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"A literatura insinua e coloca questões muito mais do que as responde ou resolve."

-------------------Milton Hatoum, escritor brasileiro



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sexta-feira, 16 de julho de 2010

UM HOMEM CHAMADO MACÁRIO (5)

O garçom, vestindo calças pretas e camisa branca, aproximou-se da mesa. Estranhamente, ele usava um avental escuro que lhe cobria o corpo até os joelhos. Silente, passou a dispor cuidadosamente sobre a mesa o pedido solicitado meia hora antes. A disposição meticulosa e a imagem colorida do prato principal provocaram um sorriso de satisfação no casal. Um segundo garçom apresentou-se à mesa e serviu o vinho escolhido pelo cavalheiro. Depois de prová-lo, Macário murmurou:

- Huum, esse vinho está ótimo!

Os garçons retiraram-se e o casal iniciou sua lauta refeição. O comportamento à mesa revela seguramente a educação e o grau de sociabilidade de uma pessoa. Suas boas maneiras e a naturalidade com que usa o garfo e a faca demonstram se ela habitualmente manuseia os talheres em casa ou numa mesa de cerimônia. Cibele executava movimentos leves e delicados no comer, característicos de uma mulher de educação refinada.

- Meu prato predileto é este frango à Paris... claro que acompanhado por um bom vinho tinto – disse o detetive.

Preluziam sedosos cabelos pretos sobre os ombros delicados. Garbosamente emolduravam um cariz tenro, sedutor, no qual vicejavam cintilantes olhos azuis. Discretamente, ela sorriu num contentamento íntimo por tê-lo em sua companhia.

- Pela tua satisfação, não tenho dúvidas disso – disse Cibele.

- Sim, realmente gosto muito... acho que o que me atrai é esse sabor inusitado que a carne adquire... esse sabor muito me apetece... você gostou?

- Sim, claro, é um prato leve e saboroso... adorei.

Os olhos azuis contemplavam o semblante do detetive, como se pudessem lhe tocar as faces. Ela bebeu um gole de vinho, enquanto o encarava. Tentava ocultar seus sentimentos, mas era traída pela expressão de seu rosto.

- Percebo que você aprecia uma boa gastronomia – disse a beldade.

Ele sorriu.

- Sempre apreciei comidas refinadas, talvez por causa de minha avó, ela gostava de fazer pratos exóticos... mas como todo bom brasileiro, não dispenso uma tradicional comida mineira.

Das curvas encantadoras recendia um perfume que provocava os sentidos de Macário. Em alguns momentos, ele desviava o olhar, como um adolescente em uma de suas primeiras conquistas amorosas, mas seu coração permanecia imantado a energia emanada por Cibele. Ela passou o guardanapo nos lábios, para evitar nódoas de gordura da comida no cálice e bebeu um gole de vinho.

- Como está o ombro? – indagou a médica. – Ainda dói?

- Depois de ser tratado por você eu não poderia estar melhor.

Ela sorriu. A bela cirurgiã atendera Macário no pronto-socorro do Hospital das Mercês, na tarde da operação policial que culminou com a morte do traficante Mazinho.

- Depois dos dois curativos que fiz, você não mais voltou ao hospital... senti sua falta, você precisa cuidar desse ferimento, provavelmente ele ainda não está totalmente cicatrizado...

- Me falta tempo, Cibele... sou um policial muito atribulado.

Ela meneou a cabeleira negra.

- Todos temos muito que fazer, mas se não cuidarmos de nossa saúde, adeus energia para o trabalho...

- Sei que tenho que me cuidar, mas muitas vezes não sobra tempo.

- Não chamo isso de atribulação, chamo de negligência... a saúde deve estar em primeiro lugar e acho que você devia pensar assim...

- Obrigado por se preocupar comigo.

- Se é tão importante estar bem fisicamente no exercício da tua profissão, como você já disse, acho que deveria tratar dos ferimentos com mais cuidado.

- Sim, você tem razão, mas procure me entender, existem prioridades profissionais que eu não posso desprezar.

Ela ficou calada, fitando-o nos olhos, por um instante.

- Está bem, já vi que você não entende.

- Não há nada mais importante que a saúde, pelo menos eu penso assim...

- Não é por acaso que você é médica.

- E acredito que você pensa da mesma forma com relação à Justiça...

- Não posso negar.

Cibele bebeu um gole de vinho.

- Sabe que acho você um homem diferente...

O detetive parou de comer.

- Diferente? Eu?

- Sim, acho você um homem diferente... diferente de todos os homens que eu já conheci... e conheci poucos...

O detetive sorriu.

- Será que realmente conheceu poucos? – disse Macário jocosamente.

- Não fale assim, você pensa que eu sou o quê?! – murmurou Cibele tomada por um leve rubor.

- Uma linda e respeitável mulher que aceitou jantar comigo depois de dois convites recusados...

Cibele sorriu.

- Você não tem jeito, sempre bem humorado... mas falando sério, como você, eu me dedico muito à minha profissão, tenho pouco tempo disponível... e não sou muito de sair de casa, não sou de badalação.

