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"A literatura insinua e coloca questões muito mais do que as responde ou resolve."

-------------------Milton Hatoum, escritor brasileiro



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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O SOM DO VENTO

As pessoas que transitavam pelas ruas ou acomodadas no conforto de seus lares mudavam de expressão quando o ruído característico invadia seus ouvidos. A estridência da sirene do carro dos bombeiros que berrava sobre suas cabeças os incomodava mais pela penetração auricular do que pela inevitável lembrança que os chamados homens do fogo estavam em vias de atuar. Para ele, o som estrepitoso não era desconfortável. Fazia parte de seu trabalho. Mas era outro som incomparável que ondulava seu radiante coração. O som do vento. Pendurado na lateral do carro escarlate e prata, contrariando determinações de segurança da corporação, ele apreciava o vento. Ele lhe causava uma sensação excitativa e ao mesmo tempo relaxante, que lhe proporcionava a musicalidade necessária à ação que estava por vir. O som produzido pelo vento encantava-o, levando-o a devanear.

Pensava nos possíveis momentos de ação, de perigo, de aventura real que fariam jorrar adrenalina por todo seu corpo e inundariam seu coração palpitante. Iria ao socorro de algum homem ou criança caído num poço, ou simplesmente agiria na rotineira eliminação de um foco de incêndio que se alastrava e promovia morte e destruição? A curiosidade e ansiedade eram sumo necessário para a dinâmica que se instalava em seu íntimo, desde o instante em que irrompia a chamada de socorro. Mas suas lembranças também o conduziam ao encontro de outro coração, aquele que sempre o aguardava no fim do dia de trabalho. Clarice. Em seis meses se apaixonaram, noivaram e casaram. Um amor febril, profundo, enredado. O lar era uma pequena casa, alugada, com jardim na frente, onde viviam ardorosos momentos de paixão e felicidade. Entretanto, uma apreensão rondava o íntimo da esposa amantíssima, todos os dias. Para ela era inquietante, o momento que o bombeiro deixava o lar e se dirigia para o trabalho: “Ele voltará são e salvo?”

Uma curva brusca realizada pelo motorista diligente desequilibrou Bruno, que se mantinha agarrado a um dos corrimões do carro. O veículo que singrava no trânsito conturbado da cidade aumentou de velocidade e o som do vento aumentou de volume, penetrando mais fundo em seus ouvidos. Ele esboçou um sorriso cintilante, regozijando-se com a eletrizante emoção causada pelo perpassar do vento no rosto e na alma.

Seus olhos azuis logo avistaram a imensa coluna de fumaça que se erguia para o firmamento. Era uma massa de vapores escuros, em matizes acinzentados, que pelo volume e amplitude deveriam ser de um incêndio de graves proporções. O carro de bombeiros chegava à periferia da cidade, alcançando uma grande rotatória. Passara a hora do rush e o movimento de carros se reduzira ainda mais em decorrência da obstrução da estrada. O grande carro vermelho dobrou mais duas ruas e encaminhou-se para uma das pistas de rolamento. Naquele instante, Bruno identificou que a enorme queima não era em uma fábrica ou posto de combustível como julgara anteriormente. Um grande caminhão-tanque envolveu-se num engavetamento de veículos, tombando e capotando numa das vias. Ocorreu o derramamento de combustível e o fogo se espalhou. Todo o caminhão e mais meia-dúzia de veículos ardiam em chamas. Embora jovem, Bruno era um profissional experiente e cauteloso, fato que lhe proporcionava bons resultados nas ações que se envolvia no combate a incêndios ou no salvamento de acidentados.

O carro de bombeiros deixou a pista de rolamento e derrapou na grama do acostamento central. As sirenes de outras unidades do Corpo de Bombeiros começaram a ser ouvidas. O vento que antes deleitava o jovem bombeiro, agora o preocupava porque era fator agravante no combate que estava para se iniciar. Bruno e seus companheiros desembarcaram energicamente, movidos pelo espírito que impulsiona qualquer soldado do fogo: salvar vidas é sua prioridade. Havia outros veículos avariados pelo choque sucessivo que ocorreu. O chefe da equipe, em voz alta, distribuiu as missões a seus homens. Mangueiras, conexões metálicas e outros equipamentos foram retirados do carro e distribuídos. Iniciava-se uma grande e ativa movimentação dos bombeiros. Súbito, para surpresa de Bruno, seu chefe gritou por ele e mudou sua missão inicial, designando-o para retirar um motorista das ferragens de uma caminhonete Cherokee que havia capotado. Sem titubear, ele correu para o veículo que se encontrava afastado algumas dezenas de metros do núcleo incendiário.

