em memória de Jorge Luis Borges
Tempo. Tempo era o que ele mais precisava e não mais teria. Talvez para fugir ou para articular uma alternativa. Consultava regularmente o relógio de pulso e parecia que o avançar dos dígitos, marcava o estrangulamento do tempo que lhe restava. Sentado sozinho numa mesa do bar, ele observava a chuva que despencava das alturas, muito escuras, correr pelas calçadas e sarjetas e desaparecer nos bueiros. Sentia-se angustiado e melancólico. Como em tempos pretéritos, em que freqüentava os bancos escolares e usava calças curtas, em que faltava comida na mesa de casa. Aquela vida, o tempo se encarregou de levar, como as águas da chuva que fugidias, lavavam a rua. Precocemente ingressara no submundo, atolando no lodo da criminalidade. Não era infeliz. Tinha as mulheres que queria, não lhe faltava dinheiro, mas no íntimo havia a frustração, o desapontamento em relação à vida. Bebeu um gole de cerveja e acendeu mais um cigarro, que se juntaria ao que restou dos outros no cinzeiro que estava diante dele.
Consultou novamente o relógio. O tempo passava e sua apreensão aumentava. Aquele que aguardava, estava atrasado. Seria portador da decisão, solicitada em caráter revogatório. Ele não era de rejeitar as servidões impostas pelo patrão, mas naquela havia uma excepcionalidade. A paga seria muito boa, sem dúvida, muito além do costume. Mas não suplantaria a inquietação que, inevitavelmente, instalar-se-ia em sua consciência. Nenhum outro a recusaria, mas ele não. Sua mente o atormentava pela exceção e não pela natureza do serviço. Matar um homem ou uma mulher para um assassino profissional não era nada de excepcional. Era somente planejar e executar o crime. Quem, quando, onde e como. Simples. Depois receber o pagamento e gozar de suas benesses. Mas naquele caso, sua tarefa de eliminar um policial, não seria tão fácil.
Um bafejo frio entrou pela porta, que não distava da mesa onde ele estava, eriçando os pêlos de seu torso. Ele fechou a jaqueta aberta e ergueu a gola. Impaciente, tragou o cigarro. No instante que consultou o relógio, foi surpreendido com a entrada brusca daquele que esperava.
O homem usava um guarda-chuva para se proteger. Vestia calça jeans, casaco escuro de brim e sapatos de borracha. Tamanho 44. Sua expressão enrijecida logo identificou Ronaldo, pessoa com quem tratava com pouca freqüência, em vista que um chefão do crime organizado não determinava a eliminação de um desafeto a todo o momento. O homem se aproximou e sentou-se diante dele. Num aceno, o grandalhão pediu uma cerveja. Ronaldo observou sua aparência há tempos esquecida e depois o fitou nos olhos. O assecla tinha os olhos escuros e expressão sisuda, demonstrando que, como Ronaldo, era um soldado do crime.
- O patrão aceitou meu pedido?
O grandalhão retirou um cigarro do bolso do casaco e com um aceno, inclinou-se para ele.
- Posso?
Ronaldo cedeu-lhe o cigarro que fumava. Depois de uma tragada profunda, a incandescência fez arder o cigarro do grandalhão.
- O patrão disse que tem seus motivos e que o serviço é seu, de mais ninguém.
Ronaldo alteou as sobrancelhas e arregalou os olhos.
- O quê?! Não pode ser verdade!
O grandalhão olhou ao redor. O bar estava praticamente vazio, mas os ébrios da noite perceberam a exaltação de seu acompanhante.
- Fale baixo... eu não sou surdo e nem quem está aqui.
- Você só pode estar brincando comigo! – murmurou Ronaldo. – Eu não posso, eu não posso matar o meu irmão!
O grandalhão tragou o cigarro e sorriu.
- Esqueceu que Caim matou Abel – disse sarcasticamente. – Você não será o primeiro e nem o último a fazer isso... é ordem do patrão...
Ronaldo ficou pensativo e mais tenso. Sabia das regras. Se não obedecesse, seria morto no lugar do irmão, que era um espião na polícia e que passara a desviar dinheiro dos negócios do chefão. O grandalhão bebeu um longo gole de cerveja e sentenciou:
- Você não tem mais tempo... o serviço deve ser feito ainda nesta noite... ligue para mim, avisando quando terminar e...
Súbito, o grandalhão levantou e inclinou-se na mesa, aproximando-se do rosto de Ronaldo. Fulminou-o nos olhos e sussurrou:
- Não falhe!
Com o guarda-chuva na mão foi até a porta e desapareceu na precipitação esbranquiçada que ainda caía. Ronaldo não mais bebeu. A tensão que o dominava se agravou. Uma dor aguda percorreu sua cabeça, dando-lhe a sensação de mal-estar. Ele não queria realizar o serviço, não queria matar o próprio irmão, mas não tinha saída. Deliberadamente mergulhara na lama e agora não mais conseguia sair dela. Vendera sua alma ao diabo e ele veio cobrá-la. Silente, pagou as bebidas e saiu.
