Seja bem vindo

"A literatura insinua e coloca questões muito mais do que as responde ou resolve."

-------------------Milton Hatoum, escritor brasileiro



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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O TEMPO

em memória de Jorge Luis Borges


Tempo. Tempo era o que ele mais precisava e não mais teria. Talvez para fugir ou para articular uma alternativa. Consultava regularmente o relógio de pulso e parecia que o avançar dos dígitos, marcava o estrangulamento do tempo que lhe restava. Sentado sozinho numa mesa do bar, ele observava a chuva que despencava das alturas, muito escuras, correr pelas calçadas e sarjetas e desaparecer nos bueiros. Sentia-se angustiado e melancólico. Como em tempos pretéritos, em que freqüentava os bancos escolares e usava calças curtas, em que faltava comida na mesa de casa. Aquela vida, o tempo se encarregou de levar, como as águas da chuva que fugidias, lavavam a rua. Precocemente ingressara no submundo, atolando no lodo da criminalidade. Não era infeliz. Tinha as mulheres que queria, não lhe faltava dinheiro, mas no íntimo havia a frustração, o desapontamento em relação à vida. Bebeu um gole de cerveja e acendeu mais um cigarro, que se juntaria ao que restou dos outros no cinzeiro que estava diante dele.

Consultou novamente o relógio. O tempo passava e sua apreensão aumentava. Aquele que aguardava, estava atrasado. Seria portador da decisão, solicitada em caráter revogatório. Ele não era de rejeitar as servidões impostas pelo patrão, mas naquela havia uma excepcionalidade. A paga seria muito boa, sem dúvida, muito além do costume. Mas não suplantaria a inquietação que, inevitavelmente, instalar-se-ia em sua consciência. Nenhum outro a recusaria, mas ele não. Sua mente o atormentava pela exceção e não pela natureza do serviço. Matar um homem ou uma mulher para um assassino profissional não era nada de excepcional. Era somente planejar e executar o crime. Quem, quando, onde e como. Simples. Depois receber o pagamento e gozar de suas benesses. Mas naquele caso, sua tarefa de eliminar um policial, não seria tão fácil.

Um bafejo frio entrou pela porta, que não distava da mesa onde ele estava, eriçando os pêlos de seu torso. Ele fechou a jaqueta aberta e ergueu a gola. Impaciente, tragou o cigarro. No instante que consultou o relógio, foi surpreendido com a entrada brusca daquele que esperava.

O homem usava um guarda-chuva para se proteger. Vestia calça jeans, casaco escuro de brim e sapatos de borracha. Tamanho 44. Sua expressão enrijecida logo identificou Ronaldo, pessoa com quem tratava com pouca freqüência, em vista que um chefão do crime organizado não determinava a eliminação de um desafeto a todo o momento. O homem se aproximou e sentou-se diante dele. Num aceno, o grandalhão pediu uma cerveja. Ronaldo observou sua aparência há tempos esquecida e depois o fitou nos olhos. O assecla tinha os olhos escuros e expressão sisuda, demonstrando que, como Ronaldo, era um soldado do crime.

- O patrão aceitou meu pedido?

O grandalhão retirou um cigarro do bolso do casaco e com um aceno, inclinou-se para ele.

- Posso?

Ronaldo cedeu-lhe o cigarro que fumava. Depois de uma tragada profunda, a incandescência fez arder o cigarro do grandalhão.

- O patrão disse que tem seus motivos e que o serviço é seu, de mais ninguém.

Ronaldo alteou as sobrancelhas e arregalou os olhos.

- O quê?! Não pode ser verdade!

O grandalhão olhou ao redor. O bar estava praticamente vazio, mas os ébrios da noite perceberam a exaltação de seu acompanhante.

- Fale baixo... eu não sou surdo e nem quem está aqui.

- Você só pode estar brincando comigo! – murmurou Ronaldo. – Eu não posso, eu não posso matar o meu irmão!

O grandalhão tragou o cigarro e sorriu.

- Esqueceu que Caim matou Abel – disse sarcasticamente. – Você não será o primeiro e nem o último a fazer isso... é ordem do patrão...

Ronaldo ficou pensativo e mais tenso. Sabia das regras. Se não obedecesse, seria morto no lugar do irmão, que era um espião na polícia e que passara a desviar dinheiro dos negócios do chefão. O grandalhão bebeu um longo gole de cerveja e sentenciou:

- Você não tem mais tempo... o serviço deve ser feito ainda nesta noite... ligue para mim, avisando quando terminar e...

Súbito, o grandalhão levantou e inclinou-se na mesa, aproximando-se do rosto de Ronaldo. Fulminou-o nos olhos e sussurrou:

- Não falhe!

Com o guarda-chuva na mão foi até a porta e desapareceu na precipitação esbranquiçada que ainda caía. Ronaldo não mais bebeu. A tensão que o dominava se agravou. Uma dor aguda percorreu sua cabeça, dando-lhe a sensação de mal-estar. Ele não queria realizar o serviço, não queria matar o próprio irmão, mas não tinha saída. Deliberadamente mergulhara na lama e agora não mais conseguia sair dela. Vendera sua alma ao diabo e ele veio cobrá-la. Silente, pagou as bebidas e saiu.

A casa se localizava na periferia da cidade de Contagem. Heitor era casado e não tinha filhos. A mulher não gostava de filmes de ação e foi dormir. Ele se conformava em ficar acordado sozinho até o fim da madrugada assistindo DVD. Sentado numa poltrona, emocionava-se com as cenas arrojadas e violentas.

Por frequentar a casa, Ronaldo conhecia os costumes do irmão e da cunhada. Esta familiaridade facilitaria sua missão, sendo este um dos motivos por ter sido escolhido pelo criminoso que o subjugava. Estacionou o carro na rua de trás e consultou o relógio. Não teria muito tempo para agir. Não estaria agindo contra uma vítima comum e deveria tomar todos os cuidados necessários. Fugiria muito rapidamente, em vista que não pretendia matar a cunhada. Desembarcou do carro e passou a percorrer o terreno baldio que se localizava nos fundos da casa. O capim alto e cortante dificultou sua progressão, deixando-o mais furioso. Furioso ele já estava, por não poder dar um tiro na cara do grandalhão que cheirava a perfume barato e no patrão que nunca vira, acabando assim com seu tormento. A idéia de matar o irmão o angustiava há dois dias. Hesitava, achando que aquilo viraria um suplício permanente caso se efetivasse. Pulou o muro dos fundos e percorreu o quintal, caminhando rápido e sinuosamente por entre as árvores. Usava um capuz e roupas escuras para não ser identificado. Aproximou-se cautelosamente da porta da cozinha e com uma gazua a abriu. Sacou a pistola e colocou um silenciador. Percorreu a cozinha e o corredor. No momento que passou pelo quarto do casal, viu a cunhada dormindo pesadamente, embalada em seus cem quilos de peso. Fechou a porta do quarto e a trancou por fora, a fim de evitar interrupções indesejáveis. Seguiu em frente. Com as costas premidas contra a parede, aproximou-se do umbral da porta da sala. De soslaio, identificou o irmão que calmamente assistia ao filme. Ficou imóvel. Pensou na missa que ia aos domingos, para pedir perdão por seus pecados. Pensou na falecida mãe. Pensou na emboscada armada por Caim, possuído de ciúmes, contra Abel. Pensou no pecado maldito que iria cometer naquela madrugada. No ato hediondo que marcaria de forma indelével sua consciência. Estava encurralado. Não tinha como voltar atrás. Pulou para a sala e apontando a arma, vociferou:

- Levante! Desgraçado!

