter de execução e não de um latrocínio...

Na mente do detetive havia um movimento febril de idéias e perguntas. Ele saiu do quarto e caminhou em direção à cozinha.

... quando entrei na casa percebi que a porta da frente não foi forçada ou arrombada...

Suas mãos averiguaram a porta dos fundos e seu umbral.

Essa porta também não foi forçada e nem arrombada...

No momento seguinte, ele passou a percorrer os quartos, verificando as janelas, para depois voltar à cena do crime. Um perito de cabelos grisalhos estava ao lado da cama e fazia anotações numa prancheta. Macário aproximou-se e interpelou-o.

- Luciano, sabe me dizer se a porta da frente foi encontrada aberta pelo policial ou pela equipe que atendeu a ocorrência?

- Não, a porta não estava aberta, segundo me informaram os policiais.

- Quando eles chegaram até aqui, entraram pela porta dos fundos?

- Sim, ela foi encontrada aberta.

Não há vestígios visíveis de arrombamento nas portas e janelas da casa, indicando que o assassino certamente era pessoa que pertencia ao universo de relacionamentos de uma das vítimas, no caso o Alcides... ele penetrou na casa com facilidade, talvez porque conhecia o lugar... é possível que tenha conseguiu, por meios escusos, uma cópia da chave da porta dos fundos, acesso que facilitou sua invasão ao interior da casa... ele deve ter seguido o casal até aqui e os surpreendeu num momento de intimidade... não há vestígios de luta corporal e a coisa deve ter acontecido rápido, o Alcides não teve tempo para reagir... foi executado, morto a sangue frio... é possível que a garota não tenha relação nenhuma com o crime, mas pelo fato de estar presente foi morta também... o quarto foi revirado, indicando que o assassino procurava alguma coisa... resta a dúvida se realmente encontrou o que procurava...

- A que horas você calcula que o crime aconteceu?

- Pelo que levantamos deve ter ocorrido, aproximadamente, entre uma e duas horas da madrugada...

- Qual o calibre dos cartuchos deflagrados?

- São de uma pistola nove milímetros...

- Impressões digitais?

- Não, o assassino não deixou marcas residuais de sua presença...

Um instante de silêncio e o detetive percebeu que o perito meneou a cabeça.

- O que foi?

- É algo interessante.

Macário franziu as sobrancelhas.

- Do que se trata?

- Esse crime tem algo de incomum, por alguns fatores... primeiro, normalmente os crimes aqui na cidade ocorrem nas ruas, em terrenos baldios... segundo, há muito tempo eu não vejo um local de crime tão limpo... e terceiro, aqui em São João os assassinos não se preocupam em não deixar vestígios, são assassinos conhecidos e que normalmente estão envolvidos com o tráfico de drogas, eles não tem nada a perder, por isso não se preocupam em limpar o local... mas o sujeito que fez isso é cuidadoso, não quer ser descoberto...

- Você quer dizer que parece serviço de gente de fora? – indagou o detetive.

- Parece que sim, trabalho de profissional.

- Alguma informação sobre a garota?

- Seus documentos a identificam como Débora Dantas de Pessoa... ela reside em outra cidade, mas estuda na UFSJ.

- Vocês já recolheram a bolsa dela?

- Sim.

- Posso vê-la?

- Claro.

O perito foi até um canto do quarto e apanhou um grande saco plástico que envolvia a bolsa da vítima. Ele forrou o chão com outro saco e despejou o conteúdo da bolsa sobre ele. Macário agachou-se e retirou uma caneta do bolso. Devagar, passou a verificar, com a ponta da caneta, os objetos pessoais da jovem assassinada.

Batom, caneta, escova de cabelos, rímel, fio dental, óculos de sol, preservativo...

O olhar observador do detetive fixou-se numa caixa de fósforos, com a propaganda de uma casa noturna da cidade, chamada Rosas da Noite.

Eu conheço essa boate... ela fica no final da rua Josué de Queiroz, no bairro Pio XII... é um prostíbulo...

Em seguida, seu olhar deparou-se com um convite de divulgação, muito colorido, de uma festa de jovens universitárias, no qual constava o nome de uma residência coletiva de estudantes: República das Meninas das Geraes.

