A madrugada estava fria e passava das quatro horas. Ele foi acordado pelo toque quase ininterrupto do celular sobre o criado-mudo. Girou o corpo na cama e atendeu. Uma voz conhecida informou-o do assassinato de um homem e de uma mulher. Fato corriqueiro que não lhe alterou o comportamento e nem muito menos os batimentos cardíacos. Calmamente, levantou-se e foi para o banheiro. Realizou a higiene, ficando a contemplar o rosto por um instante. Traços delineavam seu cariz, expressando a satisfação ebuliente que o embalava. Sorriu, quando percebeu que conseguira tocar o coração de Cibele e que ela reagira de forma positiva. Retornou para o quarto e vestiu-se. Com as chaves do carro na mão e movido pelo sentimento do dever, saiu de casa.
Minutos depois, o carro de Macário estacionou do outro lado da rua. Era madrugada e a ocorrência de um crime numa rua tranqüila despertou a vizinhança. Debruçados em muros ou reunidos nos portões de suas residências, os vizinhos mantinham-se em vigília, tentados a satisfazer sua curiosidade. Junto à calçada, na frente da casa para onde se concentravam os olhares e as atenções, estavam estacionados três carros da polícia. Uma dupla de policiais permanecia guarnecendo sua entrada, com o intento de impedir a entrada de algum vizinho ou curioso no local do crime. O detetive desembarcou e atravessou a rua. Enquanto caminhava, sua atenção convergiu para a casa. Indubitavelmente, ela existia de longa data. As trevas cobriam a fachada, mas percebia-se sem dificuldade que estava desbotada e carcomida em várias partes, degenerada pela ação inquebrantável das intempéries. Antepondo-se à fachada, árvores e plantas elevavam-se, convolutas, taxando uma lugubridade ao local. O portão de acesso de pedestres estava enferrujado e rangia quando movido em qualquer sentido, igualmente ao da garagem, onde um carro luxuoso estava coberto por uma capa protetora. O detetive passou pelos policiais e alcançou a varanda. Esta era pequena, de piso azulejado e encardido. A porta da frente estava aberta e, por ela, o som de vozes escapava. Ele transpassou o umbral e, num extremo da pequena sala de estar, encontrou reunidos o delegado Herval, o inspetor Botelho e o detetive Castilho, seu colega investigador.
No grupo, destacava-se pela altura o delegado. Ele era um homem alto, de espáduas largas e cabelos grisalhos e ondulados. Apesar da expressão carrancuda, Herval era um homem sensato, que procurava manter um relacionamento cordial com seus subordinados, sem exceção. Titular da subdelegacia de Repressão a Tóxicos, da 35ª Delegacia Regional de Segurança Pública, ele comandava as ações de seus policiais com disciplina e dinamismo.
- Boa noite... o que foi que aconteceu? – perguntou Macário quando se aproximou.
O delegado tragava o cigarro no momento em que encarou o detetive. Na intimidade, eles eram amigos.
- Infelizmente, um dos nossos morreu... assassinaram o detetive Alcides – retrucou Herval.
Macário franziu o semblante, para embalar a cabeça em negação. Apesar de toda a violência que vogava, o homicídio de um policial era um fato inusitado na cidade, particularmente quando ele não estava em serviço.
- Como aconteceu?
- Ainda não sabemos exatamente... – retrucou Herval. – Pouca coisa foi apurada até agora...
- Temos testemunhas?
- O vizinho, que mora ao lado, estava na cozinha tomando um remédio quando ouviu disparos e os gritos de uma mulher – esclareceu o inspetor, acendendo um cigarro. – Ele ligou fazendo a denúncia e uma viatura veio averiguar... os policiais encontraram a porta dos fundos aberta e passaram a revistar a casa... acabaram encontrando os corpos no quarto.
O inspetor Botelho era um homem de cabelos pretos e lisos, com raros fios grisalhos. O corpo delgado desarmonizava-se com uma pequena e saliente barriga. O chefe dos detetives raramente sorria e tratava com relativa austeridade seus subordinados. Esta conduta criara uma aversão espontânea por todos, exceto por Macário. O detetive acreditava que a ausência de afabilidade no comportamento do inspetor refletia os fatos que assinalavam sua vida privada. A separação judicial levou sua vida ao declínio. A liberdade de visitar os filhos foi cerceada. Influências negativas da ex-mulher, sua fiel opositora, comprometeram seu relacionamento com a prole, deixando-o angustiado. O fato de passar a viver sozinho e distante daqueles que amava, levaram-no à depressão. Dia após dia, depois do término do expediente na delegacia, Botelho perambulava pela madrugada, na forma mais dissimulada possível, bebendo e trocando prosa com boêmios e dormindo com damas da noite.
