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"A literatura insinua e coloca questões muito mais do que as responde ou resolve."

-------------------Milton Hatoum, escritor brasileiro



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sábado, 7 de novembro de 2009

ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL

Ele bateu a porta no momento que saía. Dentro da pequena sala estava quente, o ambiente abafado. Lá fora estava frio, decorrente da chuva fina e fria que caía. Ficara nervoso, como todas as outras vezes, mas conseguira ocultar sua aflição. Não tinha certeza exatamente qual a razão para tal comportamento. Talvez fosse pela beleza da psicóloga, mulher mais velha, entretanto bonita, de cabelos longos e encaracolados nas pontas. Sentia-se atraído por mulher tão interessante, mas não lhe passava na cabeça nada mais que pura atração. A bela tinha idade para ser sua mãe e ele a respeitava como se o fosse. Talvez a aflição decorresse do medo. Medo que o patrão descobrisse por onde andava.

Hugo voltou a pé para casa. Andando com as mãos nos bolsos da calça jeans desbotada, entregava-se aos devaneios. Tinha consciência que o aquilo que fazia não era errado. Queria ser alguém na vida, deixar as desgraças e tristezas da favela para trás, livrar sua mãe da vida miserável que levavam. Tinha dúvidas que profissão deveria seguir e descobriu que na universidade, numa clínica que lá existia, atendiam gente carente, ajudando a descobrir que carreira seguir. Disseram que era fácil: conversar com uma moça e fazer uns testes simples. Ele achou ótimo e pensou que não poderia perder a oportunidade. Sopros de vento sacudiam suas roupas baratas e velhas. Num momento ele caminhava nas calçadas, no outra palmilhava as ondulações das ruas. Veículos passavam rapidamente por ele, atingindo-o com rajadas de respingos das poças d’água da chuva que não cessava. Sorriu ao lembrar-se das sessões que participara com a “doutora”. Dissera que interrompeu os estudos por necessidade, por ter que trabalhar para ajudar em casa. O tempo que passou nos bancos escolares permitiu que percebesse que gostava de estudar, de fazer cálculos, escrever histórias nas aulas de língua portuguesa. Conseguirá chegar até o ensino médio. Tinha boa memória, lembrou-se das sessões, dos testes aplicados pela “doutora”. Perguntava tudo, chegando a constrangê-la e ela não lhe negava o conhecimento.

- Como se chama esse teste?

- Quati...

- O que quer dizer?

- Questionário de Avaliação Tipológica.

- E aquele outro, que fiz?

- QVI...

- O que significa?

- Como você é curioso... isso não é um dos objetivos da orientação, mas tudo bem, significa Questionário Vocacional de Interesses...

- Estou gostando... – disse o jovem, sorrindo.

- Vamos ao questionário pessoal... o que você gosta de fazer?

E durante as entrevistas não paravam as perguntas. Hugo queria aproveitar o máximo os conhecimentos da orientadora. Receava que sua presença na clínica da universidade fosse interrompida de uma hora para outra.

Ele sorriu, denunciando do interior da boca o único brilho que existia em sua vida medíocre. Pensava em ser engenheiro, trabalhar numa grande obra, usando capacete de proteção, coordenando as ações dos operários. Pensava em ser advogado, envergar um daqueles ternos escuros e impecáveis, como daqueles homens sérios que via na frente do fórum, quando ocorriam audiências de gente do tráfico e ele era obrigado a ir, para no caso do patrão mandar invadir. Sempre temia que isso acontecesse.

O percurso até a entrada da favela foi vencido sem que seu corpo percebesse o esforço despendido. Hugo parou na subida do morro. Embora a escuridão começasse a espalhar-se pela cidade, seus olhos miúdos e esperançosos miraram a elevação encoberta por moradias insalubres. Eram casas com ou sem reboco que se acotovelavam e geminavam com barracos de madeira reaproveitada. Pessoas se moviam lentamente, subindo e descendo escadas, rústicos acessos criados na terra e na rocha. Seres esmolambados, desapontados com as autoridades, com os políticos que só pareciam no período eleitoral esbanjando hipocrisia. Prometiam de tudo e não cumpriam nada. Seu público eram homens, mulheres e crianças sem perspectiva de vida, com um único estilo de vestir e viver, amedrontados e oprimidos pelo mal do tráfico. O mal das drogas na favela representa o câncer que se alastra, que mata aos poucos, proporcionando uma vida agônica. Os moradores respeitam a lei do silêncio. Sofrem calados, cedem suas vidas, de uma forma ou de outra, para o comércio injusto e cruel. E isso Hugo sabia perfeitamente o que significava. Embora com apenas dezessete anos de idade, prestes a alistar-se no serviço militar obrigatório, mesmo sem ter colocado os pés dentro de um quartel, já conhecia muito da guerra. Era um legionário do tráfico. Participara de tiroteios, ferira e fora ferido, conduzira drogas de um local para outro. Uma lágrima correu silenciosa pelo rosto marcado pela acne e, no mesmo instante, ele sentiu uma dor no peito, como sentira muitas outras vezes.

