Seja bem vindo

"A literatura insinua e coloca questões muito mais do que as responde ou resolve."

-------------------Milton Hatoum, escritor brasileiro



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segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

MENSAGEM NATALINA


Trabalhamos arduamente todos os dias, semanas e meses do ano. Os dias são todos iguais, entretanto, dois deles tem significado especial para todos os seres do planeta, em qualquer lugar que estejam. Refiro-me ao Natal e ao Ano Novo. Nestas datas tão relevantes, nossos corações palpitantes pelos afazeres e problemas vividos durante o ano, diminuem seus batimentos, tornam-se mais serenos, ficam mais sensíveis, menos endurecidos. Esquecemos nossas diferenças e divergências, promovemos um armistício com os inimigos e concorrentes. No aconchego de nossos lares montamos as emblemáticas árvores de Natal. O lar é decorado a caráter; organizamos a mesa de jantar com iguarias e guloseimas típicas; vestimos a roupa nova, comprada especialmente para a ocasião, e na noite tão esperada trocamos presentes. O ambiente é preenchido pela alegria que emerge e todos vivem momentos de intensa felicidade. É momento de celebração. Este é o cenário grandioso do Natal que se estende com pequenas variações até o Ano Novo. Entretanto, não devemos esquecer o que passamos no ano que está por findar.

O instante é de reflexão, de introspectividade.

Contabilize o que vivenciou, os momentos de alegria e de dificuldades que viveu, em seu lar ou no local de trabalho. Conseguiu dar carinho e atenção à esposa e filhos na medida em que desejava e que eles esperavam? Concluiu projetos pessoais idealizados no passado? Conquistou a promoção profissional esperada? Conseguiu comprar a casa própria? Adquiriu o novo veículo que lhe proporcionará novas alegrias? Não cedeu à tentação materialista e doou valores e bens pessoais àqueles que não têm como melhorar suas vidas? Compadeceu-se da dor daqueles que vivem na miséria e no abandono, dor clamante e sôfrega, que ecoa dentro do coração daqueles que nada podem fazer para mudar seus destinos?

A vida é um labirinto pelo qual caminhamos sem saber onde vamos chegar. Caso não tenha executado ou concluído todas as interpelações acima, não desanime. Tenha consciência que nem tudo se realiza na medida em que desejamos, mas sim na medida em que estamos preparados ou não, para vivenciá-los. Tenha certeza de uma coisa: a felicidade é um sentimento par. Isso significa que precisa do próximo para se tornar real, sólida, crescente. Seja feliz ajudando seu semelhante, promovendo a paz, a harmonia e o bem coletivo. Somente assim, mesmo desconhecendo nossa missão neste mundo pelo qual passamos muito rapidamente, estaremos no caminho da LUZ.

FELIZ NATAL


E PRÓSPERO


ANO NOVO 2010

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

A MULHER E O SALTO ALTO

Quem criou o salto alto para a mulher estava inspirado no desejo. Pensava em criar algo que acrescido à silhueta feminina lhe proporcionasse uma nova aparência, uma nova dimensão. A criação seria algo que lhe desse um reforço na sensualidade, despertando a libido masculina. E realmente isso aconteceu. Sem dificuldades, percebem-se nas ruas que os olhares masculinos se dirigem cobiçosos preferencialmente para aquelas que adornam sua imagem com peça de expressivo valor. A anatomia de uma mulher dotada de salto alto é outra. Ela se torna mais ereta, mais elegante, mais sedutora. Parece haver uma interação perfeita entre ambas. O salto alto proporciona um andar bamboleante, a ginga fica mais sensual, os quadris empinam e os seios entram em destaque. E uma mulher de salto alto, na multidão do caos do dia-a-dia, é figura inequívoca, pois demonstra caráter seguro, que tem domínio de si e que sabe o que quer e como provocar que seus desejos se realizem.