- O Alcides morava nesta casa? – perguntou Macário.
- Sim – assentiu o delegado.
- O vizinho que fez a denúncia viu alguma coisa? – indagou Macário.
- Sim, pela janela da cozinha de sua casa – continuou o inspetor. – Ele disse que estava muito escuro, que viu um vulto sair pela porta dos fundos e correr pelo quintal, pulando o muro dos fundos... não sabe dizer se era homem ou mulher ou como estava vestido...
- Alguém mais viu alguma coisa? – perguntou Macário.
- Não que saibamos, tentei fazer contato com o outro vizinho do lado e descobri que ele viajou ontem para Belo Horizonte – disse Castilho. – Os demais vizinhos têm medo, não querem se envolver, dizem que não ouviram e não viram nada.
- Isso é normal – observou Macário.
- Temos também uma senhora como testemunha – declarou Botelho. – Ela mora numa das casas do outro lado da rua.
- O que ela viu? – perguntou Macário.
- É uma senhora de sessenta e cinco anos, disse que viu, um pouco antes da meia-noite, o Alcides parar o carro na frente de casa e entrar acompanhado de uma mulher de cabelos loiros... nada mais.
Um momento de silêncio estabeleceu-se. O delegado tragou o cigarro e disse:
- Temos um duplo homicídio e um dos corpos é de um policial... não sabemos em que circunstâncias o crime aconteceu, quais foram suas causas... temos testemunhas, uma delas alegou ter visto um vulto, não confirma se era homem ou mulher... a perícia está fazendo o levantamento... nós pouco conhecíamos o Alcides, ele parecia ser um bom policial, que eu me lembre não tivemos grandes problemas com ele, nem com o seu colega, o Divério...
O delegado encarou o inspetor e alteou as sobrancelhas.
- Qual a sua impressão sobre ele?
- O Alcides era um bom policial, não tive problemas com ele, trabalhava bem... desconheço se estava envolvido com algum ilícito.
- Castilho... – disse o delegado
- Tive pouco contato com ele, não éramos amigos e nunca trabalhamos juntos.
- Macário?
- Pouco conversei com o Alcides durante todos esses anos, não tenho conhecimento de nada que possa comprometer sua conduta...
Todos ficaram calados por um segundo.
- Com relação ao crime, alguma hipótese? – indagou Macário.
- Talvez roubo, talvez queima de arquivo... – observou o inspetor.
- Queima de arquivo? – indagou Macário olhando para o inspetor.
- Talvez ele estivesse envolvido com algum ilícito que não sabemos e alguém achou que sabia demais, por isso foi morto.
- Ainda não temos certeza de nada – disse Herval. – Tudo é especulação... quero que comecem logo cedo a investigar o caso, vasculhem o passado dos dois, descubram quais as pessoas que pertenciam ao círculo de relacionamentos do Alcides e da garota que foi morta, quero nomes e fatos, descubram onde estiveram nos últimos dias e com quem estavam envolvidos... mãos à obra.
Herval encarou Macário e disse:
- Vá lá dentro e dê uma olhada, depois fale conosco na delegacia.
O detetive deixou o grupo e dirigiu-se para o interior da casa. Os policiais presentes não circulavam pelo local, à procura de algum vestígio. Quando passou por uma segunda sala sua atenção foi atraída pelo fato de tudo que estava revirado. Mais alguns passos e ele parou na porta do quarto onde estavam os corpos. A tetricidade estampada na cena do crime caracterizava a violência perpetrada pelo assassino. Ali também móveis e objetos estavam fora do lugar, arremessados ao chão, indiciando que alguém procurara alguma coisa. Manchas e respingos de sangue tingiam o quarto, presentes na roupa de cama e no piso de madeira. O corpo do policial morto estava estirado, ao lado da cama, sobre uma poça sanguinolenta. Sobre a cama jazia o cadáver desnudo de uma mulher, de pouco mais de vinte anos de idade. Nele destacavam-se três perfurações, com grandes nódoas avermelhadas. Duas delas localizavam-se na região dos seios voluptuosos e a terceira no abdômen. Pela disposição de seu corpo e a expressão que permanecera em seu rosto, ela testemunhara a morte trágica de seu amante e fora executada em seguida.