Débora devia residir nessa república...

Macário levantou-se. Andou pelo quarto e parou junto a um dos criados-mudos. A ponta de sua caneta vasculhou as cinzas e guimbas de cigarro que se amontoavam no cinzeiro de porcelana.

Guimbas de cigarro... marca Hollywood...

- Luciano, vocês encontraram alguma coisa importante que possa me ajudar?

O perito interrompeu o que fazia e voltou-se para o detetive.

- Em primeira análise, relacionando as guimbas de cigarro presentes neste cinzeiro, com uma que encontramos próxima da porta dos fundos... verificamos que suas marcas são diferentes... estas são mais antigas e que aquela é nova, recentemente descartada, podendo pertencer ao assassino.

- É possível ver a marca daquela que vocês encontraram?

- Sim, é Hollywood.

O detetive ficou pensativo.

A guimba que foi encontrada pela perícia lá fora é da marca Hollywood... possivelmente pode pertencer ao assassino... e essas que estão aqui são de marcas diferentes... tenho que checar qual a marca de cigarros que o Alcides costumava fumar e se a garota fumava... Tenho que descobrir se a marca que fumavam era da mesma da guimba encontrada pela perícia...

Macário retornou para a sala, juntando-se ao grupo que confabulava sobre o crime ocorrido.

- Pessoal, acho melhor irmos para casa – disse o delegado. – Amanhã quero uma reunião na minha sala, às dez horas, levantem tudo o que puderem para que possamos iniciar as investigações...

Naquele instante as palavras do delegado foram interrompidas pelos homens que passavam pelo grupo. Eles removiam os corpos de Alcides e Débora para o carro de transporte de cadáver que os levaria para o necrotério. Herval consultou o relógio de pulso.

- No momento não podemos fazer nada, vamos para casa descansar um pouco...

O grupo dispersou-se, abandonando a cena do crime. Herval percebeu que Macário ficou parado onde estava, introspectivo.

- Você não vem?

Macário e Herval eram velhos amigos. Na intimidade não havia formalidades entre eles.

- O que você acha da morte do Alcides?

O delegado enfiou as mãos nos bolsos das calças e fitou o amigo nos olhos.

- Eu não conhecia o Alcides além do trabalho na delegacia... era um bom detetive, homem de poucas palavras e de poucos relacionamentos, exceto com o Divério, a quem vivia grudado... não tenho maiores informações sobre ele... você sabe de alguma coisa?

- Pouco além disso, mas nada relevante...

- Infelizmente, nós sabemos que existem policiais corruptos na delegacia, que andam envolvidos com o tráfico e o crime organizado, e que não temos como provar que agem ilicitamente... você sabe se o Alcides era corrupto?

- Não posso afirmar... ele era um sujeito calado, de poucos relacionamentos... não sei nada sobre ele...

- Mas se eu bem conheço você, tem alguma coisa matutando nessa sua cabeça – disse o delegado.

- Meu instinto está me atormentando, Herval... o Alcides devia estar envolvido com alguma coisa que redundou em sua morte e da garota... é bem provável que ele soubesse de alguma coisa importante e que talvez estivesse a ponto de delatar seus comparsas...

- Por isso deram fim a sua vida... mas, meu amigo, é isso que vamos tentar descobrir... vamos, vamos embora, amanhã nós começamos a investigar o caso.

Os dois policiais deixaram a casa, dirigindo-se para seus respectivos carros.

domingo, 25 de julho de 2010

DIA DO ESCRITOR 2010

Poucas pessoas sabem o que se comemora no dia 25 de julho. Tenha certeza que, se o Dia do Escritor se fosse feriado nacional, data que permitisse que todos abandonassem seus empregos e fossem à praia, ao futebol ou às compras, seria um dia lembrado por todos os brasileiros. Mas escrever é algo irrelevante para a maior parte da sociedade brasileira. Certamente esta é a razão de sermos um país “sempre” em desenvolvimento.