Nas propagandas de lingerie, nos comerciais de automóveis, nas telenovelas e no primeiro encontro entre um homem e uma mulher, na maioria das vezes, elas usam e abusam do salto alto. Convertem-se em fêmeas altas, esguias, vistosas. Quanto mais fino o salto, mais atraente e provocante se transforma a mulher. E o que muitos pensam, não é o pé propriamente o fetiche de uma parcela dos homens, mas o salto alto que o adorna. Mulheres não costumam vestir uma lingerie para uma noite de amor e ficar descalças ou usar um sapato de salto baixo. Qual calçado que usam e que mais combina com a peça íntima que desperta o desejo masculino? Não há outra escolha, outra opção. Sapato ou sandália de salto alto, o mais alto e fino salto que puderem usar, nem que somente o usem para abrir a porta da alcova e levar seu futuro amante para o leito do amor estará nos pés daquelas que querem apimentar a relação. Calçado de salto baixo é usado por quem perdeu a autoestima ou tem que andar durante muito tempo no trabalho ou nas ruas. Salto alto é para as mulheres seguras, para aquelas que se vestem para arrasar, para conquistar até o fio de cabelo daquele homem mais desatento que ao vê-la ficará imaginando como seria dormir com aquela “poderosa”.

Experimente contemplar os modelos de calçados femininos com salto alto que se encontram expostos nas sapatarias e lojas de calçados. Existem saltos altos que são verdadeiras obras de arte, concebidos por estilistas dos pés que põem toda sua criatividade em favor da elegância e sensualidade da mulher. E os modelos, com o passar dos anos e o avanço tecnológico, apresentam-se nas mais diversas formas e cores exóticas. Existe salto alto para todos os gostos. Os altíssimos, nos quais mulheres se equilibram como malabaristas. Os altos e grossos, que proporcionam aumento na estatura e firmeza no andar, causando a impressão que sua portadora não teme o que tem pela frente, esmagando o que se antepor a ela. Os altos e muito finos, indicam mulheres resolutas, que determinam seus próprios destinos. Os altos e finos, em estilo futurista, que mantém semelhança com os carros-conceito de feiras automobilísticas indicam mulheres além do seu tempo. E haja modelo, escapam e surpreendem nossa ingênua imaginação.

Não tenho inclinações para a podolatria, mas até poderia reexaminar minhas vocações, pois a maioria dos homens não se furta em olhar para pés delicados e bem ornados por um salto alto. Inconscientemente, eles as admiram pela capacidade de se equilibrarem num objeto que lhes traz beleza, elegância, mas também profundo desconforto. O poder atrativo e obscuro que o salto alto exerce na psiquê masculina até hoje a ciência e seus criadores – os estilistas – ainda não sabem explicar.

Quando esbarrar ou se deparar com uma mulher usando um sapato de salto alto, cuidado com ela. Se o objetivo dela é você, pela dissuasão, tente fazê-la deixar a arma que tem nos pés debaixo da cama. Caso contrário, prepare-se. Poderá ser espetado pelo salto que atraiu seu olhar no instante que a viu.

sábado, 5 de dezembro de 2009

A VINGANÇA DOS DERROTADOS

UM CAFEZINHO E... EU PAGO A PROSA

Para os menos interessados ou alheios à mídia, o título deste artigo logo nos lembra o recém-lançado filme de robôs conhecidos pela meninada e muitos grandões chamado Transformers. Se perguntar sobre o assunto do filme a maioria vai lembrar, de cara, da morenaça que é namorada do adolescente galã da fita hollywoodiana. Mas esclarecendo, trata-se da eterna luta entre o supremo poder do bem e o mal, incorporados pelas máquinas bizarras denominadas de Autobots e Decepticons. O título dá a deixa que os que perderam a guerra no primeiro episódio agora irão à revanche. Muito bonito e emocionante na ficção. Entretanto, o título também me reporta a alguns fatos históricos.

A vingança dos derrotados lembra uma passagem bíblica, Apocalipse (6,9-14), no qual lê-se: “...vi debaixo do altar as vidas daqueles que tinham sido imolados por causa da Palavra de Deus e por causa do testemunho que dela tinham dado. Eles gritaram em voz alta: ‘Senhor santo e verdadeiro, até quando tardarás em fazer justiça, vingando o nosso sangue contra os habitantes da terra?’... Também foi dito a eles que descansassem mais um pouco de tempo, até que ficasse completo o número de companheiros e irmãos, que iriam ser mortos como eles”. Nesta passagem, segundo a bíblia, ocorrerá a vingança dos que foram injustamente mortos por defenderem e acreditarem nas palavras de Jesus Cristo. O mundo sofrerá abalos sísmicos fortíssimos e mudanças bruscas ocorrerão na natureza, levando aqueles que cometeram pecados e foram contra os princípios cristãos a sofrer desgraças nunca imaginadas.