Surpreendido, Heitor levantou-se num sobressalto e se deparou com um homem encapuzado.

- Ei! Calma, calma!! Não me mate, por favor, não me mate!

- Cale a boca! Seu desgraçado! Você vai morrer!

A mão do assassino encapuzado, que normalmente empunhava a arma com firmeza, tremia, como acontecera somente na primeira vez que matou.

- Eu tenho pouco dinheiro, mas dou tudo o que tenho, mas não atire!

- Droga! Eu não quero seu dinheiro!

Heitor percebeu algo de familiar na voz que o agredia. Por debaixo do capuz, o irmão suava frio.

- Essa voz – disse o policial contraindo as sobrancelhas. – Eu conheço essa voz...

Ronaldo empalideceu. Tentara distorcer o tom de voz para não ser identificado. O reconhecimento pesaria em sua consciência já muito atormentada.

- Você, você é o...

Os disparos foram consecutivos e precisos. Um projétil atingiu o peito, próximo do coração; outro, a base da garganta; e o terceiro, a região das costelas. Heitor caiu ruidosamente diante da poltrona onde estava sentado. O sangue começou a espalhar-se pelo piso da sala. Ronaldo se aproximou e, nervosamente, verificou o estado do irmão. Ele estava morto. Pensou que devia fugir rapidamente dali. No instante que se levantou, assustou-se quando viu um vulto sob o umbral da porta da cozinha. Antes que pudesse tomar qualquer atitude, foi atingido duas vezes no peito, que se abriu. Tombou e a pistola escapuliu de sua mão. Ferido e tomado pelo desespero, começou a rastejar, deixando uma nódoa de sangue por onde passava. Antes que alcançasse sua arma, o grandalhão célere foi até onde ele estava e atirou mais duas vezes em sua cabeça. Ronaldo teve um forte espasmo e ficou imóvel. O segundo assassino retirou o silenciador da pistola e a guardou no coldre axilar. Olhou para o cadáver retorcido e, com um sorriso desdenhoso, disse:

- Seu tempo... também acabou.

Despreocupado em ser identificado ou capturado, o grandalhão saiu caminhando pela porta da frente, desaparecendo sob o véu da escuridão.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

MULHERES NO PODER

Qual o maior dos pesadelos dos homens? Traição? Impotência? Pobreza? Todos têm uma solução, que pode não ser a melhor, mas têm. Entretanto, como escapar, como fugir ao poder que emana dos cargos que agora passam às mulheres?

Não é ficção ou coisa do gênero. As mulheres, em maioria na população mundial, estão avançando de forma avassaladora nos redutos masculinos. Mas esta história não começou agora. Ao longo dos anos, diversas conquistas e certames femininos trouxeram direitos às mulheres de todo o mundo. Mas nenhum movimento teve repercussão tão severa quanto a chegada da pílula anticoncepcional ao comércio mundial. Este contraceptivo foi lançado em 1960, nos EUA, e sua aparição causou efeitos colaterais muito além do esperado. Não ocorreu, como muitos esperavam, a simples alteração no processo natural de reprodução. A pílula proporcionou significativa mudança no estilo de vida, tanto do homem, como da mulher. A esta concedeu, num primeiro momento, a liberdade sexual, para depois estimulá-la a rebelar-se contra valores de uma sociedade que considerava moralista e conservadora. Permitiu importantes mudanças comportamentais, dando segurança e maior liberdade às mulheres, bem como promovendo avanços nos direitos femininos. A mulher descobriu sua capacidade de ousar, de vencer barreiras antes vistas como intransponíveis. Este novo patamar no universo feminino consentiu autonomia e liberdade de ação, propiciando uma maior flexibilização dos valores morais e uma grande evolução na história da sociedade: o ingresso definitivo da mulher no mercado de trabalho.

A mulher, desde os primórdios, foi concebida pelo Criador para com o homem reinar sobre o mundo que passaria a viver e não para lhe ser submissa, escrava de todos os seus desejos e vontades. Do homem extraiu uma costela e modelou a mulher, para que ela fosse ossos dos seus ossos, carne de sua carne e não um serviçal ao seu domínio. A pílula anticoncepcional propiciou a revolução de comportamento que mudou o estilo de vida e as escolhas das mulheres. Alterou as relações entre o homem e a mulher e, consequentemente, o sistema familiar. Possibilitou que a mulher se arrojasse além dos limites impostos pelo casamento, espectro no qual ela cumpria o papel e os deveres de esposa e mãe, impingidos pelo sistema patriarcal. Liberta do confinamento da estrutura familiar, a mulher ingressou no mercado de trabalho, condição fundamental para sua irrestrita e ampla emancipação. Este ingresso teve profundos efeitos não somente no âmbito familiar, mas principalmente nos planos social, político e econômico.

As mulheres-de-ontem agiam e pensavam baseadas nos princípios patriarcais. As mulheres-de-hoje conscientizam-se de sua condição feminina e familiar, num mundo de oportunidades que a elas se abre, permitindo o desenvolvimento de suas capacidades. Arrojam-se na literatura, na política, na economia, nas artes e no mercado de trabalho em geral. Conseguiram direito ao voto, ao estudo, a ocupar cargos políticos, militares e em diversas profissões do mercado de trabalho, que eram consideradas como “exclusividades” masculinas. A mulher descobriu que é tão capaz quanto o homem e que tem a seu favor aquilo que o universo masculino chama de “sexto sentido”, que é nada mais nada menos que sua sensibilidade, sua apurada acuidade. Hoje é comum encontrarmos mulheres em cargos de chefia, empresárias, políticas, professoras, gestoras. Por terem convivido em famílias tradicionais e sociedades conservadoras, essencialmente masculinas, elas assumem posturas muito semelhantes, reproduzindo práticas centralizadoras ou ditatoriais, características do sexo masculino, agindo da mesma forma que os homens, ou até de maneira mais intensa.

Para se ter uma breve ideia do irreversível avanço feminino no mercado de trabalho, na Advocacia-Geral da União existem 3.414 mulheres trabalhando nas áreas administrativas e jurídicas, o que corresponde a 37,65% do total dos cargos. Apenas nos cargos de chefia elas chegam a 47,15%. Este é apenas um dos exemplos, existem vários.

Os homens rejeitam, intima e veementemente, a presença da mulher no ambiente trabalhista, principalmente quando elas são o CEO (chief executive officer, diretor-executivo ou diretor-geral de uma empresa), ou seja, quando elas são o “cara” que manda em todos os outros funcionários. Sentem-se diminuídos, desprestigiados, quando recebem ordens ou orientações que emanam de tailleur ou terninhos impecáveis. Antigamente, era raro uma mulher ocupar cargo de chefia, num departamento ou na direção geral de uma empresa. As funções de natureza masculina quando desempenhadas por mulheres eram remuneradas em valores menores. Atualmente, este quadro desalentador está mudando, como a revolução promovida pela pílula. As mulheres estão avançando, cada vez mais, em “recantos” masculinos, ocupando cargos e funções que exigem capacidade cognitiva e técnica e estão dando conta do recado. A mulher deseja espaço para atuar, não para competir, com aquele do qual foi criada. Ela deseja participar, intensamente, não apenas nos destinos da esfera familiar, mas da vida social, política, econômica e cultural da sociedade.