Escrever é uma forma de comunicação, de falar com as outras pessoas. Complexa, sem dúvida, mas não inatingível. Para muitas pessoas, escrever é um verdadeiro suplício. Quando elas têm que expressar suas ideias ou pensamentos através da escrita, para redigir uma simples carta ou redação escolar sentem imensas dificuldades. Para outras, escrever é algo muito simples, quando não percebem que o que escrevem não passa de bobagem, de texto sem estrutura e teor, ou ainda, quando julgam que aquilo que depositaram sobre o papel é algo criativo, inovador, formidável. Realmente, escrever para quem não gosta, não tem aptidão ou pendor, é atividade desconfortável, desagradável e entediante. Porque escrever é uma atividade que exige criatividade, entusiasmo, perseverança, equilíbrio e dedicação, qualidades imprescindíveis ao escritor. Aqueles que escrevem com seriedade e primor tentam, a duras penas, compartilhar equilíbrio, emoções, sentimentos, conhecimentos e apoio a seu semelhante. Escrever é atividade de criação a partir do nada, do papel em branco, imprimindo-lhe sinais gráficos, letras, que formarão palavras, que darão forma e conteúdo ao texto. Escrever uma narrativa ou redigir uma redação não é simplesmente colocar no papel aquilo que corre na mente como as torrentes de um ribeirão revolto. É harmonizar palavras, frases, dando-lhes teor, consistência, brilho estético, profundidade. Escrever com primor é tarefa de lapidação que nos obriga a ter disciplina, esmero, meticulosidade, mansidão e inesgotável paciência. Escrever não pode ser uma atividade encarada como bobagem, como idiotice como inúmeras pessoas julgam. É triste que pensem assim.

Escrever é um ofício menosprezado pela maioria dos brasileiros. Até porque poucas pessoas realmente leem. Elas acham que ler é perda de tempo, ainda mais escrever. Acham que a escrita é coisa inútil, improdutiva, que quem escreve é gente que não tem o que fazer, ociosa, que provavelmente não conseguirá publicar o que escreveu. Mas há pelo menos uma razão para a maioria da população pensar assim. Essa maioria não lê, não porque não gosta, mas porque não é incentivada. Os livros no Brasil são extremamente caros e não há interesse que o povo se torne culto, esclarecido. A classe dominante não deseja que a maioria empobrecida adquira conhecimentos, se torne culta, tenha consciência de princípios e valores morais. Quem sabe quer mais, entende mais, não aceita mais. Infelizmente, devido à conjuntura nacional o povo não tem dúvidas diante do dilema de comprar um livro ou um sanduíche para saciar a fome.

O escritor é um solitário, um ser incompreendido que busca na escrita seu alívio, sua alegria, sua realização. Quando senta diante do monitor ou da folha de papel, sua mente se liberta de todas as correntes que a manietam, expressando livremente o que circula em seu coração. Ele “confessa” seu íntimo ao próximo, sem se preocupar com o que ele ou outrem vão pensar de suas criações. Compartilha sem temor ou vergonha suas alegrias, ideias, emoções, angústias e medos. E apesar das dificuldades, das críticas mordazes, sua maior recompensa emerge de maneira vibrante quando é lido, mesmo que de forma irrelevante e descompromissada.

Muitos que escrevem se intitulam escritores, mas na realidade não o são. Não tem pendor, vocação. Emprestam suas ideias e pensamentos a terceiros que possuem o dom e com recursos financeiros publicam suas criações. Publicam, não são publicados. Na realidade não há mérito em suas obras. Talvez seja essa a razão porque, muitas vezes, compramos livros que depois da leitura nos arrependemos. Nem tudo que é publicado tem valor literário, agrada ao leitor.

Tornar-se um escritor reconhecido é tarefa hercúlea. Tantos escrevem com dedicação e primor, por anos, e nunca são reconhecidos por suas belas obras. Ser um escritor de renome é uma conquista imprevisível. É algo como acertar na loteria. Arrisca-se todas as semanas, mas ganhar sozinho todo o prêmio é fato que não se pode prever.

Que este dia não passe em branco, pelo menos nos corações dos escritores e daqueles que amam a literatura. Aos meus colegas de ofício, não desanimem, continuem a escrever e felicidades.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

UM HOMEM CHAMADO MACÁRIO (6)

- Eduardo? O que foi Eduardo? – disse Cibele percebendo o olhar devaneante do detetive.