A vingança dos derrotados nos faz imaginar como seria a vingança dos milhões de negros que foram escravizados por vários anos, em países escravocratas. Sequestrados de sua terra natal – que era o continente africano – foram levados em navios negreiros para longe, para servirem às vontades e aos caprichos de um senhor, como se fossem sua propriedade. Transformaram-se em escravos, para atender os mercados europeus que necessitavam de mão-de-obra em suas colônias agrícolas na América. Viviam em barracões conhecidos como senzalas e tinham como “adornos” correntes que não só lhes tirava a liberdade e tolhiam os movimentos, mas lhes traziam humilhação, desgosto e profunda agonia. Trabalhavam até a morte, a fim de cumprirem a finalidade de “servir a seus senhores”. Imagine se estes seres que viveram sob perpétuo sofrimento pela cor de sua pele, pudessem retaliar tudo que sofreram na mão de seus carrascos, colocando-os no açoite; obrigando-os a transportar pesadas cargas; impingindo-os a ficar doentes nos porões fedorentos de navios negreiros; a passar fome e trabalhar exaustivamente sob o sol escaldante; a sofrer castigos injustamente; a viver na condição de animais. A extinção da escravatura não extinguiu a dor e o sofrimento daqueles que um dia foram tratados e morreram como escravos. Seria uma genuína vingança dos derrotados.

A vingança dos derrotados nos faz pensar como seria a desforra de milhões de pessoas, politicamente indesejadas pelo regime nazista de Adolf Hitler, que foram exterminadas em campos de concentração na Segunda Guerra Mundial, evento que ficou conhecido como Holocausto. Estes inocentes eram judeus, testemunhas de Jeová, sacerdotes católicos, pacientes psiquiátricos, militantes comunistas, homossexuais, ciganos, eslavos, deficientes físicos, deficientes mentais, prisioneiros de guerra soviéticos, membros da elite intelectual polaca, russa, ativistas políticos, etc. Quando de sua chegada aos campos de concentração eram divididos em dois grupos: os muito fracos para trabalhar eram logo assassinados em câmaras de gás e seus corpos queimados; e os demais eram inicialmente empregados como mão-de-obra escrava em fábricas e indústrias localizadas nas proximidades dos campos, para depois, quando não mais servissem aos objetivos espúrios dos nazistas, serem levados ao mesmo destino dos primeiros. Como seria se estes milhões de almas atormentassem seus algozes na mesma medida em que sofreram, impingindo-os aos sacrifícios e impiedades que foram obrigados a vivenciar. Seria a justiça que não ocorreu.

A vingança dos derrotados nos lembra a vingança perpetrada recentemente por Geysa Arruda, uma jovem universitária que não se curvou a ditadura da magreza, que não é esquelética, não passa fome (pelo menos é o que parece), e que por ser “cheinha” e usar roupas justas e atraentes foi xingada e quase agredida na Uniban, em São Bernardo do Campo, no Estado de São Paulo. Aqueles que por preconceito, inveja ou bullying, desejavam imolá-la ficaram estarrecidos depois de entregá-la ao quarto poder – entenda-se mídia – com o objetivo de humilhá-la publicamente e acabaram elevando-a a condição de celebridade, em velocidade fantástica, com direito a convite para pousar nua na revista Playboy e, segundo me consta, com proposta para uma propaganda de lingerie cujo cachê deve girar em torno de R$ 500 mil. A garota ficou bem de vida da noite para o dia! Enquanto seus medíocres colegas de faculdade não saíram do buraco de onde vivem a gritar por causas inglórias. Ela representa a vingança das “gordinhas” que vivem a sofrer com um padrão de beleza irreal, que bonifica esqueletos cobertos por tênue camada de pele ressequida; “gordinhas” que sofrem com regimes opressores; que não encontram roupas em tamanho confortável nas lojas e são constrangidas por suas vendedoras, e principalmente, são desprezadas pelos homens que infantilmente acham que as magras são referência física de felicidade. Que revanche!