Hugo enveredou por um caminho que ora se estreitava, ora se alargava, em direção ao alto do morro. O jovem esquálido e de boné virado para trás, subia devagar, rejeitando no íntimo o avançar imposto por uma escolha que não fizera. Não queria ser um traficante pelo resto de sua vida. Queria dignidade, respeito, admiração, felicidade. Súbito, no desvão de um barraco, da escuridão que o circundava, parte das sombras desmembrou-se para, violentamente, agarrá-lo por trás. Ele se debateu, tentando escapar e logo percebeu que eram dois homens, muito mais fortes que ele. Das sombras também surgiu uma figura que aquietou o jovem aprisionado. Ele arregalou os olhos quando se deparou com um dos homens mais temidos da favela.

- E aí, meu irmãozinho, por onde tem andado?

Hugo relutou em falar, e mentiu.

- Eu, eu fui lá no centro, comprar um remédio pra minha mãe...

Gino Quarenta era filho de Nonato Zinca, o patrão do tráfico na favela onde Hugo morava. O sujeito com tatuagens pelos ombros e braços se aproximou e, com um aceno de cabeça, viu seus asseclas revistarem Hugo.

- Deixa de mentir! Você tá sem remédio nenhum nos bolsos!

Gino agarrou a camiseta de Hugo e torceu-a, estrangulando-o. O jovem esperneou, por começar-lhe a faltar o oxigênio.

- Argh! Ginoo! Vo-cê vaai me mataaarr!

O criminoso sorriu, explicitando sua crueldade.

- É o que tô pensando... – disse Gino apertando ainda mais a garganta de Hugo. – O que o mano tá fazendo com aquela mulher bonita lá da faculdade?...

- Argh! Eu...

- Tô sabendo que tá indo lá toda semana... fazê o quê, mano?!

- Não tô... conseguinndo falá...

Gino soltou a camiseta e se afastou de Hugo. Com as mãos em concha, acendeu um cigarro.

- Vai, fala logo o que tá fazendo lá...

- Orientação profissional...

- Orienta, o quê?!

- Orientação profissional...

- O que é isso?!

- É pra ajudar as pessoas descobrirem que profissão devem seguir...

Gino balançou a cabeça enquanto sorria, manifestando a ausência de dentes e a presença de cáries discretas.

- Pra quê o mano quer saber o que vai ser?... meu mano, você é nosso, é da família, entendeu?... profissão, profissão, a tua profissão é aviãozinho... por enquanto – disse o traficante requebrando o corpo no momento que tragava.

- Eu... não quero ficar morando na favela... a minha vida toda...

- Tá ficando mais velho, daqui a pouco melhora de situação... aí vai recebê mais... tua vida vai melhorá.

- Eu quero dar uma vida melhor pra minha mãe e... pra mim.

Gino balançou a cabeça e tragou o cigarro. Olhou para os comparsas e disse:

- O mano tá ficando metido, tá se achando, galera... se achando melhó que nós... vê se te enxerga!

- Não!Não é nada disso, eu só quero estudar, Gino, quero ir pra a faculdade, pra ajudar minha mãe...

- Cala a boca de merda! Daqui você não vai sair pra faculdade nenhuma! Ouviu?! Nem pense em ser um bacana, nem pense!

Os dois asseclas, num aceno do criminoso, passaram a espancar Hugo. Ele gemia enquanto levava socos e pontapés. Logo caiu no chão, onde chutaram suas costas. Gino se aproximou e inclinou o corpo sobre o jovem caído.