O detetive meneou a cabeça em concorde.

- Eu percebi, e isso me levou a gostar de você... mas como é mesmo a desculpa?

Ele modulou a voz.

- “Ah, hoje eu não posso porque estou de plantão...” ou “... hoje eu estou muito cansada, vamos deixar para outro dia?” ou “...não imagina que dor de cabeça que eu estou sentindo... vamos deixar para outro dia?”...

- Ah, Eduardo, procure me entender... como eu podia sair com você? Não te conhecia direito, não sabia quase nada a teu respeito...

A candidez da médica sensibilizava o detetive.

- Afinal de contas, você é um policial e eu nunca me envolvi com um policial, a não ser no exercício do meu trabalho.

- Tudo bem, tudo bem, Eu entendo, mas você está sendo um pouco preconceituosa... apesar da má fama retratada pelos jornais em relação à polícia, policiais não mordem... – retrucou Macário alegremente.

- Mas matam... são assassinos – observou a médica categórica.

O cariz do detetive mudou, mesmo que ele tentasse manter a mesma serenidade e alegria do início do jantar. Cibele percebeu seu desagrado.

- Desculpe, desculpe, eu não queria te ofender...

Macário ficou calado, fitando-a nos olhos.

- Mas me compreenda, eu fiquei insegura em relação a você...

- Tudo bem, mas não há o que temer... se queria me conhecer melhor, saber realmente quem eu sou, você já sabe.

A médica tomou um gole de vinho.

- Sim, acho que te conheço um pouco, pelo menos acho que conheço.

O detetive passou a mão pelos cabelos e bebeu um gole de vinho.

- Mas você disse há alguns segundos atrás que eu sou diferente... no que eu sou diferente?

- Ah, você é gentil, cavalheiro, coisas que nós mulheres não vemos há muito tempo... sabe quem foi o último cavalheiro que eu conheci?

- Não imagino.

- Meu pai...

Macário sorriu.

- Verdade, meu pai... ele era um homem educado, bonito, de lindos dentes... parecido com você... sabia ser gentil, meigo e atencioso com uma mulher... como sempre foi com minha mãe.

Inesperadamente, ela abaixou os olhos, ficando em silêncio por um instante.

- E o que mais?

Cibele ergueu os olhos. Eles cintilavam.

- O que foi que houve? Eu disse alguma coisa errada? – indagou Macário.

- Não, não foi você... fui eu...

- O que foi que houve?

- Quando falo no meu pai, fico assim, desse jeito.

- Ele morreu precocemente?

- Sim, num acidente de automóvel... nós não estávamos com ele... foi uma carreta que destruiu o carro... ele chegou ao hospital com vida, mas os médicos não conseguiram salvá-lo...

- Foi isso que motivou a escolha por medicina?

- Sim... achei que como eu não estava lá para ajudar meu pai, para salvá-lo, deveria tentar salvar as pessoas que pudesse...

- E acabou se identificando com a medicina?

- Sim, descobri minha vocação por acaso, pensei inicialmente em cursar psicologia, mas o destino foi imprevisível e minha vida tomou um novo rumo...

- O destino é imprevisível... veja onde estamos: acabei conhecendo você, também por acaso, no pronto-socorro e já se passaram quase três semanas... quando me conheceu o que te levou a gostar de mim?

- Ah, você parece honesto, embora seja policial...

- Obrigado pela observação...

Cibele sorriu.

- Me respeita, me respeitou desde o primeiro momento que nos conhecemos, não agiu como os outros...

- Não agi como os outros?

- É, você não agiu como os outros homens – disse a médica, a voz levemente embargada. – Hoje em dia os homens são pragmáticos... primeiro levam a mulher para a cama, depois pensam no que fazem com ela, se abrem o coração ou se continuam a usá-la.

- Diante do que você diz, não tenho argumentos, sou suspeito em declarar qualquer coisa a meu favor – disse o detetive em tom jocoso.

- Não, eu não me refiro a você... você é diferente, foi honesto comigo, não me escondeu nada, antes quis me conhecer, formar uma amizade...

- E não te levei para a cama... – murmurou Macário.

- Ainda não – retrucou Cibele, sorrindo.

O olhar do detetive perdeu-se em devaneios nas pupilas da médica. Ele ficou introspectivo. Cibele desconhecia a duplicidade interior do homem que contemplava. No contato com o submundo, Macário não deixava dúvidas quanto a sua agressividade, sendo temido até mesmo pelos criminosos mais perigosos. Entretanto, quando o assunto era relacionamento com mulheres distintas, o intrépido detetive era sensível e amável. Na escola ele não fora um jovem namorador, mesmo porque não se julgava um rapaz atraente a ponto de conquistas fáceis. Contudo, era objeto de velados comentários, picantes em seu teor, das moças de sua classe. Desde a adolescência optara pela carreira policial e pelo modo como se devotava à profissão, deliberou pela solidão, a fim de não magoar a si próprio e alguma mulher.

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