Ele despertou, apresentando uma expressão constrangedora.

- No que você estava pensando?

- Na minha vida... sou um homem solitário, não sou de ter muitos relacionamentos, acho que devido à minha profissão, afinal quem quer compartilhar suas emoções, seus sentimentos com um homem que vive arriscando a vida no combate ao crime?... quem deseja ter como marido um sujeito que sai no meio da madrugada para realizar campanas?... acho que poucas mulheres se sujeitam a esse modelo de vida...

- Sim, é verdade, poucas...

- Então?... mas quanto ao fato de não levar você logo para a cama, é uma questão de respeito, gostei de você desde o momento que te vi no pronto-socorro, naquele fim de tarde chuvoso...

As palavras de Macário tinham o efeito de ondas espumosas e cristalinas de um mar bravio, a arrebentar, em sons díspares e estridentes nas encostas escarpadas do coração de Cibele. O olhar da médica novamente cintilou, mas com um brilho diferente.

- Você pode achar que não, mas se tornou importante para mim, para a minha vida...

Um momento mágico estabeleceu-se e eles ficaram calados, tocados pelo calor de suas essências. Suas respirações desequilibraram-se, seus anseios emergiam, exalados pelos poros, como fragrâncias inebriantes que evolavam em torno deles, numa união sideral de identidades.

- Estou, estou apaixonado por você – pronunciou o detetive esfuziante.

A essencialidade de suas palavras envolveu o espírito da médica. Seus olhares encontraram-se e ela sentiu-se tragada a um recôndito do coração do homem da lei. Um coração que inegavelmente era quente para ela e frio para aqueles que maculavam os princípios da justiça.

- Você é importante para mim... quero que acredite nisso – afirmou o detetive compenetrado.

Num movimento tenro e suave, ele estendeu o braço e tocou sua mão que repousava sobre a toalha da mesa. Eles ficaram entreolhando-se.

- Está realmente apaixonado por mim?

- Meus olhos não dizem isso?

- Será que posso acreditar em você?

- Porque eu mentiria?

- Homens já mentiram para mim, visando apenas um objetivo.

Um homem verdadeiramente apaixonado é capaz de atos idílicos. Seu espírito pode desentranhar efusivo o amor desconhecido, o sentimento que lhe é mais caro.

- Não tenho porque mentir... me apaixonei por você, me apaixonei pela sua voz, pelo seu sorriso, por tudo em você...

- Tão rápido?

- Ouvi dizer que o nosso coração desconhece o fator tempo quando o amor está para desabrochar... me apaixonei por você, por cada instante que estivemos juntos, em todos os momentos que nos vimos, que conversamos pelo telefone.

Cada palavra, gesto ou olhar de Macário perturbava o coração de Cibele. Tornava-se difícil para ela não evidenciar o que sua alma desejava manifestar.

- Eduardo, é que eu, eu já sofri muito porque me apaixonei pela pessoa errada – disse a médica, a voz embargada. – Os homens que conheci só queriam uma coisa comigo... minha mãe diz que poucos homens dizem a verdade e eu... eu estou cansada de mentiras.

A mão do detetive, que tocou Cibele, passou a acariciá-la.

- Já abusaram dos meus sentimentos e eu não quero ser mais um objeto nas mãos dos homens, não quero...

- Entendo e imagino que já passou, mas não posso garantir nada, apenas que estou verdadeiramente apaixonado por você e que te respeito... talvez não acredite, mas digo a verdade.

Cibele ficou a encará-lo. Demoradamente. Os segundos que se passaram pareciam para os dois uma eternidade.

- Posso acreditar no que você disse agora há pouco? Posso acreditar que não está mentindo, como os outros?

O detetive apoiou as costas no espaldar da cadeira, fitando-a nos olhos.

- Se eu disser que digo a verdade, seria muito óbvio... acho que meu comportamento prova o que sinto, olhe nos meus olhos, sinta o meu coração, perceba se digo a verdade, se sou sincero com você...

A médica continuou a encará-lo por alguns segundos. Ela também estava apaixonada e não queria demonstrar seus sentimentos. As mãos entrelaçaram-se e ela sorriu.