- Nem pense em entrar nesse negócio de faculdade... não quero sabê de você ir falá com a mulher bonita, ouviu?! Nem parece lá! – vociferou o traficante.

O grupo deixou o local e desapareceu tão rápido quanto surgiu. Hugo rolou no chão. O rosto e o corpo doíam. Muito. Um gosto amargo de sangue apareceu em sua boca. Passou a mão pelo rosto e percebeu uma mancha de sangue na palma da mão. Levantou-se devagar e continuou a subir. As costas e o rosto doíam bastante. Chegando ao lar, foi interpelado pela mãe que notou os ferimentos. Negou todas as afirmações condenatórias. Tomou banho, comeu alguma coisa das panelas enegrecidas pelo fogão enferrujado, e foi dormir.

- O que houve com você?! – indagou a psicóloga quando viu os hematomas no rosto de Hugo.

- Nada, moça, nada.

- Nada?! Como nada?!... você está todo machucado! Quem te bateu?

Silêncio, um silêncio marcado pelo abaixar da cabeça e o apertar dos dedos, uns contra os outros.

- Hugo, você é um bom rapaz, mora na favela, mas tem condições de ter um futuro melhor, dar algo melhor para sua mãe, como conversamos... diga, não tenha medo, quem fez isso... eu vou tentar te ajudar...

Hugo ergueu a cabeça e fitou a psicóloga. O medo e a vergonha não foram suficientes para impedi-lo de falar.

- Com todo respeito, moça, mas se o governo não acaba com o tráfico no morro onde moro, se não dá emprego pra quem vive lá... acho difícil, muito difícil, a senhora resolver o meu problema.

A sessão de orientação profissional terminou antes do previsto. Hugo foi para casa. Subia os caminhos estreitos e tortuosos do morro, quando foi novamente abordado por Gino Quarenta e seus comparsas.

- Não te falei pra não voltar lá na faculdade? Não falei pra não conversá com a mulher?! Não te falei, mané?!

Os olhos do jovem marejaram. Seu coração batia aceleradamente. A violência do tráfico se materializava na figura de Gino.

- Gino, eu, eu quero entrar na faculdade, eu não tenho nada contra você, nem contra seu pai, eu quero ser alguém, entenda, eu quero...

Antes mesmo de Hugo terminar de falar, o criminoso sacou um revólver, de trás da cintura. O estrondo dos disparos espalhou-se pelos barracos ao redor. Nenhuma das janelas foi aberta e ninguém saiu para ver o que estava acontecendo. O corpo esquálido tombou na terra úmida do caminho. A camiseta molhada pelo suor passou a umedecer-se pelo sangue que começou a sair das perfurações no peito. Os olhos de Hugo ficaram abertos, arregalados pelo terror que o cobriu. A boca não expelira o grito de agonia do ser esperançoso. O coração entusiasmado com planos para o futuro parou de bater. O sonho do jovem da favela, de receber seu diploma num dos auditórios da universidade pública, volatilizou-se num instante.

- E a mãe dele, quando soubé? – indagou um dos asseclas.

- Que interre esse vacilão, esse babaca que queria ser doutô – respondeu Gino.

Ele cuspiu sobre o corpo de Hugo. Com um aceno de cabeça, foi seguido pelos comparsas. O grupo passou a subir pelo caminho onde estavam e desapareceu por entre os barracos. Segundos depois, moradores saíram e circundaram o cadáver do jovem caído. Um menino logo gritou:

- É o “fio” da Dona Mirtes!

- Meu Deus! É o Huguinho! – bradou uma sexagenária colocando as mãos no rosto.

O menino disparou, subindo o caminho. Minutos depois, a mãe de Hugo avançou por entre aqueles que estavam ao redor do cadáver ensangüentado. Quando viu o filho morto, caiu de joelhos e abraçou o corpo imóvel, passando a chorar intensamente.

Hugo foi morto na velada guerra civil que ocorre diariamente nas favelas dominadas por um exército descaracterizado e que conhecemos muito bem. Pertencia a um dos lados, por questão das circunstâncias e do lugar onde nasceu. Por tentar mudar seu destino, por tentar buscar uma nova sorte, por tentar ser uma pessoa digna, respeitável, foi considerado traidor do código de ética da facção a qual pertencia, passando a ser mais uma vítima dele.

Em memória dos jovens que não tiveram escolha em suas vidas


e que foram vítimas do tráfico de drogas.

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