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"A literatura insinua e coloca questões muito mais do que as responde ou resolve."

-------------------Milton Hatoum, escritor brasileiro



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sexta-feira, 23 de outubro de 2009

AMIGO


A síndica do prédio era uma mulher de andar pachorrento e torso encurvado. O rosto pálido apresentava as fissuras do tempo e a cabeleira negra, bem cuidada, não escondia inúmeros cabelos grisalhos. Sentia profunda simpatia pelo inquilino solteiro e o considerava muito solitário. Desde o dia chuvoso em que as mãos frias e trêmulas de dona Carmem entregaram a Arleu aquele pequeno novelo de lã, alaranjado, sua vida nunca mais foi a mesma. A criaturinha que quase sumiu em suas mãos, acomodou-se no calor delas e ergueu, devagar, a cabeça. Tinha olhos cintilantes e a boca mal se abria. O homem, que trabalhava no setor de planejamento de uma empresa de propaganda e marketing, não soube recusar o presente que recebera quando completou quarenta anos de idade. Ele não casara por imaginar o trabalho, a dedicação exigida na criação de um filho e nem lhe passava pela cabeça criar um animal de estimação. Mas por outro lado também sentia afeto pelos animais, particularmente por cães. Acomodou o novo morador numa das poltronas da sala e sentou-se em outra poltrona, diante dele. Acabara a solidão desejada, embora muitas vezes ela o oprimisse. Agora teria que cuidar do pequenino. Como todo filho, e o cão não deixaria de ser seu filho, precisava de um nome. Surgia o dilema da escolha de um nome. Que nome seria ideal para aquela bolinha alaranjada, graciosa, que mal conseguia ficar de pé? A imaginação fugidia inquietou o publicitário. Como chamá-lo?

Passaram-se três dias e o dia era de uma primavera encantadora, de céu azulado e nuvens alvas. As cortinas das janelas do apartamento no décimo andar revoavam ao perpassar do vento. Arleu levantou e foi à cozinha. Voltou com uma lata de refrigerante e acomodou-se onde estava anteriormente sentado. Seu olhar se fixou na criaturinha esparramada no assento do sofá. Ele que tinha tantas ideias para os trabalhos da empresa, entretanto, estava manietado numa vaziez incompreendida. Se pudesse imaginar como o cãozinho ficaria quando crescesse, poderia dar-lhe um nome adequado ao porte e à aparência. Bebeu um gole do refrigerante, para umedecer a garganta ressequida. Nada, nenhuma ideia. Passou as mãos pelos cabelos negros e lisos. Coçou a barba crescida depois de um longo dia de trabalho. Ligou a televisão através do controle remoto. Súbito, durante uma propaganda, surgiu o nome Rudi. Transcorreu um instante e Arleu olhou, de soslaio, para a criaturinha que tentava rastejar sobre o edredon que colocara diante poltrona. Ele sorriu.