A vingança dos derrotados nos faz imaginar como seria – talvez a maior de todas as vinganças – a revanche dos pobres, dos oprimidos, dos famintos, daqueles que não tem o que vestir, que vivem em lixões, favelas, casebres, que vivem mendigando nas ruas, que sobrevivem na Etiópia, tolhidos e humilhados pela rica e injusta sociedade contemporânea. Seria interessante contemplar os ricos que moram em palácios suntuosos, cobertos de ouro e pedras preciosas, comendo do bom e do melhor, com carros luxuosíssimos, usando roupas e jóias caríssimas, com aviões particulares repletos de confortos tecnológicos; passando fome, andando em farrapos, pedindo por comida e comendo restos, dormindo junto ao esgoto e debaixo de pontes, vasculhando o lixo em busca de uma migalha de pão velho, sendo surrados pela polícia e encarcerados sem direito a habeas corpus, sem qualquer esperança de um futuro melhor. Imagine essa vingança!

A vingança não traz a paz, a harmonia, o perdão. Ela, infelizmente, é o instrumento de justiça que restitui o respeito e a aceitação incondicional àqueles que deixaram de ser vistos por seus semelhantes como pessoas dignas, como indivíduos que independentemente da cor de sua pele, credo, tipo físico, comportamento, sexualidade ou condição social, mereciam ser tratados como seres humanos que eram.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

TÍSICO

Eu emagrecia lenta e progressivamente, sem dar conta disso. Todas as noites a sudorese umedecia o lençol, e depois o colchão, que passou a ter o cheiro do meu corpo que adelgaçava. Numa manhã eu percebi, mas o contínuo cansaço mascarou a imundície. No transcurso da madrugada meu sono era interrompido, algumas vezes, pela tosse. A dor inusitada que mesmo leve percorria o peito, incomodava, restringia meus movimentos pelo medo. Sempre tive medo de dores no peito, talvez pela morte de minha avó que nunca conheci e que minha mãe disse ter morrido de infarto. Creio que adquiri a enfermidade em alguma prosa com amigos, entre um cafezinho e outro. Talvez de um amigo que tossiu, espirrou ou na retórica de um falso erudito que lançou os bacilos no ar. Possivelmente inalei um ou mais germes que penetraram infaustos em meus pulmões. O diagnóstico demorou, porque posterguei a consulta. A tosse que persistia por semanas e a evolução da discreta anorexia me alertaram para o precipício que eu caminhava, contudo as desprezei. O trabalho e o prazer que ele me proporcionava dominavam minha atenção. Fora difícil fixar-me naquele emprego depois de peregrinações trabalhistas. Outros tinham melhores qualificações, todavia eu acreditava na minha vocação e no meu talento. A persistência da sensação de febre baixa, numa tarde deixou-me preocupado. A noite avançou e adormeci, achando que era apenas mal-estar decorrente de um longo dia de trabalho na redação. No dia seguinte, durante a higiene matinal, após lavar o rosto encovado escarrei na pia do banheiro. A nódoa densa e avermelhada me assustou. Algo estava errado. Fui ao médico e depois de alguns exames ele constatou que eu estava com tuberculose. Tentou não me assustar, mas era tarde. Disse-me que a desnutrição, o tabagismo e o consumo exagerado de álcool eram fatores que interferem na redução das defesas do organismo, aumentando a possibilidade do aparecimento da doença. Eu relatei que não fumava, procurava me alimentar bem e era avesso ao álcool. Então ele alegou que o uso exagerado de corticosteróides poderia aumentar o risco de formas graves da doença. Depois de tanta argumentação, a dor no peito aumentou. Efeito psicológico ou não, o sintoma se exacerbou. Receitadas as drogas, voltei ao trabalho. E não faltava trabalho na redação do jornal. O diretor me incumbira de uma reportagem laboriosa, além do artigo semanal o qual eu era responsável. Tentei ponderar, envergonhando-me de dizer que fora acometido por uma das principais doenças causadoras de altos índices de mortalidade no mundo. Mas faltaram-me argumentos. Não, faltou-me coragem. Se eu revelasse meu estado de saúde, com a pandemia de AIDS e sua associação com a tuberculose que ocorre atualmente, talvez o diretor ficasse repulsivo e certamente, no cafezinho, espalharia meu infortúnio. Pensariam que eu era um promíscuo, talvez até um homossexual enrustido. E aquela morena recém-admitida que eu observava sequiosamente, quando soubesse, eliminaria todas as minhas chances de dormir com ela. Quanta tormenta. Preferi ocultar tudo e segui no labor de minhas tarefas. Iniciei o tratamento, conhecido como quimioterapia de curta duração. O tratamento era para durar seis meses, o qual mesmo me sentindo melhor eu não deveria interromper. Mas traí a mim mesmo. A melhora repentina, a absorção causada pelos afazeres profissionais e a aventura amorosa que enveredei com a possante morena me fizeram esquecer o tratamento. Eu me sentia forte novamente, estimulado pelo sexo ardoroso que a morena me proporcionava e pela progressão positiva do trabalho. Minha amante abandonou-me depois de três semanas de peripécias na alcova. Foi transferida para outra filial para se tornar amante de um dos poderosos da diretoria do jornal. Frustrado, mergulhei mais ainda na reportagem que não havia concluído para tentar esquecê-la. Eu passava o dia quase sem comer, uma anorexia que considerei saudável, pois não me compelia a parar de trabalhar causando uma solução de continuidade. Numa noite, sob a luminária, digitando algumas páginas de minha empreitada, senti novamente a dor que deixara de existir no início do tratamento. Seria um mal-estar decorrente do excesso de trabalho. Toquei o cenho e tive a sensação de febre baixa. Achei que fosse cisma devido ao fim do relacionamento e da exaustão causada pelo contínuo trabalho. Passaram-se alguns dias e ressurgiu a tosse, que passou a atormentar-me mais do que nunca. Numa manhã, no instante que sentei na cama senti uma pontada no peito. Fiquei assustado. Minha mão trêmula tocou o lençol e percebi que estava úmido. Levantei-o e o meu cheiro se evolou do colchão. Deixei a cama e me dirigi para o banheiro. No percurso, notei a sensação de fraqueza. Iniciei minha higiene e percebi como estava magro. Magérrimo. Uma sensação de insegurança me dominou. Novamente algo estava errado.