Não sou feminista e nem pretendo advogar a causa feminina, mas acredito que o homem deve rever sua mentalidade e postura em relação às mulheres na chefia. Que ele a veja sem temores ou repulsa. Que ela seja vista não como uma contendora, e sim como parceira, uma colaboradora valiosa e imprescindível na busca de um bem maior, do bem coletivo, na conquista de soluções para a superação de problemas complexos que afligem a todos de nossa sociedade.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

AMIGO


A síndica do prédio era uma mulher de andar pachorrento e torso encurvado. O rosto pálido apresentava as fissuras do tempo e a cabeleira negra, bem cuidada, não escondia inúmeros cabelos grisalhos. Sentia profunda simpatia pelo inquilino solteiro e o considerava muito solitário. Desde o dia chuvoso em que as mãos frias e trêmulas de dona Carmem entregaram a Arleu aquele pequeno novelo de lã, alaranjado, sua vida nunca mais foi a mesma. A criaturinha que quase sumiu em suas mãos, acomodou-se no calor delas e ergueu, devagar, a cabeça. Tinha olhos cintilantes e a boca mal se abria. O homem, que trabalhava no setor de planejamento de uma empresa de propaganda e marketing, não soube recusar o presente que recebera quando completou quarenta anos de idade. Ele não casara por imaginar o trabalho, a dedicação exigida na criação de um filho e nem lhe passava pela cabeça criar um animal de estimação. Mas por outro lado também sentia afeto pelos animais, particularmente por cães. Acomodou o novo morador numa das poltronas da sala e sentou-se em outra poltrona, diante dele. Acabara a solidão desejada, embora muitas vezes ela o oprimisse. Agora teria que cuidar do pequenino. Como todo filho, e o cão não deixaria de ser seu filho, precisava de um nome. Surgia o dilema da escolha de um nome. Que nome seria ideal para aquela bolinha alaranjada, graciosa, que mal conseguia ficar de pé? A imaginação fugidia inquietou o publicitário. Como chamá-lo?

Passaram-se três dias e o dia era de uma primavera encantadora, de céu azulado e nuvens alvas. As cortinas das janelas do apartamento no décimo andar revoavam ao perpassar do vento. Arleu levantou e foi à cozinha. Voltou com uma lata de refrigerante e acomodou-se onde estava anteriormente sentado. Seu olhar se fixou na criaturinha esparramada no assento do sofá. Ele que tinha tantas ideias para os trabalhos da empresa, entretanto, estava manietado numa vaziez incompreendida. Se pudesse imaginar como o cãozinho ficaria quando crescesse, poderia dar-lhe um nome adequado ao porte e à aparência. Bebeu um gole do refrigerante, para umedecer a garganta ressequida. Nada, nenhuma ideia. Passou as mãos pelos cabelos negros e lisos. Coçou a barba crescida depois de um longo dia de trabalho. Ligou a televisão através do controle remoto. Súbito, durante uma propaganda, surgiu o nome Rudi. Transcorreu um instante e Arleu olhou, de soslaio, para a criaturinha que tentava rastejar sobre o edredon que colocara diante poltrona. Ele sorriu.

Os meses passaram e Rudi foi crescendo, tornando-se num lindo cão, de pelagem macia e alaranjada. Calmo, dócil, atencioso e brincalhão, o animal convertera-se na melhor companhia de seu dono. Desde o momento que Arleu chegava ao lar, Rudi não o deixava sozinho. Tornaram-se inseparáveis. Quando o dono abria a porta do apartamento era recebido com lambidas nas pernas das calças, com saltinhos e manifestações de carinho. Logo o cão corria para o quarto e voltava com os chinelos na boca e colocava-os diante do publicitário. Este lhe sorria e dedicava-lhe muitos afagos. Rudi roçava o corpo peludo no dono, manifestando a mesma afeição que sempre recebia, em todas as horas e em todos os momentos. E todos os dias, seguiam uma rotina. No banheiro, enquanto o dono tomava banho, o cão ficava sentado, contemplando-o com seus olhos brilhantes. O publicitário conversava com ele, relatando as dificuldades do dia e as satisfações profissionais. Depois da ducha iam para a cozinha e enquanto Arleu comia, Rudi também se alimentava, deitado ao lado da cadeira em que estava o dono. O dono era contemplado pelo cão como se somente ele existisse no mundo. E Arleu o adorava. Depois do jantar, a dupla saía alegre, a caminhar pelas ruas e praças da pequena cidade mineira. Não havia quem não adorasse Rudi, por sua beleza, docilidade e disciplina. Todos que encontravam com ele lhe faziam carícias na cabeça e na pelagem sempre limpa e brilhante. Depois de passar por bares, lojas e jardins, Rudi deixava de paquerar suas pretendentes e retornava com o dono para casa, que sempre voltava sozinho. Sentavam-se na sala e ficavam assistindo televisão até a meia-noite. Conversavam sobre o passeio e sobre coisas da vida. Arleu apresentava suas considerações sobre um assunto e Rudi, se concordava, vinha lamber-lhe os pés. Caso contrário, abaixava a cabeça e colocava-a entre as patas. O bocejar do dono convidava-os para ir dormir. Arleu deitava-se na cama e o cão se acomodava no tapete ao lado. O publicitário conversava um pouco mais e, não demorava, adormecia. O cão encolhia-se no tapete e cerrava os olhos, logo adormecendo.

O sol invadia o quarto pelas cortinas diáfanas e marcava o piso com uma mancha esbranquiçada. A forte luminosidade despertava Rudi, que subia na cama, passando a lamber o rosto de Arleu. Ele acordava sorrindo e acaricia o cão. Iam para o banheiro juntos. Higiene feita, o publicitário saía a correr em companhia do cão. Arleu passa por ruas, avenidas e atingia um parque ajardinado. Ali a dupla corria, para depois, em descontração, rolar e brincar na grama. Arleu esquecera o sentido da solidão e passara a ser feliz com a presença do cão em sua vida. Eles voltavam para casa, ocorria o ritual do banho assistido pelo cão e o publicitário consumia o desjejum em companhia de Rudi. A tristeza se abatia sobre Rudi no instante que a porta do apartamento se fechava e a figura amada de Arleu desaparecia de seu mundo. O cão caminhava cabisbaixo para o centro da sala e ficava deitado no tapete, observando aquilo que o separava do dono, por longas, intermináveis horas. Uma dor inexplicável surgia em seu meigo olhar. Ficava imóvel, na tentativa de não desmanchar o encanto dos momentos que viveram juntos. Mas Rudi não se continha em amargura. Ele não bebia e nem comia, choramingava, aguardando a imagem de o dono surgir na porta do apartamento.

A porta se abria e Rudi disparava em sua direção. Arleu o acarinhava e eles passavam a conviver novamente. A rotina era alterada com a leitura de um livro após a caminhada noturna ou com a visita de um amigo do publicitário, para um bate-papo ou convidado para assistir um DVD. Durante a semana aparecia Dora, uma sexagenária, faxineira de Arleu há muitos anos, cuja presença desagradava Rudi, mas que não o deixava furioso. Dora limpava, arrumava, passava e percorria o apartamento de um canto ao outro. Invadia o universo da dupla sob o olhar reprovador do cão que a seguia todo o tempo. Terminada a faxina, ela partia e o cão voltava a deitar no tapete da sala, aguardando a chegada de seu querido dono.