Os meses passaram e Rudi foi crescendo, tornando-se num lindo cão, de pelagem macia e alaranjada. Calmo, dócil, atencioso e brincalhão, o animal convertera-se na melhor companhia de seu dono. Desde o momento que Arleu chegava ao lar, Rudi não o deixava sozinho. Tornaram-se inseparáveis. Quando o dono abria a porta do apartamento era recebido com lambidas nas pernas das calças, com saltinhos e manifestações de carinho. Logo o cão corria para o quarto e voltava com os chinelos na boca e colocava-os diante do publicitário. Este lhe sorria e dedicava-lhe muitos afagos. Rudi roçava o corpo peludo no dono, manifestando a mesma afeição que sempre recebia, em todas as horas e em todos os momentos. E todos os dias, seguiam uma rotina. No banheiro, enquanto o dono tomava banho, o cão ficava sentado, contemplando-o com seus olhos brilhantes. O publicitário conversava com ele, relatando as dificuldades do dia e as satisfações profissionais. Depois da ducha iam para a cozinha e enquanto Arleu comia, Rudi também se alimentava, deitado ao lado da cadeira em que estava o dono. O dono era contemplado pelo cão como se somente ele existisse no mundo. E Arleu o adorava. Depois do jantar, a dupla saía alegre, a caminhar pelas ruas e praças da pequena cidade mineira. Não havia quem não adorasse Rudi, por sua beleza, docilidade e disciplina. Todos que encontravam com ele lhe faziam carícias na cabeça e na pelagem sempre limpa e brilhante. Depois de passar por bares, lojas e jardins, Rudi deixava de paquerar suas pretendentes e retornava com o dono para casa, que sempre voltava sozinho. Sentavam-se na sala e ficavam assistindo televisão até a meia-noite. Conversavam sobre o passeio e sobre coisas da vida. Arleu apresentava suas considerações sobre um assunto e Rudi, se concordava, vinha lamber-lhe os pés. Caso contrário, abaixava a cabeça e colocava-a entre as patas. O bocejar do dono convidava-os para ir dormir. Arleu deitava-se na cama e o cão se acomodava no tapete ao lado. O publicitário conversava um pouco mais e, não demorava, adormecia. O cão encolhia-se no tapete e cerrava os olhos, logo adormecendo.

O sol invadia o quarto pelas cortinas diáfanas e marcava o piso com uma mancha esbranquiçada. A forte luminosidade despertava Rudi, que subia na cama, passando a lamber o rosto de Arleu. Ele acordava sorrindo e acaricia o cão. Iam para o banheiro juntos. Higiene feita, o publicitário saía a correr em companhia do cão. Arleu passa por ruas, avenidas e atingia um parque ajardinado. Ali a dupla corria, para depois, em descontração, rolar e brincar na grama. Arleu esquecera o sentido da solidão e passara a ser feliz com a presença do cão em sua vida. Eles voltavam para casa, ocorria o ritual do banho assistido pelo cão e o publicitário consumia o desjejum em companhia de Rudi. A tristeza se abatia sobre Rudi no instante que a porta do apartamento se fechava e a figura amada de Arleu desaparecia de seu mundo. O cão caminhava cabisbaixo para o centro da sala e ficava deitado no tapete, observando aquilo que o separava do dono, por longas, intermináveis horas. Uma dor inexplicável surgia em seu meigo olhar. Ficava imóvel, na tentativa de não desmanchar o encanto dos momentos que viveram juntos. Mas Rudi não se continha em amargura. Ele não bebia e nem comia, choramingava, aguardando a imagem de o dono surgir na porta do apartamento.

A porta se abria e Rudi disparava em sua direção. Arleu o acarinhava e eles passavam a conviver novamente. A rotina era alterada com a leitura de um livro após a caminhada noturna ou com a visita de um amigo do publicitário, para um bate-papo ou convidado para assistir um DVD. Durante a semana aparecia Dora, uma sexagenária, faxineira de Arleu há muitos anos, cuja presença desagradava Rudi, mas que não o deixava furioso. Dora limpava, arrumava, passava e percorria o apartamento de um canto ao outro. Invadia o universo da dupla sob o olhar reprovador do cão que a seguia todo o tempo. Terminada a faxina, ela partia e o cão voltava a deitar no tapete da sala, aguardando a chegada de seu querido dono.