Apesar de a caminhonete exalar vapores na região do motor, não apresentava sinais de fogo, mas poderia incendiar-se a qualquer momento, pois havia derramamento de combustível. O veículo muito danificado estava com a lateral tombada na grama e as rodas no ar, voltadas para a direção que Bruno se aproximava. Ele tentou alcançar o motorista pelo lado de fora, mas encontrou dificuldades. Num movimento célere, subiu na carroceria e entrou pela janela do passageiro. Quando já estava dentro da caminhonete, parou de repente, arregalando os olhos. Percebeu que o motorista apontava uma arma para ele.

- Calma, calma – disse o bombeiro. – Eu vim te salvar...

O homem estava preso nas ferragens. Ele tinha os olhos injetados e olhar esgazeado. Porejava muito, no rosto e no torso.

- Eu, eu acabei de roubar esse carro... assaltei a casa de um ricaço...

Ofegante e premido pela tensão do acidente, o assaltante empunhava a arma com firmeza, demonstrando perícia e intimidade com ela.

- Calma, não precisa apontar essa arma para mim... eu vim te ajudar a sair daqui...

Um odor despertou a atenção de Bruno. Ele olhou ao redor. Havia manchas de sangue pelo interior da caminhonete. Partes metálicas do veículo haviam perfurado e se alojado no corpo do assaltante. Ele contraiu o semblante, numa expressão indicativa de dor. O bombeiro esboçou que se aproximaria.

- Se chegar até aqui... te arrebento os miolos... ai...

A dor parecia aumentar.

- Tenha calma... não atire, eu vim te salvar... está vendo – disse Bruno indicando o uniforme que usava. – Eu sou bombeiro, vim te ajudar, não vim te prender, não sou da polícia...

- Mentira!... ai, ai... você deve estar disfarçado... cadê a tua arma? Mostre!

O bombeiro mostrou a palma das luvas que calçava.

- Não estou carregando arma alguma... fique calmo, eu sou bombeiro e vim te ajudar...

Outro odor atraiu a atenção do bombeiro, fazendo inquietar-se. Não eram mais gotas de suor que desciam do cenho, provocadas pela dinâmica dos movimentos, mas gotas produzidas pela tensão que se agravou.

- Tem vazamento de combustível neste carro, se ficarmos aqui nós vamos morrer...

O assaltante, em desdém, sorriu.

- Morrer? O que me importa?

- Não está sentindo o cheiro de gasolina? Eu vim te salvar, é o meu trabalho... deixe eu te ajudar...

O assaltante meneou a cabeça, demonstrando desesperança.

- Morrer... eu já estou morto, mano...

- Você tem família, tem irmãos?

O assaltante ficou pensativo por um segundo. Bruno percebeu que ele perdia sangue, lentamente.

- Meu pai... aquele desgraçado, me batia... foi morto na favela... minha mãe tinha AIDS e também morreu... minha vida é uma m...

- Infelizmente, muitas pessoas não têm a vida que desejam e nem para isso a melhor solução é a morte...

- Mas a minha vida sempre foi uma bosta, desde criança... só quebrei a cabeça, só dei com os burros n’água... acabei na prisão.

O avançar do tempo preocupava o bombeiro, pela iminência de uma explosão.

- Entendo teu sofrimento, penso que nem tudo está terminado quando ainda se tem vida... eu sou bombeiro, veja o uniforme, não sou da polícia, minha missão é salvar vidas e não prender pessoas... deixe que eu te ajude a sair desse carro, ele pode explodir a qualquer momento e se ficarmos aqui iremos explodir com ele...

- Ele tem toda razão.

A voz assustou e surpreendeu os dois homens que estavam no interior do carro. Ela vinha do alto da janela por onde Bruno entrou. Era voz de um policial militar que apontava um revólver para o assaltante.

- Largue a arma – ordenou o policial. – Você não tem chance: ou se entrega deixando que o bombeiro te tire daí ou acaba morrendo... nós não temos tempo a perder...

O assaltante fitou Bruno nos olhos. Em seguida, abaixou o olhar.

- O policial tem razão, o carro pode explodir, deixe que eu te tire daí... depois você decide o que vai fazer da tua vida...

O assaltante abaixou a cabeça e logo depois a arma. O bombeiro avançou e retirou a arma da mão do bandido e entregou-a ao policial.

- Agora, aguente mais um pouco, nós vamos tirar você daí...

Bruno saiu e deparou-se com outros bombeiros que se articulavam em torno do carro tombado. Eles aguardavam o desfecho da situação para iniciarem o resgate. Fora da caminhonete, Bruno sorriu aliviado. Ele voltaria para casa no final do turno, vivo para reencontrar seu grande amor. Salvariam aquele homem em desalento com a própria vida e debelariam o incêndio, para depois retornar para o quartel, para uma nova chamada. Talvez, no retorno, ele gozasse mais uma vez o som do vento.

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