Numa noite, Rudi percebeu que o dono começava a demorar, muito além do costume. O cão levantou e foi até a porta, passando a arranhá-la com as patas. Seu ato demonstrava sua preocupação com o ser humano que conhecia há muito tempo, que lhe concedia atenção especial, que era uma extensão do que ele acreditava ser. As horas passaram e, de repente, a maçaneta girou e a porta se abriu. Gargalhadas e risos invadiram a sala antes que Rudi visse a figura deslumbrante de cabelos compridos e corpo curvilíneo. Arleu parecia um pouco tonto, talvez ligeiramente alcoolizado, mas não dispensou carinhos naquele que o amava incondicionalmente. A mulher de cabelos acobreados tentou afagar a cabeça do cão e recebeu um rosnado como resposta. O dono surpreendeu-se com a atitude do animal de estimação, repreendendo-o. Rudi encolheu-se diante da reprimenda. Arleu meneou a cabeça, alegando estranhar o comportamento do cão, que nunca agira daquela forma com estranhos. O publicitário pediu desculpas à visita, que ignorou suas palavras e dirigiu-se para uma das poltronas. Jogou-se sobre ela e, sem compostura, cruzou as pernas, deixando à mostra parte daquilo que seduzia Arleu. O instinto do animal percebeu que a mulher muito pedante não visitava seu dono apenas como uma amiga. Desejava o espaço que lhe pertencia. Rudi passou a rosnar para a intrusa, que perguntou se ele não iria mordê-la. Arleu garantiu que não, admoestando o animal que se encolheu no tapete. O casal bebeu, riu e passaram a trocar beijos. O brilho do olhar de Rudi rescendeu. Ele pressentia que deixava de ser o centro das atenções de Arleu. Sua presença tão adorada passara a ser desprezada de um momento para o outro, pela invasão de uma mulher, pela invasão de outro ser humano. E para que seu dono precisava dela? O cão acreditava que, pelo fato de viverem tanto tempo juntos e pela alegria demonstrada pelo dono, Arleu não necessitava de uma fêmea de sua espécie. Ele precisava apenas de Rudi, de sua atenção, de suas brincadeiras, de sua companhia durante as corridas, de seus carinhos, manifestados pelo roçar de seu corpo peludo, no trazer dos chinelos na chegada do trabalho. Mas naquela noite, o cão se enganara. Entre uma gargalhada e outra, Arleu foi puxado pela mão lasciva e levado para o quarto. Rudi levantou-se e seguiu-os, sendo barrado pela porta que a mulher bateu em seu focinho. O cão ficou arranhando a porta com as patas. Risos e gargalhadas foram trocados por sussurros e gemidos e o cão deitou-se no chão. Seu focinho umedeceu e seu olhar ficou lacrimoso. Muito tempo depois, o dono abriu a porta e viu o cão deitado no chão, dormindo. Deduziu que ele passara a noite ali. Arleu tocou o focinho de Rudi que acordou e passou a roçar o corpo no dono. O sol invadia a janela da sala e logo o cão viu a mulher atrás de Arleu. Passou a rosnar para ela, na ameaça de mordê-la. Arleu tentou rechaçá-lo, mas era impossível. O cão estava decidido a ferir quem o ferira na madrugada anterior, que tomara seu objeto de estimação e o possuíra visceralmente. Protegida por Arleu, a invasora partiu, para nunca mais voltar. Rudi foi repreendido e ficou preso na área de serviço por dois dias, sem correr e caminhar com o dono. O cão caiu em uivos chorosos, que cessaram com sua libertação.

Arleu foi para o trabalho. As horas passaram. Os raios solares desapareceram e ele não voltou. Rudi ficou a arranhar a porta durante toda a noite, estendendo-se pela madrugada. O cão ficou a uivar, pesarosamente, pela ausência do dono denunciando seu tormento. O dia amanheceu e o dono não voltou para casa...

* * *

A maçaneta girou e Rudi despertou com o movimento, afastando-se da porta. Ela se abriu e pelo umbral entrou Dona Carmen e uma pessoa que, apesar de ser vista pelo cão apenas três vezes em anos de ausência, foi reconhecida por ele. Era uma mulher de expressão envelhecida, mas de postura ereta e de evidente meiguice nos olhos. Ela estava muito triste e se aproximou do cão, afagando-lhe a pelagem. Em agrado, Rudi lambeu-lhe os sapatos e roçou o corpo em suas pernas. A síndica e a mulher foram até o quarto e abriram o guarda-roupa de Arleu. Rudi seguiu-as e ficou observando seus movimentos. Elas escolhiam algumas roupas e as colocavam sobre a cama. O tom de voz das mulheres era baixo e elas manifestavam pesar. Rudi passou a ficar triste. As roupas escolhidas foram colocadas numa sacola e elas seguiram para a porta. No instante que a síndica abriu, Rudi passou velozmente por entre as mulheres e se evadiu, correndo em direção à portaria do prédio. A mulher e a síndica foram surpreendidas com sua atitude, contudo, não foram em seu encalço, seguindo para a porta do elevador.

Rudi desceu as escadas e escapou pela portaria no momento que um casal saía. O cão foi até o estacionamento e procurou pelo carro do dono. O veículo não estava lá. No instante seguinte, Rudi percebeu que a mulher que fora buscar as roupas no apartamento embarcava num carro, em frente à portaria do prédio. Ele disparou em direção ao carro, que logo arrancou. Passou a segui-lo. O carro foi se distanciando até desaparecer, mas o cão não desistiu. Seus instintos passaram a guiá-lo pelas ruas por onde o carro passara. Rudi percorreu várias ruas, calçadas, alamedas até chegar a uma capela. Ela era toda pintada de branco, com esculturas celestiais na cimeira. Ele se dirigiu para a porta e parou repentinamente. Os sentidos o alertaram sobre algo que novamente o entristeceu. Rudi tentou entrar e foi repelido por um homem e uma mulher que vestiam roupas pretas. O cão se afastou e depois voltou para junto da porta da capela, prostrando-se ao lado dela. Acabrunhado, ficou esparramado, olhos umedecidos e respiração premida. Pessoas, em sua maioria trajando roupas escuras, entravam e saíam da capela, carregando expressões pesarosas e olhos marejados. Rudi observava seus rostos. Ele percebia que seus corações palpitavam tolhidamente e que seus olhos injetados mal reprimiam lágrimas doridas. À noite, o movimento se reduziu e poucas pessoas permaneceram no interior da capela. O cão, sorrateiramente, entrou e foi até o ataúde que era cercado por coroas de flores. Ele se colocou embaixo do caixão e sentiu que o corpo que estava ali era de Arleu. Rudi deitou no piso frio da capela e não dormiu.

Amanheceu e a capela ficou repleta de pessoas chorosas e abatidas. Um grupo de homens ergueu o ataúde e passou a carregá-lo. O cortejo seguiu em direção ao cemitério, que se localizava à retaguarda da capela. Rudi seguiu o grupo de pessoas. Ele caminhava devagar, combalido pelo desaparecimento da essência que vivia no interior daquele corpo que conduziam numa enegrecida caixa de madeira. Apesar de sentidos tão aguçados, o cão não conseguia definir para onde levavam Arleu e o que fariam com ele. O caixão desceu numa sepultura que não ficava distante da entrada do cemitério. Rudi tentou se aproximar, mas foi consolado por Dona Carmem que não o deixou chegar ao momento do enterro. A lápide foi colocada e lacrada. Coroas de flores foram depositadas sobre ela e as pessoas não retardaram a partir. O túmulo ficou vazio. A síndica e a irmã de Arleu chamaram o cão para ir embora, mas ele recusou. Quebrantado, dirigiu-se para a lápide e deitou-se ao lado dela, como fazia em casa, aguardando a chegada do dono. A noite chegou e se foi, dando lugar a um dia radiante. Rudi permaneceu deitado, todo o tempo, ao lado do túmulo.