- Acho que posso acreditar em você.

Eles terminaram o jantar e Macário levou-a para casa. O carro do detetive estacionou em frente ao prédio onde ela morava, no bairro onde se concentrava a classe média da cidade. Eles desceram e caminharam até a porta envidraçada da portaria.

- Gostou do jantar?

- Gostei, claro que gostei, se ainda não disse, eu adorei... há muito tempo eu não saboreava uma comida tão suculenta como aquela.

- O Villeiros é um excelente restaurante – disse o detetive. – Sou cliente da casa.

- Já levou outra mulher para jantar no Villeiros?

O detetive sorriu explicitamente.

- Eu não sabia que você era ciumenta.

- Sou e assumo que sou... sou porque tudo que valorizo, é importante para mim... você já levou outra mulher no Villeiros?

- Não, ali não... como eu disse, sou um homem de poucos relacionamentos.

Ela sorriu.

- Bom, acho melhor eu subir, amanhã tenho um longo dia de trabalho...

Ele aproximou-se e segurou suas mãos.

- É ruim deixar você – disse o detetive. – Gosto de estar com você, a tua companhia me faz bem, como ninguém fez até hoje.

O toque propagou o calor de seu corpo, que aqueceu, ainda mais, o ebulitivo coração da médica. O corpo em formosura, naquele instante, foi perturbado por algo prodigioso, delicado e aconchegante. Ela tentou desviar o olhar. Instintivamente, mordeu o lábio inferior, quando sentiu suas entranhas umedecerem, tentando controlar o desejo irrefreável que a dominou.

- Cibele...

Os olhos azuis, da morenice brejeira, fitaram-no nos olhos. Ele aproximou-se mais e seus rostos tocaram-se. No leve contato da pele, eles cerraram os olhos. A língua de Cibele, num movimento discreto, percorreu a boca retocada no toalete um pouco antes de sair do restaurante, deixando-a umedecida.

- Cibele...

- Eduardo...

Ele passou a beijar, com delicadeza, as faces do rosto macio. O coração da médica passou a palpitar mais rápido.

- Cibele, Cibele... – sussurrou o detetive.

Suas mãos cingiram a cintura torneada e, num ardume, ele beijou-a. A médica abraçou-o com vigor, não conseguindo mais reprimir o desejo que lhe perturbava. As sôfregas mãos acariciavam os corpos, em regozijo, ora passando pelos cabelos, ora percorrendo as costas. O ósculo foi longo, doce, intenso. Ao fim dele, Cibele acariciou o rosto de Macário.

- Acreditei no que você me disse – murmurou a médica. – Até mais ver...

Ela afastou-se rápido e abriu a porta envidraçada. Caminhando depressa, olhou para trás, notando que era perseguida pelo olhar apaixonado do detetive. Em segundos, desapareceu no saguão da portaria, subindo as escadas de acesso ao pavimento superior. O detetive ficou extasiado. Seus pensamentos entraram em efervescência pelo momento que se formou. Súbito, ele percebeu que estava sozinho, com a imagem de Cibele caminhando dentro de sua mente. Com um radiante sorriso nos lábios, embalou a cabeça, volvendo o corpo. Com as mãos nos bolsos retornou para o carro e partiu.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

O CASO BRUNO E O CASO MÉRCIA

A violência aumenta e se diversifica. É o que vemos nos jornais televisivos e lemos nos periódicos. Anteriormente foi o caso Isabela Nardoni, marcado por imensa brutalidade, agora, quase simultaneamente ocorrem os casos Bruno e Mércia. O ponto crucial de todos foi a violência contra a mulher. Matar por ciúme? Matar por não desejar assumir a paternidade de uma criança? O homem, a cada evolução, regride em sua conduta. Animaliza-se. Parece que o universo masculino perdeu o discernimento, esqueceu a empatia por seu semelhante, ou pior, deixou-se levar pelo ódio, pelo ressentimento desperto pelas emoções que o dominam momentaneamente. Por não existir dom maior que a vida, não há o que justifique matar um ser humano ou atentar contra sua integridade física. Mas a culpa deve ser focada unicamente no homem, no macho? Acho que não.