Um grupo de peritos criminais movia-se pelo quarto. Um deles implementava o exame perinecroscópico, que é o exame do corpo. Meticuloso, ele assinalava e fotografava os ferimentos nos cadáveres e os sinais de morte. Em torno das vítimas, também gravitavam o papiloscopista e o fotógrafo, que procuravam vestígios, como impressões digitais, manchas, pêlos, armas e fragmentos diversos. Estes indícios, que normalmente são desapercebidos por uma pessoa comum, constituem-se em peças fundamentais no transcorrer das investigações e no esclarecimento de um crime.
Macário entrou no quarto. O intrépido detetive tinha um instinto apurado. Inúmeras vezes, baseado exclusivamente neste atributo, ele agia com determinação, preterindo fatos aparentes e procedimentos padrão, conduta que lhe redundava em bons resultados. Como sempre, objetivava ter sua impressão do local do crime. Silente, caminhou cuidadosamente até onde estava o cadáver do policial. Agachou ao lado dele e passou a analisá-lo. Seus olhos perscrutadores observaram a rigidez cadavérica e a posição do corpo, bem como as lesões aparentes e os cartuchos deflagrados próximos da porta. Em seguida, ele levantou-se e dirigiu-se para o cadáver da mulher. Novamente observou os mesmos aspectos sob os quais analisou o corpo de Alcides. Introspectivo, cruzou os braços, olhando em derredor. Havia algo de errado.
O Alcides era um policial experiente... ele foi morto com sete tiros... se formos analisar o fato, tecnicamente, o crime tem caráter de execução e não de um latrocínio...
Na mente do detetive havia um movimento febril de idéias e perguntas. Ele saiu do quarto e caminhou em direção à cozinha.
... quando entrei na casa percebi que a porta da frente não foi forçada ou arrombada...
Suas mãos averiguaram a porta dos fundos e seu umbral.
Essa porta também não foi forçada e nem arrombada...
No momento seguinte, ele passou a percorrer os quartos, verificando as janelas, para depois voltar à cena do crime. Um perito de cabelos grisalhos estava ao lado da cama e fazia anotações numa prancheta. Macário aproximou-se e interpelou-o.
- Luciano, sabe me dizer se a porta da frente foi encontrada aberta pelo policial ou pela equipe que atendeu a ocorrência?
- Não, a porta não estava aberta, segundo me informaram os policiais.
- Quando eles chegaram até aqui, entraram pela porta dos fundos?
- Sim, ela foi encontrada aberta.
Não há vestígios visíveis de arrombamento nas portas e janelas da casa, indicando que o assassino certamente era pessoa que pertencia ao universo de relacionamentos de uma das vítimas, no caso o Alcides... ele penetrou na casa com facilidade, talvez porque conhecia o lugar... é possível que tenha conseguiu, por meios escusos, uma cópia da chave da porta dos fundos, acesso que facilitou sua invasão ao interior da casa... ele deve ter seguido o casal até aqui e os surpreendeu num momento de intimidade... não há vestígios de luta corporal e a coisa deve ter acontecido rápido, o Alcides não teve tempo para reagir... foi executado, morto a sangue frio... é possível que a garota não tenha relação nenhuma com o crime, mas pelo fato de estar presente foi morta também... o quarto foi revirado, indicando que o assassino procurava alguma coisa... resta a dúvida se realmente encontrou o que procurava...
- A que horas você calcula que o crime aconteceu?
- Pelo que levantamos deve ter ocorrido, aproximadamente, entre uma e duas horas da madrugada...
- Qual o calibre dos cartuchos deflagrados?
- São de uma pistola nove milímetros...
- Impressões digitais?
- Não, o assassino não deixou marcas residuais de sua presença...
Um instante de silêncio e o detetive percebeu que o perito meneou a cabeça.
- O que foi?
- É algo interessante.
Macário franziu as sobrancelhas.
- Do que se trata?
- Esse crime tem algo de incomum, por alguns fatores... primeiro, normalmente os crimes aqui na cidade ocorrem nas ruas, em terrenos baldios... segundo, há muito tempo eu não vejo um local de crime tão limpo... e terceiro, aqui em São João os assassinos não se preocupam em não deixar vestígios, são assassinos conhecidos e que normalmente estão envolvidos com o tráfico de drogas, eles não tem nada a perder, por isso não se preocupam em limpar o local... mas o sujeito que fez isso é cuidadoso, não quer ser descoberto...
- Você quer dizer que parece serviço de gente de fora? – indagou o detetive.
- Parece que sim, trabalho de profissional.
- Alguma informação sobre a garota?