Os coveiros que trabalhavam na manutenção do cemitério notaram a presença e permanência do belo cão que não abandonava o túmulo de um homem sepultado há poucos dias. Passaram a oferecer água e comida ao cão, que não bebia e nem comia. Dias e noites, de sol e de chuva, sucederam-se e o cão não abandonava o túmulo. Rudi foi emagrecendo a cada dia, tornando-se um monte de ossos cobertos por uma pelagem ressequida e fedorenta. A carne se deteriorava, mas o espírito mantinha-se forte, como a amizade que se formou, desde o dia em que foi recebido pelas mãos de um homem que o amou enquanto vivo.

Obra dedicada aos amigos Zamith e Denise

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

DIA DOS FILHOS


Passados o dia das Mães, o dia dos Pais e o dia da Criança. E o dia dos Filhos? A sociedade instituiu a tradição de comemorarmos estas datas em louvor a seres que nos são tão importantes. São datas nas quais compramos presentes, proporcionamos significativos lucros ao comércio e ao mercado financeiro, bem como concedemos alegrias a entes queridos. É claro que estas homenagens são pertinentes e tem fundamento. No caso dos pais, homenageia-se a presença paterna que indiscutivelmente nos serve de modelo na infância e juventude, fornecendo-nos os parâmetros da autoridade, da razão, do controle, do poder, da força e da figura masculina. O pai é aquele ser humano que se ausenta a maior parte do dia do lar, que é visto e que se tem contato normalmente à noite e nos finais de semana, que pouco contato tem com os filhos enquanto está ativo, trabalhando efetivamente, que provê o sustento e os recursos que trazem a sensação de conforto e segurança. A deferência às mães é um marco na ocorrência de datas festivas. A mãe é o referencial feminino, que antes de ser mãe, é mulher, musa inspiradora, figura que seduz pais e filhos por sua bondade, benevolência, espírito de preservação, carinho, meiguice. A mãe é o primeiro ser humano que tomamos contato, que nos embala desde os primórdios da vida, que nos supre de alimentos desde a fase fetal até a velhice, na maioria dos casos. A figura materna representa os sentimentos, as emoções que nos impulsionam a vida, que nos ensina a descobrir o sentido do amor, da paixão. Existe uma ligação natural, física e emocional, entre os filhos e a mãe pelo fato dela ser o elemento gerador da vida. No núcleo familiar, a mãe é vista como indivíduo conciliador, que fomenta a harmonia, que se constitui no ponto nevrálgico da entidade que chamamos de família. Em relação às crianças, a data não se furta ao estímulo das compras, da abertura de pomposas e coloridas embalagens e da troca gratificante de sorrisos e manifestações de carinho e apego. As crianças fazem do dia destinado a elas um evento singular, em que os presentes que recebem significam não somente a materialização de sonhos e prazeres, mas principalmente a compreensão de essências que passam a descobrir, como carinho, alegria, atenção, entretenimento, valor que possuem para os pais. Estimulamos a perpetuidade do dia da criança porque no fundo, nunca se apagará dentro de nós a criança que um dia fomos e que nunca deixará de existir, por mais que se negue este fato. Nosso caráter, temperamento, qualidades, atributos, quando adultos, foram formados e manipulados lá no passado, em nossa infância e juventude, bem como nos temores, traumas, frustrações e defeitos. A criança representa docilidade, fragilidade, piedade, compaixão, bondade, imaturidade, insegurança, irresponsabilidade, futuro, essências que carregamos para sempre dentro de nós, que valorizamos e que nem sempre podemos praticar. A criança representa, aos olhos dos adultos, parte de uma existência que mantemos em nosso íntimo e que norteia a fase adulta.

Muito louvável comemorar o dia dos Pais, das Mães e da Criança, mas e os filhos? O que os filhos representam no plano social, psicológico, familiar? A sociedade laureia pais, mães e crianças não somente pelo que significam emocionalmente no contexto psicológico do ser humano, mas precipuamente pelo teor mercadológico das datas, pelo retorno financeiro que oferecem ao mercado financeiro e afim. O presentear pais, mães e crianças em suas datas comemorativas é engrenagem relevante no espectro econômico, faz girar o capital retido em aplicações financeiras, poupanças, colchões e cofrinhos. Percebe-se, sem dificuldades, que campanhas publicitárias empoladas explodem em períodos que precedem as respectivas datas. Por isso não passam em branco. Sem tergiversar, porque não se institui uma data comemorativa aos filhos? Eles são merecedores de tal reverência. Filhos são crianças que cresceram e que cuidaremos até o momento que deixarmos de existir, seja orientando, acarinhando, aconselhando. O filho é aquele ser que vimos nascer, ensinamos a caminhar, que amamos, educamos, desejamos sua vitória (que não deixa de ser a nossa),que no decorrer dos anos passa a apontar nossos defeitos, que passa a cuidar de nós quando já não mais podemos caminhar sozinhos. Filho é uma das razões da existência da família. Não costumamos nos referir a uma família sem filhos, quando muito dizemos: “... aquele casal...”. Filho é um projeto de vida que investimos além do nosso, daquele que construímos ao longo de nossas vidas. Filho, além de geneticamente semelhante, é o herdeiro de nossas características, de nossos princípios, de nossa riqueza psicológica e emocional. Filho nos renova, nos traz mais brilho à vida, ao coração, ao espírito. Filho é uma dádiva divina na qual somos nomeados defensores perpétuos. Filho é par e parcela, amor e alegria, entusiasmo e emoção. Filho é semente que brota e nos enobrece, que nos mostra que sem ele, nossa missão está incompleta, inacabada. Filho é a crença de que sempre seremos lembrados, bem ou mal, em seu coração, em sua mente, ou no preenchimento de um formulário em que se solicita a filiação. Filho é a referência que nos guia até a derradeira separação que há de ocorrer e que, tanto para ele, como para nós, será extremamente doloroso quando acontecer.

Por estas e tantas outras considerações, acredito que os filhos deveriam ser laureados, deveriam ter um dia deles, no qual os pais sairiam acompanhados dos filhos, iriam ao shopping, ao parque de diversões, à partida de futebol no estádio ou no campinho da várzea, assistiriam a um vídeo da preferência deles, comeriam um bom churrasco, sentariam na varanda de casa e colocariam o papo em dia, ou simplesmente, ficariam deitados na rede ouvindo uma boa música em contemplação das ondas do mar. Seja pai, seja mãe, não deixe de lado a figura do filho. Se a sociedade não cria, crie você o dia dos Filhos em sua casa, em sua família. Não deixe que eles pensem que são elementos irrelevantes ou inconscientemente esquecidos no mundo que você existe.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O BECO

Não foi a tosse que o acordou. A dor em assalto ressurgiu no peito, presente como no período de vigília. Ainda zonzo pelo sono que o abateu no limiar da noite, a mão macia transitou insegura pelo cenho que porejava. Eram remanescentes suores noturnos. Sentou-se devagar na beira do colchão e os olhos enevoados mal distinguiram as formas ao redor. As reminiscências do sonho o deixaram assustado por breves instantes, que desapareceram numa aspiração longa, profunda. Depois de detalhada análise dos exames, o médico lhe disse que a tuberculose voltara, devido à interrupção leviana do tratamento. O diagnóstico trouxe dores, por todas as partes do corpo. Seus ouvidos pareciam ainda escutar em eco as palavras que o doutor proferira categórico. Ele não as gravara na mente confusa, mas sabia que a recorrência trazia mais sofrimento e mortalidade do que muitos julgavam. Pequena percentagem escapava ao fim. Temia não estar inserido na parcela ilesa. Sentiu as entranhas tremerem. Talvez fosse o medo a arrepiar. Por que medrar? Não seria o fim, ainda não, assim pensava ele.