A serpente (fêmea) seduziu Eva, que por sua vez seduziu Adão a cometer o pecado de comer o fruto proibido. Talvez a fonte de todos os erros comece aí. A mulher ao longo do tempo, em todos os tecidos da sociedade, foi buscando, mesmo que de forma discreta, ascender ao patamar masculino. Um grande avanço foi a comercialização da pílula anticoncepcional por volta de 1960. Por inibir a fertilização e promover o planejamento familiar, a pílula foi criticada por diversos setores, pois sua instituição permitiu às mulheres mudanças de comportamento sexual, dando-lhes autoconfiança e maior liberdade, fato que alterou o quadro social e o processo natural de reprodução. A mulher passou a relacionar-se com o homem que desejava sem temer o risco de engravidar. Simultaneamente, permitiu uma maior flexibilização dos valores morais e o ingresso da mulher no mercado de trabalho. Mas a consciência feminina não previa e nem imaginava que essa ampla e redentora liberdade acabasse por distorcer-se tão severamente ao longo dos tempos, levando gerações a despojar-se de valores imprescindíveis ao caráter e a própria valorização da mulher. A imoralidade e a prostituição que se restringiam a uma parcela de mulheres da sociedade, devido à condição econômica em que estavam inseridas, mesclaram-se aos padrões de conduta e decência então vigentes, descaracterizando-se. Em consequência, inúmeras mulheres passaram a adotar uma conduta lasciva e luxuriante sem se a perceber disso. Perderam o senso de preservação, de caráter, deixando de discernir aquilo que era correto, respeitável, daquilo que lhes comprometia a moralidade, a dignidade. Este processo se propagou de geração em geração e a sociedade não tem mais como corrigir essa terrível falha comportamental. Não afirmo que as mulheres envolvidas nas fatalidades em tela pertençam ao referido segmento feminino, entretanto, é visível que não souberam escolher seus consortes em função dos homens com os quais se envolveram.

Em contrapartida, diante desta postura feminina, o homem passou a ver a mulher não como companheira, não como alguém com quem pode compartilhar sua felicidade e anseios, mas como um ser (frágil) que se equiparava a ele, em atributos e capacidades. A mulher passou a ser encarada como um igual, que alçou posições tipicamente pertencentes a esfera masculina. Em face da premissa, o homem passou a não conter suas emoções, permitindo que a violência tomasse conta das relações amorosas que contrai. A mulher tornou-se vítima desta violência, bem como seus filhos.

A advogada Mércia Nakashima, 28 anos de idade, desapareceu em 23 de maio e foi encontrada morta no dia 11 de junho em uma represa em Nazaré Paulista, interior de São Paulo. Exames comprovaram que ela levou um tiro no rosto antes de morrer. A polícia ainda investiga se Mércia foi mantida em cativeiro antes de ser assassinada. O ex-namorado Mizael Bispo de Souza, um homem ciumento com o qual ela manteve relacionamento por quatro anos estava foragido, pois é o principal suspeito de articular e executar a morte da advogada, mas com a suspensão de sua prisão preventiva, ele reapareceu e está para ser ouvido novamente pelo delegado responsável.

A ex-modelo Eliza Samudio, 25 anos de idade, teve um envolvimento amoroso com o goleiro Bruno Fernandes das Dores de Souza, em maio do ano passado. Possivelmente deste relacionamento nasceu uma criança para qual ela solicitava um teste de DNA ao goleiro para verificar a paternidade da criança. Segundo as investigações da polícia, ele e mais sete pessoas estão envolvidos no sequestro, cárcere privado e assassinato de Eliza, que continua desaparecida até o presente momento.

Ambas foram atraídas por seus amantes a lugares adequados a execução de suas mortes. Traídas por aqueles que deveriam zelar por suas vidas, em qualquer contexto social ou amoroso em que estivessem. Os algozes pensavam que poderiam cometer tais atrocidades e permanecer impunes, mas a justiça humana, mesmo que falha algumas vezes, acaba por ser guiada pela justiça divina e somente aquele que nos concede a vida pode retirá-la. Devemos nos compadecer da dor que as famílias estão vivenciando no momento e concentrar nossos anseios para que os responsáveis sejam presos e punidos no rigor da lei.