A casa se localizava na periferia da cidade de Contagem. Heitor era casado e não tinha filhos. A mulher não gostava de filmes de ação e foi dormir. Ele se conformava em ficar acordado sozinho até o fim da madrugada assistindo DVD. Sentado numa poltrona, emocionava-se com as cenas arrojadas e violentas.
Por frequentar a casa, Ronaldo conhecia os costumes do irmão e da cunhada. Esta familiaridade facilitaria sua missão, sendo este um dos motivos por ter sido escolhido pelo criminoso que o subjugava. Estacionou o carro na rua de trás e consultou o relógio. Não teria muito tempo para agir. Não estaria agindo contra uma vítima comum e deveria tomar todos os cuidados necessários. Fugiria muito rapidamente, em vista que não pretendia matar a cunhada. Desembarcou do carro e passou a percorrer o terreno baldio que se localizava nos fundos da casa. O capim alto e cortante dificultou sua progressão, deixando-o mais furioso. Furioso ele já estava, por não poder dar um tiro na cara do grandalhão que cheirava a perfume barato e no patrão que nunca vira, acabando assim com seu tormento. A idéia de matar o irmão o angustiava há dois dias. Hesitava, achando que aquilo viraria um suplício permanente caso se efetivasse. Pulou o muro dos fundos e percorreu o quintal, caminhando rápido e sinuosamente por entre as árvores. Usava um capuz e roupas escuras para não ser identificado. Aproximou-se cautelosamente da porta da cozinha e com uma gazua a abriu. Sacou a pistola e colocou um silenciador. Percorreu a cozinha e o corredor. No momento que passou pelo quarto do casal, viu a cunhada dormindo pesadamente, embalada em seus cem quilos de peso. Fechou a porta do quarto e a trancou por fora, a fim de evitar interrupções indesejáveis. Seguiu em frente. Com as costas premidas contra a parede, aproximou-se do umbral da porta da sala. De soslaio, identificou o irmão que calmamente assistia ao filme. Ficou imóvel. Pensou na missa que ia aos domingos, para pedir perdão por seus pecados. Pensou na falecida mãe. Pensou na emboscada armada por Caim, possuído de ciúmes, contra Abel. Pensou no pecado maldito que iria cometer naquela madrugada. No ato hediondo que marcaria de forma indelével sua consciência. Estava encurralado. Não tinha como voltar atrás. Pulou para a sala e apontando a arma, vociferou:
- Levante! Desgraçado!
Surpreendido, Heitor levantou-se num sobressalto e se deparou com um homem encapuzado.
- Ei! Calma, calma!! Não me mate, por favor, não me mate!
- Cale a boca! Seu desgraçado! Você vai morrer!
A mão do assassino encapuzado, que normalmente empunhava a arma com firmeza, tremia, como acontecera somente na primeira vez que matou.
- Eu tenho pouco dinheiro, mas dou tudo o que tenho, mas não atire!
- Droga! Eu não quero seu dinheiro!
Heitor percebeu algo de familiar na voz que o agredia. Por debaixo do capuz, o irmão suava frio.
- Essa voz – disse o policial contraindo as sobrancelhas. – Eu conheço essa voz...
Ronaldo empalideceu. Tentara distorcer o tom de voz para não ser identificado. O reconhecimento pesaria em sua consciência já muito atormentada.
- Você, você é o...
Os disparos foram consecutivos e precisos. Um projétil atingiu o peito, próximo do coração; outro, a base da garganta; e o terceiro, a região das costelas. Heitor caiu ruidosamente diante da poltrona onde estava sentado. O sangue começou a espalhar-se pelo piso da sala. Ronaldo se aproximou e, nervosamente, verificou o estado do irmão. Ele estava morto. Pensou que devia fugir rapidamente dali. No instante que se levantou, assustou-se quando viu um vulto sob o umbral da porta da cozinha. Antes que pudesse tomar qualquer atitude, foi atingido duas vezes no peito, que se abriu. Tombou e a pistola escapuliu de sua mão. Ferido e tomado pelo desespero, começou a rastejar, deixando uma nódoa de sangue por onde passava. Antes que alcançasse sua arma, o grandalhão célere foi até onde ele estava e atirou mais duas vezes em sua cabeça. Ronaldo teve um forte espasmo e ficou imóvel. O segundo assassino retirou o silenciador da pistola e a guardou no coldre axilar. Olhou para o cadáver retorcido e, com um sorriso desdenhoso, disse:
- Seu tempo... também acabou.
Despreocupado em ser identificado ou capturado, o grandalhão saiu caminhando pela porta da frente, desaparecendo sob o véu da escuridão.