O alvor penetrava luminoso pelas seteiras ordenadas e alinhadas das janelas do quarto. Levantou-se e caminhou até uma delas. O pijama corrugado cobria a alma agônica, que sustentava com dificuldades o corpo avesso a esforços físicos de qualquer natureza. Abriu a janela cujas dobradiças rangeram, assinalando o longo tempo que estavam ali. Aguardou um vento brando e agradável que não penetrou no quarto e não tocou seu rosto macerado. Balançou a cabeça, movimento que o lembrou do motivo da ausência da brisa marítima. Apoiou as mãos no parapeito e esticou o pescoço para frente, girando a cabeça para a esquerda. Seu olhar taciturno colidiu com a muralha de prédios, muito mais altos do que aquele em que morava, que impediam há muito que as brisas do mar chegassem até ali. Recordou-se do mar, de suas águas escuras e espumosas, afagando as areias da praia, provocando um murmúrio indelével na mente de quem presenciava aquele espetáculo. Desolado, recolheu o torso para dentro e debruçou-se no peitoril da janela, ficando a olhar para baixo.

Apesar de o apartamento localizar-se no quinto andar do prédio, a janela do quarto permitia, sem dificuldades, a vista do beco. Ele não era escuro, mas vivia tomado por sombras. As paredes que se confrontavam eram cobertas por uma camada escura, ora limosa, ora fuliginosa. Poucas latas de lixo. Tortas, enferrujadas, com ou sem tampas. Acondicionavam restos, oriundos da padaria ou dos bares e restaurantes das ruas adjacentes. Pedaços de jornal e papel ascendiam em vôos sinuosos, para depois cair suavemente, indo depositar-se na superfície gordurosa e escura do piso. A energia misteriosa que os movimentava era o vento que invadia o estreito sem saída. Lufadas causadas pelos veículos que passavam rapidamente na rua em frente, percorriam as paredes, acarinhando-as com seu dorso frio e leve, para finalmente desfazer-se no fundo. O silêncio que habitava o beco era rompido pelo ruído das surdinas em passagem ou pelos roncar dos exaustores de uma padaria que expulsava seus odores. Os rumores vindos de fora não desassossegavam a população que ali vivia. Ela era reduzida, nada mais que uma plêiade de gatos. Num primeiro instante lhe pareceu que apresentavam uma pelagem preta-e-branca, mas concluiu que a distância e o efeito das madrugadas insones traíam sua visão. Ficou absorto pela celebração que lá embaixo se desenvolvia. O grupo de felinos disputava avidamente os restos mortais de um grande peixe, descartado possivelmente por um dos restaurantes das cercanias. A anarquia e a voracidade com que dividiam a carcaça, talvez mais avermelhada pelos molhos que a cobriam do que pelo sangue que golfava a cada dentada, determinava a escassez de alimentos no beco. Um ou outro miava em desalento, no instante que era arrebatado da divisão por um concorrente mais afoito. Nacos de carne mais volumosos quando arrancados eram levados para longe dali, para que o felizardo se regozijasse isoladamente. A fome manifestada pelos felinos foi evidenciada também por alguém, que seus olhos viram avançar pelo estreitamento do beco. O homem, ou o que restara dele, caminhava com dificuldade, fato que lhe chamou a atenção. Andrajoso, ele arrastava uma das pernas, certamente sequela de algum grave acidente que o aleijou. Com a crescente, porém lenta, aproximação, seus piedosos olhos se fixaram no semblante do esmolambado. Os cabelos eram grisalhos apesar da fuligem e densa sujeira que os enegrecia. A barba estava crescida e cobria boa parte do rosto que parecia triangular. A pele era branca, embora estivesse coberta por sujeira e feridas. O nariz adunco aparentava fungar todos os odores do beco, puros e impuros, doces e amargos, saudáveis e fétidos. A boca de lábios fendidos pelo frio noturno estava entreaberta, não para num momento expressar sua dor visceral imposta pela penúria que vivia, mas para aspirar o ar com dificuldade. Os olhos eram azuis, não maculados pela imundície que o circundava, e no espelho deles era possível ver a fome e o desgosto que o combalia. Ele se aproximou da partilha felina que ainda se desenvolvia e parou de repente. Olhou ao redor. Os restos de comida eram poucos e diminutos, insuficientes para saciar a apetência que oprimia seu estômago. A boca entreaberta gritou, esbravejou, causando temor e afastando os gatos do animal carcomido. O homem agachou e passou a comer avidamente o que restara da carcaça despedaçada. A voracidade demonstrada por suas mãos enroladas em trapos que, em gestos mal articulados, apanhavam a comida e a empurravam goela abaixo, comoveu aquele que do alto, observador e mudo, contemplava a atmosfera sombria do beco. Ainda debruçado no peitoril, sentia uma dor lancinante, causada por duas vertentes. Uma delas era o isolamento promovido por todos que sabiam ou desconfiavam que era portador de doença contagiosa. A outra era a solidão em que mergulhara, devido ao divórcio exigido pela mulher que não admitia o ofício de escritor. Ainda podia ouvi-la vociferar: “... escrever não enche barriga de ninguém!”. As admoestações da esposa em relação ao ofício causavam-lhe um forte desagrado. A escrita era seu maior prazer, e por não compreendê-lo, a mulher o desprezou. Depois do divórcio passou a morar sozinho naquele apartamento de apenas um quarto. A faxineira vinha uma vez por semana retirar a poeira, que penetrava pelas frestas das janelas, e arrumar aquilo que ele não desarrumava. Em alguns momentos, a solidão o oprimia tanto que pensava em recrutar os serviços sexuais de alguma jovem da Praça da Bandeira, mas estava muito velho e cansado para isso. Havia o desejo, entretanto, era desarticulado pelo comedimento e pelo despreparo físico. O devaneio se dissipou num piscar de olhos, no instante em que o homem se levantou e foi acomodar-se junto a algumas latas de lixo que se amontoavam em uma das paredes. Nacos esbranquiçados do peixe ainda flutuavam entre a boca ressequida e a barba imunda quando ele ergueu a cabeça e fitou aquele que o observava em silêncio. O mendigo levantou o punho num gesto irreverente e esbravejou, xingou. A ofensa lhe causou tão forte impacto que o levou a fechar a janela.