A expressão do médico depois do meu relato de sintomas foi sarcástica e preocupante. Ele me disse que a interrupção da quimioterapia de curta duração permitia que muitos bacilos permanecessem vivos e escondidos em partes remotas dos pulmões. Franzi o cenho e um calafrio percorreu minha espinha, dos quadris a nuca, causando-me rigidez. Despótico, o médico esclareceu que os bacilos remanescentes possivelmente se tornaram mais fortes e mais agressivos, multiplicando-se rapidamente. Ele solicitou novos exames que não demorei a fazer. Os resultados chegariam dentro de alguns dias.

Voltei para casa, desolado. O apartamento se tornara menor. Suas paredes pareciam comprimir-se sobre mim. Meus sentidos se reduziam, causando-me a impressão que eu me extinguia. A água quente do chuveiro me relaxava os músculos, amenizando a tensão que adquiri no consultório do médico. Deixei os feixes úmidos atacarem minha nuca enrijecida por um longo tempo. Surgira uma dor de cabeça. Tossi algumas vezes e numa oportunidade cuspi no chão do box. O escarro apresentava manchas de sangue. Fiquei mais atemorizado. Com os cabelos ainda molhados e vestindo um robe, sentei-me numa das poltronas da sala. Meu olhar entibiado pairou sobre o teclado do computador. Meu entusiasmo e minha energia para trabalhar foram sequestrados para algum lugar e uma dor intestinal tomou-lhes o lugar. Com ela, surgiram intermitentes dores no peito. O médico não fora nada otimista em suas palavras. Dissera que a taxa de cura com a quimioterapia eram superiores a 95%, entretanto, eu fora acometido de uma reincidente e nessa situação a doença se agravava significativamente. Senti a dor no peito. Em seguida, tossi e sem que pudesse evitar uma golfada de escarro fugidio caiu no tapete. Medrei, medrei como nos tempos de garoto, naquelas situações em que pensei que ia morrer que não conseguiria tornar-me adulto e gozar das belezas e sabores da vida. Com a reincidência havia a possibilidade que eu engrossasse a porcentagem de mortalidade. Tentei não me desesperar, mas é possível alguém não se desesperar diante da possibilidade de morrer tão jovem? Eu estava com apenas trinta anos de idade e estava cheio de planos para o futuro. Pensei em beber um copo de leite. Quando levantei, tive a sensação de fraqueza, das pernas afrouxarem ante o movimento. Meus sentidos se extinguiam novamente e esta sensação era como se eu estivesse sendo apagado do mundo, como se a vida estivesse se esvaindo de dentro de mim. Passei a caminhar em direção a cozinha. O movimento das pernas era dificultoso e fraqueza se agravava. No instante que entrei na cozinha, tudo começou a girar. Tentei caminhar até a bancada, contudo desmoronei muito antes de alcançá-la. Meu corpo bateu no piso frio. Tudo ao redor girava. A dor no peito aumentava. Meu rosto se contraiu e lágrimas passaram a correr pelos cantos dos olhos. Eu queria gritar, pedir ajuda, entretanto minha voz era sufocada na garganta. Respirava com dificuldade e o ar parecia tornar-se mais rarefeito. Continuei tentando gritar e a minha visão se turvou.