Numa noite, Rudi percebeu que o dono começava a demorar, muito além do costume. O cão levantou e foi até a porta, passando a arranhá-la com as patas. Seu ato demonstrava sua preocupação com o ser humano que conhecia há muito tempo, que lhe concedia atenção especial, que era uma extensão do que ele acreditava ser. As horas passaram e, de repente, a maçaneta girou e a porta se abriu. Gargalhadas e risos invadiram a sala antes que Rudi visse a figura deslumbrante de cabelos compridos e corpo curvilíneo. Arleu parecia um pouco tonto, talvez ligeiramente alcoolizado, mas não dispensou carinhos naquele que o amava incondicionalmente. A mulher de cabelos acobreados tentou afagar a cabeça do cão e recebeu um rosnado como resposta. O dono surpreendeu-se com a atitude do animal de estimação, repreendendo-o. Rudi encolheu-se diante da reprimenda. Arleu meneou a cabeça, alegando estranhar o comportamento do cão, que nunca agira daquela forma com estranhos. O publicitário pediu desculpas à visita, que ignorou suas palavras e dirigiu-se para uma das poltronas. Jogou-se sobre ela e, sem compostura, cruzou as pernas, deixando à mostra parte daquilo que seduzia Arleu. O instinto do animal percebeu que a mulher muito pedante não visitava seu dono apenas como uma amiga. Desejava o espaço que lhe pertencia. Rudi passou a rosnar para a intrusa, que perguntou se ele não iria mordê-la. Arleu garantiu que não, admoestando o animal que se encolheu no tapete. O casal bebeu, riu e passaram a trocar beijos. O brilho do olhar de Rudi rescendeu. Ele pressentia que deixava de ser o centro das atenções de Arleu. Sua presença tão adorada passara a ser desprezada de um momento para o outro, pela invasão de uma mulher, pela invasão de outro ser humano. E para que seu dono precisava dela? O cão acreditava que, pelo fato de viverem tanto tempo juntos e pela alegria demonstrada pelo dono, Arleu não necessitava de uma fêmea de sua espécie. Ele precisava apenas de Rudi, de sua atenção, de suas brincadeiras, de sua companhia durante as corridas, de seus carinhos, manifestados pelo roçar de seu corpo peludo, no trazer dos chinelos na chegada do trabalho. Mas naquela noite, o cão se enganara. Entre uma gargalhada e outra, Arleu foi puxado pela mão lasciva e levado para o quarto. Rudi levantou-se e seguiu-os, sendo barrado pela porta que a mulher bateu em seu focinho. O cão ficou arranhando a porta com as patas. Risos e gargalhadas foram trocados por sussurros e gemidos e o cão deitou-se no chão. Seu focinho umedeceu e seu olhar ficou lacrimoso. Muito tempo depois, o dono abriu a porta e viu o cão deitado no chão, dormindo. Deduziu que ele passara a noite ali. Arleu tocou o focinho de Rudi que acordou e passou a roçar o corpo no dono. O sol invadia a janela da sala e logo o cão viu a mulher atrás de Arleu. Passou a rosnar para ela, na ameaça de mordê-la. Arleu tentou rechaçá-lo, mas era impossível. O cão estava decidido a ferir quem o ferira na madrugada anterior, que tomara seu objeto de estimação e o possuíra visceralmente. Protegida por Arleu, a invasora partiu, para nunca mais voltar. Rudi foi repreendido e ficou preso na área de serviço por dois dias, sem correr e caminhar com o dono. O cão caiu em uivos chorosos, que cessaram com sua libertação.

Arleu foi para o trabalho. As horas passaram. Os raios solares desapareceram e ele não voltou. Rudi ficou a arranhar a porta durante toda a noite, estendendo-se pela madrugada. O cão ficou a uivar, pesarosamente, pela ausência do dono denunciando seu tormento. O dia amanheceu e o dono não voltou para casa...

* * *

A maçaneta girou e Rudi despertou com o movimento, afastando-se da porta. Ela se abriu e pelo umbral entrou Dona Carmen e uma pessoa que, apesar de ser vista pelo cão apenas três vezes em anos de ausência, foi reconhecida por ele. Era uma mulher de expressão envelhecida, mas de postura ereta e de evidente meiguice nos olhos. Ela estava muito triste e se aproximou do cão, afagando-lhe a pelagem. Em agrado, Rudi lambeu-lhe os sapatos e roçou o corpo em suas pernas. A síndica e a mulher foram até o quarto e abriram o guarda-roupa de Arleu. Rudi seguiu-as e ficou observando seus movimentos. Elas escolhiam algumas roupas e as colocavam sobre a cama. O tom de voz das mulheres era baixo e elas manifestavam pesar. Rudi passou a ficar triste. As roupas escolhidas foram colocadas numa sacola e elas seguiram para a porta. No instante que a síndica abriu, Rudi passou velozmente por entre as mulheres e se evadiu, correndo em direção à portaria do prédio. A mulher e a síndica foram surpreendidas com sua atitude, contudo, não foram em seu encalço, seguindo para a porta do elevador.