Infeliz, ele caminhou até a escrivaninha que ficava ao lado da cama. Sentou-se na cadeira de estofamento rasgado e murcho e ficou a olhar para o teclado da máquina de escrever. Passou as mãos pelos cabelos, que contornaram a nuca e voltaram para o rosto, amparando os maxilares. Ficou olhando para as teclas da máquina e para o papel em branco. Podia ouvir sua própria respiração. Buscava há anos a inspiração que talvez lhe trouxesse o reconhecimento desejado. Escreveu contos, crônicas e romances policiais de qualidade, mas nenhum deles fora enaltecido pela sociedade literária ou acolhido como sucesso pela imprensa nacional. Súbito, a mente precipitou-se num turbilhão e a imagem do beco e seus matizes ressurgiram claramente diante de seus olhos. Algo visceral o inquietou e a vacuidade passou a estruturar-se. Ele puxou a cadeira para mais próximo da mesa e movimentou os dedos. A respiração acelerou-se e ele ajeitou os óculos no rosto. Passou a datilografar freneticamente. Letras, palavras, frases surgiam e ideias emergiam de suas mãos. Um discreto sorriso, há muito esquecido, estampou seu rosto, identificando o alcance de uma vitória.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

DILEMAS E ESCOLHAS

A vida é algo de admirável complexidade. Em inúmeras oportunidades e circunstâncias apresenta-nos inquietantes ritos de passagem. Estes se articulam no que comumente conhecemos por dilemas e escolhas. Este binômio aparentemente simples ergue-se constantemente no decorrer de nossas jornadas, causando ansiedade e desconforto. Mas como definir estes institutos que determinam e conduzem nossas vidas por caminhos tão distintos e surpreendentes?

O dilema é a arena de todas as divergências e contrastes. É o momento crucial em que nos envolvemos na necessidade de uma escolha, diante de opções diferentes e notadamente opostas. Nele imergimos em solitários conflitos internos que nos levam à beira do precipício mental. Buscamos sinapses otimizadas no alcance da escolha ideal e adequada, aquela que nos conduza à luz e ao sucesso e que não nos arremesse à escuridão e à desgraça. Nele vivenciamos aflitivas incertezas e sofremos a inarredável atração de cada opção, não nos sendo permitido conhecer verdadeiramente a beleza ou o horror de cada uma de suas consequências. Em alguns dilemas optamos pela ação de nossos instintos, numa tentativa de acerto despojada de consciência e responsabilidade em relação à decisão adotada. Nem sempre esta opção imponderada redunda em vitória e realização, pois o instinto, como produto de um somatório de condicionantes físicas e psíquicas não é, em sua natureza, uma equação aritmética que nos possibilita e garante um resultado preciso e plenamente satisfatório. Inegavelmente, o momento em que nos confrontamos com um dilema, qualquer que seja sua essência, é um momento crítico. É a tormenta psíquica que se estabelece diante de uma escolha. Introspectivos, refletimos sobre todas as nuanças da escolha e seus impactantes efeitos. Finalmente, buliçosos e ansiosos, chegamos ao fim das especulações mais insanas e estupefatas, deliberando por uma escolha.

As consequências de uma escolha podem nos remeter a uma situação inesperada, a caminhos totalmente diversos e, às vezes, degradantes e dolorosos sob qualquer análise. Seu efeito pode se constituir em um prazeroso sucesso ou em um inconveniente infortúnio. Para a maioria de todos nós, a escolha se constitui no momento mais relevante de qualquer opção. Nele elegeremos o caminho que nos é mais adequado, que atende aparentemente nossos anseios e expectativas. A escolha definida arremeter-nos-á para o outro lado, para o plano que nos é desconhecido, para aquela dimensão amorfa e de aparência diáfana que divisamos em nosso dilema. A escolha definida manifestará nossa preferência e decisão, impondo-nos submissão incondicional a um futuro imprevisível e inesperado. Poderemos emergir num mundo de sonhos e felicidade suprema. Poderemos cair numa aridez desértica, repleta de pesadelos e eventos funestos. A escolha é a providencial inflexão na linha de nossas vidas. A partir dela poderemos ser guindados por um caminho diametralmente oposto àquele que palmilhávamos anteriormente. Um caminho pelo qual não poderemos retornar, pois, infelizmente, a vida é única, um caminho sem retorno, que percorremos num só sentido. Como alguns sábios e filósofos declaram: “Todo e qualquer caminho, depende de uma escolha...”. A definição de uma escolha determinará o sentido e a configuração do próximo capítulo de nossas vidas. Percebemos em exemplos reais. A maioria de nós deparou-se em algum momento de sua vida com a escolha da profissão. Pensou em ser engenheiro, médico, administrador ou, infelizmente, criminoso. Mas o que terá acontecido que o levou a escolher a profissão que exerce? A definição de seu ofício foi uma das escolhas mais relevantes de sua existência. É a escolha daquela atividade que norteará sua vida, suas satisfações, que lhe trará alegrias e realizações. Então, na oportunidade, surgiram critérios, fatores e inseguranças, e quais seriam eles, que o levaram a essa escolha? Aqui não podemos determinar. Estes elementos, tão complexos e inusitados e talvez esquecidos, foram partícipes de seu dilema profissional. Foram circunstâncias contextuais que certamente o levaram a definição da escolha, e a essas cabem algumas considerações.

Nem sempre as circunstâncias são favoráveis a uma decisão livre e desimpedida. Muitas delas subjugam o critério de escolha. No exemplo citado, a definição da profissão pode não ser efeito de um ato deliberado, mas sim de uma imposição de natureza conjuntural ou emocional. No contexto profissional, o engenheiro ou o médico optou por seu ofício em deliberação, talvez por efeito de orientação profissional dirigida por uma psicóloga ou por influência familiar. Por outro lado, ocorrem os casos que não se tem condições de escolher, como é o caso daqueles que foram arrebatados para a delinquência. O criminoso não tem liberdade de escolha. Ninguém, em princípio, nasce ou deseja ser um delinqüente. Foi compulsado a engrossar as fileiras da criminalidade devido à falta de oportunidades e pelas circunstâncias desfavoráveis que o envolveram durante sua infância e/ou juventude. Penúria e violência, baixa escolaridade e desestrutura familiar, são alguns dos diversos fatores preponderantes numa escolha inadequada e inconsciente. Não podemos julgar um profissional, uma personalidade, um comportamento, sem conhecermos o que determinou sua escolha.

O homem é efeito de suas escolhas. Em qualquer momento e em qualquer tempo. Viver e continuar a definir os caminhos pelos quais percorrerá ao longo da vida dependerá, única e exclusivamente, não dos dilemas com que se deparará, mas com as imutáveis escolhas pelas quais decidir.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O BICHO


em memória de Manuel Bandeira

A tosse impunha noites insones marcadas pela intermitência do sono. Ah, como me fazia falta dormir. Deixar-me arrastar pelo entorpecimento poderoso do cansaço causado pela dispnéia e cair lasso sobre a cama coberta por lençóis amarfanhados. Meu braço percorria a superfície da cama e fria era ela. Percebia a ausência do torso nu, de seios descobertos. Ela estava apenas nas profundezas de minha mente. Bela e sedutora. Não pude sorrir pelo prazer da lembrança, pois naquele instante um odor abjeto invadiu não somente a janela aberta, mas também minhas narinas, dificultando-me ainda mais de respirar. Tosse, tosse que me atormenta. Queria eu num sobressalto sentar-me na cama. Contive-me em levantar devagar e sentar na beira do colchão mole e fedorento pelos meus suores noturnos. Meu olhar soturno foi atraído pelo bafejo frio que penetrou pela janela. Que cheiro horrível. Fechei mais um botão do pijama enxovalhado e fiquei de pé. As costas doíam. Segundo o doutor era hérnia de disco. Lombar. Velha companheira. Tosse, tosse que me atormenta. Espectorei uma nódoa avermelhada que, fugidia, precipitou-se de minha boca seca e caiu no balde que, todas as noites, adormecia ao lado da cama. Pensei em beber um copo d’água. Limpar a boca do gosto amargo que permaneceu. Súbito, um ruído metálico me deteve. Ele se repetiu. Originava-se do beco que ficava ao lado de minha casa. Devagar, caminhei até a janela.