Minhas pálpebras estavam cerradas e eu não conseguia erguê-las. Percebia meu corpo inerte, em repouso sobre uma cama fria. Minha respiração era precedida por um som mecânico que preenchia meus pulmões de ar. O som de vozes desconhecidas ao redor invadia meus ouvidos. Com dificuldade, identifiquei que uma delas pertencia ao médico que me assistia no tratamento da tuberculose.

- Não entendo o que houve...


- Ele é cardiopata?


- Não, não é...


- Então o que houve?


- Eu o tratava de uma tuberculose... executei o tratamento padrão, iniciando com a quimioterapia, mas ele não a cumpriu integralmente.


- Então ele é mais um daqueles que logo que se sentiu bem parou de tomar os remédios...


- Sim, mais um... e eu o avisei, recomendei que não parasse com os medicamentos, mas...


- É uma pena... um homem tão jovem, tão bonito...

Percebi que a segunda voz era doce, meiga, de uma mulher, provavelmente de uma médica.

- Ele acabou tendo uma reincidência e a doença se agravou... e muito...


- Também, com a saúde tão debilitada não é estranho essa parada cardíaca... pobre coitado, se escapar dessa...


- Se escapar...

Ouvi passos e as vozes foram se afastando, se afastando, até que desapareceram. O desespero me dominou. Eu queria me comunicar, avisar que não estava morto, que ainda havia chance para mim, que deveriam lutar para me salvar. Tentei gritar, mover minhas mãos, minhas pernas, no entanto nada respondia. Havia vontade, mas faltava energia. Um estado de desesperança tomou conta de mim. Eu quis chorar, mas não consegui. Momentos depois, os sons ao redor foram diminuindo de volume. Devagar, muito devagar. Fiquei novamente aflito. O que estaria acontecendo? O som dos aparelhos que me assistiam começou a reduzir-se. A luminosidade do ambiente, que eu percebia mesmo de olhos fechados, também foi diminuindo. Súbito, tive a impressão de cair, de ser arrebatado vertiginosamente para as profundezas escuras e a frialdade da imensidão me envolveu. A aflição se arrefeceu e um torpor me subjugou. Não havia porque gritar. Não havia mais porque chorar.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

TEREMOS UM FUTURO PROMISSOR?

Se não levarmos a sério toda essa conversa de sustentabilidade do planeta, certamente veremos, ou melhor, nem veremos, pois não estaremos mais aqui para ver, a existência humana tornar-se cenário semelhante ao premonitório filme de Steven Spielberg, lançado em 2001, conhecido como A.I, ou seja, Inteligência Artificial. Seria mais ou menos assim...