- Seus documentos a identificam como Débora Dantas de Pessoa... ela reside em outra cidade, mas estuda na UFSJ.
- Vocês já recolheram a bolsa dela?
- Sim.
- Posso vê-la?
- Claro.
O perito foi até um canto do quarto e apanhou um grande saco plástico que envolvia a bolsa da vítima. Ele forrou o chão com outro saco e despejou o conteúdo da bolsa sobre ele. Macário agachou-se e retirou uma caneta do bolso. Devagar, passou a verificar, com a ponta da caneta, os objetos pessoais da jovem assassinada.
Batom, caneta, escova de cabelos, rímel, fio dental, óculos de sol, preservativo...
O olhar observador do detetive fixou-se numa caixa de fósforos, com a propaganda de uma casa noturna da cidade, chamada Rosas da Noite.
Eu conheço essa boate... ela fica no final da rua Josué de Queiroz, no bairro Pio XII... é um prostíbulo...
Em seguida, seu olhar deparou-se com um convite de divulgação, muito colorido, de uma festa de jovens universitárias, no qual constava o nome de uma residência coletiva de estudantes: República das Meninas das Geraes.
Débora devia residir nessa república...
Macário levantou-se. Andou pelo quarto e parou junto a um dos criados-mudos. A ponta de sua caneta vasculhou as cinzas e guimbas de cigarro que se amontoavam no cinzeiro de porcelana.
Guimbas de cigarro... marca Hollywood...
- Luciano, vocês encontraram alguma coisa importante que possa me ajudar?
O perito interrompeu o que fazia e voltou-se para o detetive.
- Em primeira análise, relacionando as guimbas de cigarro presentes neste cinzeiro, com uma que encontramos próxima da porta dos fundos... verificamos que suas marcas são diferentes... estas são mais antigas e que aquela é nova, recentemente descartada, podendo pertencer ao assassino.
- É possível ver a marca daquela que vocês encontraram?
- Sim, é Hollywood.
O detetive ficou pensativo.
A guimba que foi encontrada pela perícia lá fora é da marca Hollywood... possivelmente pode pertencer ao assassino... e essas que estão aqui são de marcas diferentes... tenho que checar qual a marca de cigarros que o Alcides costumava fumar e se a garota fumava... Tenho que descobrir se a marca que fumavam era da mesma da guimba encontrada pela perícia...
Macário retornou para a sala, juntando-se ao grupo que confabulava sobre o crime ocorrido.
- Pessoal, acho melhor irmos para casa – disse o delegado. – Amanhã quero uma reunião na minha sala, às dez horas, levantem tudo o que puderem para que possamos iniciar as investigações...
Naquele instante as palavras do delegado foram interrompidas pelos homens que passavam pelo grupo. Eles removiam os corpos de Alcides e Débora para o carro de transporte de cadáver que os levaria para o necrotério. Herval consultou o relógio de pulso.
- No momento não podemos fazer nada, vamos para casa descansar um pouco...
O grupo dispersou-se, abandonando a cena do crime. Herval percebeu que Macário ficou parado onde estava, introspectivo.
- Você não vem?
Macário e Herval eram velhos amigos. Na intimidade não havia formalidades entre eles.
- O que você acha da morte do Alcides?
O delegado enfiou as mãos nos bolsos das calças e fitou o amigo nos olhos.
- Eu não conhecia o Alcides além do trabalho na delegacia... era um bom detetive, homem de poucas palavras e de poucos relacionamentos, exceto com o Divério, a quem vivia grudado... não tenho maiores informações sobre ele... você sabe de alguma coisa?
- Pouco além disso, mas nada relevante...
- Infelizmente, nós sabemos que existem policiais corruptos na delegacia, que andam envolvidos com o tráfico e o crime organizado, e que não temos como provar que agem ilicitamente... você sabe se o Alcides era corrupto?
- Não posso afirmar... ele era um sujeito calado, de poucos relacionamentos... não sei nada sobre ele...
- Mas se eu bem conheço você, tem alguma coisa matutando nessa sua cabeça – disse o delegado.
- Meu instinto está me atormentando, Herval... o Alcides devia estar envolvido com alguma coisa que redundou em sua morte e da garota... é bem provável que ele soubesse de alguma coisa importante e que talvez estivesse a ponto de delatar seus comparsas...
- Por isso deram fim a sua vida... mas, meu amigo, é isso que vamos tentar descobrir... vamos, vamos embora, amanhã nós começamos a investigar o caso.
Os dois policiais deixaram a casa, dirigindo-se para seus respectivos carros.