Meu quarto ficava no segundo pavimento da casa, cuja janela se debruçava sobre o beco. Ele não era extenso, mas servia perfeitamente ao descarte de restos e imundícies das pessoas que viviam ao redor de minha morada. Novamente o odor fétido penetrou em minhas narinas, mais forte, mais repugnante, causando-me uma breve tontura e ânsia de vômitar. Curvei o corpo, abaixando a cabeça. Respirei profundo. Tosse, tosse que me atormenta. Expeli mais uma nódoa que caiu diante de meus pés descalços. O ruído novamente aconteceu. Ergui a cabeça e, mesmo com a visão nebulosa, divisei alguma coisa nas penumbras do beco.

Meu olhar se fixou, apesar da escuridão, naquilo que vorazmente procurava por alguma coisa na imundície do pátio. Parecia um bicho a revolver o lixo. Indiferente a minha presença, ele continuou a derrubar as latas e latões enferrujados. O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. Era um animal de compleição grande e robusta. Seus pêlos eram abundantes, na cabeça e na face oculta pelas trevas. Ele revirava tudo, catando comida entre os detritos. A sofreguidão que o dominava, na procura de algo, mesmo em decomposição avançada, chamou-me atenção. Fez-me lembrar a sensação torturante que a fome causa, vivida por muitos e desconhecida por poucos. A dor aguda e visceral que se espalha pelo abdômen e depois atinge a cabeça. A insuportável aflição que domina os sentidos e a consequente prostração. Devaneios à parte, quando o bicho achava alguma coisa, suas patas não examinavam e seu focinho não cheirava. Ele devorava com avidez e violência, na tentativa perseverante de extinguir a fome que o ensandecia.

Tosse, tosse que me atormenta. Ela fez o animal parar repentinamente. Empertiguei-me e me afastei um pouco da janela, tomado por um medo que até hoje não sei explicar. O animal caminhou devagar por sobre os detritos e se aproximou do muro de minha casa. Sua atitude era rude, selvagem. Embora longe de suas garras, que deveriam ser afiadíssimas pelo estrago que fez no lixo, fiquei atemorizado com sua aproximação. O brilho de seus olhos selvagens me fulminaram e um calafrio percorreu minha espinha tão dolorida. Ele avançou em minha direção e... meu Deus, o bicho era um homem!

PALAVRAS INICIAIS

Imaginamos que estamos preparados para muitas coisas na vida, todavia, nem sempre a realidade é esta. Como escrevo há dez anos achei que não me faltariam palavras para a abertura do meu Blog. Ledo engano. Escrever para o momento tão importante no qual o escritor, até então desconhecido, passa a ser figura pública, notória, não é tarefa nada fácil. Quando se tem a responsabilidade pessoal de escrever para um evento, para o público em geral, torna-se difícil expressar o que se sente. O nervosismo e uma ilusória insegurança nos pega de proa. Até chegar à concepção do Blog foram percorridos muitos caminhos tortuosos e agônicos. Deparei-me com muitos dilemas, nos quais a escolha sempre foi continuar escrevendo. Escrever para muitos, até para escritores consagrados, é um martírio. Entretanto, para mim sempre foi um prazer, uma alegria, uma satisfação, desde menino. De tudo que se aprende e estuda nos bancos escolares, apenas a leitura e a escrita nos acompanham até os últimos dias de vida. E quando aprendi a ler e, principalmente, a escrever não imaginei que este aprendizado traria tamanha alegria à minha alma, à minha existência. Escrever é uma forma de revelar aquilo que pensamos, de como vemos a vida e as pessoas que fazem o mundo existir. Escrever é comunicar, através de personagens e situações, fatos que nos foram apresentados pelo mundo real e por seres que nos rodeiam, seja nos jornais, revistas, domínio público ou simplesmente tornar verossímeis vidas e fatos fictícios. Escrever é viver mil vidas em uma única vida. É viver através dos personagens criados vidas diversas, permeadas de alegrias, paixões, angústias, peripécias e dissabores. É aproveitar uma notícia do jornal ou um fato que se presenciou e criar toda uma história de amor, aventura ou tragédia. Escrever é compartilhar visões que nos pertencem com aqueles que desconhecemos e que desejamos que passem a conhecer. É materializar o fictício, o virtual, naquilo que impregnará o papel real ou virtual (a tela do monitor) e logo que for lido o deixará e passará a existir dentro da mente e do coração do leitor.
Iniciei minha carreira literária pelas redações escolares. A mente estava ali, pulsando em ideias e bastava colocá-las no papel. Mas não foi muito fácil como me parecia. O conteúdo era bom, mas o estilo era ruim, falho. Nunca recebi incentivo de ninguém para escrever. Foi o prazer, a satisfação e a responsabilidade social que surgiu ao longo de minha vida que me levou a dedicar-me à escrita. E passei muito tempo escrevendo redações, pequenas e medíocres narrativas, pensamentos avulsos. Muitos erros, muitos acertos. Depois dos textos irrelevantes que escrevi, veio a oportunidade (que chamo de tempo) de escrever. Os primeiros romances foram ruins, inverossímeis. A perseverança, a dedicação, o aprendizado das técnicas e o prazer foram associados à vocação e acabaram por conduzir-me ao caminho certo. Dos romances (que muito melhoraram) enveredei pelas crônicas e depois de relutar (confesso que tive medo em começar a escrever contos, pois demandam uma técnica totalmente diferente daquela exigida na construção do romance) tornei-me um contista. Hoje acho interessante que aquilo que mais evitei em fazer (escrever contos) foi o que mais me aproximou da satisfação plena, da possível sublimidade. A leitura, contínua ou esporádica, de tudo que passar diante dos olhos, bem como a escrita, são os ingredientes fundamentais para aqueles que desejam escrever bem. A descoberta deste princípio é fundamental na ascensão de um escritor. O estilo, a beleza estética, a riqueza de conteúdo, a profundidade emocional, o primor foram adquiridos na perseverança, na busca inatingível da perfeição. Escrever bem não é somente dominar a língua portuguesa e ter boas idéias. Exige algo visceral, complexo, uma essência que deve permear a alma do escritor, que até para mim é difícil traduzir nestas poucas linhas. E como disse uma pessoa que não fazia parte do meu círculo de relacionamentos, depois de ler um artigo que não sabia que era meu: “Quem escreveu, escreve bem, tem vocação para a coisa...”. E sem inchar-me de orgulho ou soberba, qualidades que não possuo, mas acredito que o prazer e o pendor levam o indivíduo a excelência. Quer escrever bem? Não tem vocação? Escreva, escreva o máximo que puder e, na mesma proporção, leia tudo o que puder. Num momento irá descobrir sua voz e através dela manifestará a primazia que o tornará um verdadeiro literato.
O destino decidiu que até hoje eu seja um escritor desconhecido, ou como alguns denominam de “escritor inédito”, que escreve, escreve, mas não consegue publicar seus trabalhos. Mas isso não me frustra na medida em que posso, agora, pelo instituto da Internet, “publicar” minhas produções literárias. É com prazer que passo a compartilhar com aqueles que visitam meu Blog meus pensamentos, minhas idéias, minhas narrativas.
Boas leituras, bom entretenimento, paz de espírito e felicidade a todos.