Fantástico encontro com a natureza... ciborgs turistas do mundo inteiro vão ao Pantanal Matogrossense para conhecer a mistura singular de seres humanos e vegetação em um ecossistema grandiosamente preservado, apesar da ação predatória dos ciborgs. Em passeios motorizados, de barco e por trilhas bem demarcadas é possível deslumbrar-se com políticos corruptos em fuga, pessoas famintas em busca de alimento, criminosos de alta periculosidade em liberdade condicional, profissionais liberais mendigando emprego, prostitutas em desfile por veredas verdejantes, traficantes em lutas severas com policiais pela posse de territórios de livre comércio e vários outros seres humanos sobrevivendo tranquilamente em seu habitat natural. A época mais adequada para observá-los mais de perto é entre maio e setembro, quando há a seca dos rios e eles ficam mais sedentos e aflitos, saindo das florestas, procurando ficar mais próximos a lagos e riachos. Durante a cheia, de outubro a abril, o lugar se transforma num paraíso para observadores de humanos emigrantes ilegais, particularmente criminosos americanos e europeus, que buscam impunidade na bela paisagem tropical. A aventura pode incluir também agradabilíssimos safáris noturnos, nos quais se dispensam óculos de visão noturna, caso os ciborgs turistas sejam das séries WY9/700 a WS11/1000 – momentos que rendem belas fotografias da paisagem e do homo sapiens em extinção. Outra cena típica e muito interessante da região são modelos de ciborgs fora de linha pilotando motocicletas e tocando os humanos pelo campo, reunindo-os nas cúpulas de conservação, atividade rotineira nas fazendas de preservação. Para Carlos Marconetto, ciborg-diretor operacional da Prensas Hidráulicas de Reciclagem do Estado de São Paulo, que esteve no pantanal com ciborgs amigos, o que mais o impressionou foi “a vida simples dos ciborgs do pantanal, vivendo afastados das grandes metrópoles e não afetados pelos males que elas apresentam, e a conscientização da necessidade de preservar humanos naquela área maravilhosa e singularmente natural. Ele, ainda, recomenda que todos devem visitá-la como aprendizado e experiência de vida”.

A narrativa é ficcional, mas poderá ser verídica, por mais incrível que pareça, talvez em mais um ou dois séculos. A ciência ao longo dos tempos vem avançando em suas descobertas, elevando e melhorando a vida do ser humano em todos os setores, concedendo-lhe melhor qualidade de vida e mais conforto. Seu avançar vem se acelerando graças ao impulso incessante proporcionado pela tecnologia, na qual tem como mola propulsora a computação. Aos poucos, a ideia de se criarem robôs e ciborgs – máquinas que substituam o homem em atividades repetitivas e perigosas – está cada vez mais pertinente no destino do homem, visando preservá-lo, dar-lhe mais e maiores possibilidades e promover-lhe conforto. Seja na indústria, na saúde, nos afazeres domésticos, nos serviços de segurança ou mesmo nos campos de batalha. Esse pensamento não é de todo uma mentira. A realidade ao longo dos tempos foi deturpada, graças ao cinema e à mídia que conseguiram criar erroneamente uma ideia na sociedade do que realmente são robôs e ciborgs, figuras que são diferentes.

Primeiramente, ciborg é um organismo cibernético, ou seja, um organismo dotado de partes orgânicas e mecânicas, no qual as partes mecânicas têm a finalidade de melhorar suas capacidades utilizando tecnologia artificial. Mais elucidativo: seriam seres humanos que utilizam tecnologia cibernética para reparar ou superar deficiências físicas ou mentais em seus corpos. Por exemplo, uma pessoa que possui um membro mecânico a fim de superar uma limitação decorrente de algum acidente. Ela seria um ciborg, parte humana e parte mecânica.

Robô é um dispositivo ou conjunto de dispositivos eletromecânicos capazes de realizar tarefas de maneira autônoma, pré-programada, ou através de controle humano. Normalmente são empregados na realização de tarefas perigosas ou sujas para os seres humanos. Os robôs são mais comumente empregados nas linhas de produção industrial, no tratamento do lixo tóxico, na exploração subaquática e espacial, cirurgias, mineração, busca e resgate, localização de minas terrestres. Também são empregados nas áreas de entretenimento e tarefas domésticas. Um robô totalmente autônomo na realidade tem habilidade de trabalhar por meses ou anos sem nenhuma interferência humana; deslocar-se de um ponto ao outro sem necessidade de navegação humana; evitar situações que são perigosas para o ser humano; coletar informações do ambiente onde se encontra; e reparar-se sem ajuda externa.