Rudi desceu as escadas e escapou pela portaria no momento que um casal saía. O cão foi até o estacionamento e procurou pelo carro do dono. O veículo não estava lá. No instante seguinte, Rudi percebeu que a mulher que fora buscar as roupas no apartamento embarcava num carro, em frente à portaria do prédio. Ele disparou em direção ao carro, que logo arrancou. Passou a segui-lo. O carro foi se distanciando até desaparecer, mas o cão não desistiu. Seus instintos passaram a guiá-lo pelas ruas por onde o carro passara. Rudi percorreu várias ruas, calçadas, alamedas até chegar a uma capela. Ela era toda pintada de branco, com esculturas celestiais na cimeira. Ele se dirigiu para a porta e parou repentinamente. Os sentidos o alertaram sobre algo que novamente o entristeceu. Rudi tentou entrar e foi repelido por um homem e uma mulher que vestiam roupas pretas. O cão se afastou e depois voltou para junto da porta da capela, prostrando-se ao lado dela. Acabrunhado, ficou esparramado, olhos umedecidos e respiração premida. Pessoas, em sua maioria trajando roupas escuras, entravam e saíam da capela, carregando expressões pesarosas e olhos marejados. Rudi observava seus rostos. Ele percebia que seus corações palpitavam tolhidamente e que seus olhos injetados mal reprimiam lágrimas doridas. À noite, o movimento se reduziu e poucas pessoas permaneceram no interior da capela. O cão, sorrateiramente, entrou e foi até o ataúde que era cercado por coroas de flores. Ele se colocou embaixo do caixão e sentiu que o corpo que estava ali era de Arleu. Rudi deitou no piso frio da capela e não dormiu.

Amanheceu e a capela ficou repleta de pessoas chorosas e abatidas. Um grupo de homens ergueu o ataúde e passou a carregá-lo. O cortejo seguiu em direção ao cemitério, que se localizava à retaguarda da capela. Rudi seguiu o grupo de pessoas. Ele caminhava devagar, combalido pelo desaparecimento da essência que vivia no interior daquele corpo que conduziam numa enegrecida caixa de madeira. Apesar de sentidos tão aguçados, o cão não conseguia definir para onde levavam Arleu e o que fariam com ele. O caixão desceu numa sepultura que não ficava distante da entrada do cemitério. Rudi tentou se aproximar, mas foi consolado por Dona Carmem que não o deixou chegar ao momento do enterro. A lápide foi colocada e lacrada. Coroas de flores foram depositadas sobre ela e as pessoas não retardaram a partir. O túmulo ficou vazio. A síndica e a irmã de Arleu chamaram o cão para ir embora, mas ele recusou. Quebrantado, dirigiu-se para a lápide e deitou-se ao lado dela, como fazia em casa, aguardando a chegada do dono. A noite chegou e se foi, dando lugar a um dia radiante. Rudi permaneceu deitado, todo o tempo, ao lado do túmulo.

Os coveiros que trabalhavam na manutenção do cemitério notaram a presença e permanência do belo cão que não abandonava o túmulo de um homem sepultado há poucos dias. Passaram a oferecer água e comida ao cão, que não bebia e nem comia. Dias e noites, de sol e de chuva, sucederam-se e o cão não abandonava o túmulo. Rudi foi emagrecendo a cada dia, tornando-se um monte de ossos cobertos por uma pelagem ressequida e fedorenta. A carne se deteriorava, mas o espírito mantinha-se forte, como a amizade que se formou, desde o dia em que foi recebido pelas mãos de um homem que o amou enquanto vivo.

Obra dedicada aos amigos Zamith e Denise

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