Percebe-se que na realidade robô e ciborg são conceitos diferentes, embora de natureza semelhante. E foi desta proximidade que o cinema e a mídia criaram o pensamento que hoje se tornou popular e digamos “verídico”. Mas a ideia, apesar de deturpada, está caminhando de encontro com a evolução da humanidade.

O homem vem destruindo o planeta onde sempre morou e a si mesmo. Desenvolveu a poluição, em suas diversas formas; promove o consumo exagerado, descontrolado, motivado por uma industrialização e por um capitalismo selvagem que ele mesmo estimulou a crescer e não consegue mais controlar; com suas pesquisas científicas desencadeou doenças que se proliferam, difíceis de debelar, que acabam por fazer milhares de vítimas; atua na destruição de valores vegetais e minerais, ato que reflete nos ecossistemas, levando à extinção de espécies; e de forma contundente, sua ação consumista reflete na natureza, ocasionando severas mudanças ambientais, que geram tempestades, tornados, furacões, maremotos, terremotos, inundações, desequilíbrios ambientais causadores de destruição e de milhares de mortes.

O homem admite seu erro, parcialmente, mas não quer assumi-lo, não quer mudar sua conduta para não perecer sobre a própria avareza, sobre sua ganância irrefreável. No momento que se percebeu a tragédia, que ocorre paulatinamente, surgiu uma mentalidade que conhecemos por desenvolvimento sustentável ou apenas sustentabilidade. A sustentabilidade é uma maneira de permitir o provimento das necessidades da geração atual sem comprometer as condições do provimento das gerações futuras. Viver e crescer de forma comedida e planejada, visando preservar a natureza e os ecossistemas, agindo na manutenção indefinida de seus valores. A sustentabilidade se preocupa e luta para que o homem e a natureza não venham a perecer depois de tanto se conquistar, de tanto se construir. Ela luta para que isso não venha a acontecer. E caso a humanidade não mude sua conduta, sua mentalidade e princípios, acabaremos tornando real a ideia ficcional de hoje, de um mundo dominado por máquinas semelhantes fisicamente ao homem, dotadas de inteligência artificial, uma entidade homem-máquina, que poderá vê-lo no futuro como algo inferior, mas importante sob o aspecto da preservação ambiental. Afinal máquinas inteligentes, como o homem, pensarão como, da maneira no futuro. Parece fantasia? Nem tanto assim.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O SOM DO VENTO

As pessoas que transitavam pelas ruas ou acomodadas no conforto de seus lares mudavam de expressão quando o ruído característico invadia seus ouvidos. A estridência da sirene do carro dos bombeiros que berrava sobre suas cabeças os incomodava mais pela penetração auricular do que pela inevitável lembrança que os chamados homens do fogo estavam em vias de atuar. Para ele, o som estrepitoso não era desconfortável. Fazia parte de seu trabalho. Mas era outro som incomparável que ondulava seu radiante coração. O som do vento. Pendurado na lateral do carro escarlate e prata, contrariando determinações de segurança da corporação, ele apreciava o vento. Ele lhe causava uma sensação excitativa e ao mesmo tempo relaxante, que lhe proporcionava a musicalidade necessária à ação que estava por vir. O som produzido pelo vento encantava-o, levando-o a devanear.

Pensava nos possíveis momentos de ação, de perigo, de aventura real que fariam jorrar adrenalina por todo seu corpo e inundariam seu coração palpitante. Iria ao socorro de algum homem ou criança caído num poço, ou simplesmente agiria na rotineira eliminação de um foco de incêndio que se alastrava e promovia morte e destruição? A curiosidade e ansiedade eram sumo necessário para a dinâmica que se instalava em seu íntimo, desde o instante em que irrompia a chamada de socorro. Mas suas lembranças também o conduziam ao encontro de outro coração, aquele que sempre o aguardava no fim do dia de trabalho. Clarice. Em seis meses se apaixonaram, noivaram e casaram. Um amor febril, profundo, enredado. O lar era uma pequena casa, alugada, com jardim na frente, onde viviam ardorosos momentos de paixão e felicidade. Entretanto, uma apreensão rondava o íntimo da esposa amantíssima, todos os dias. Para ela era inquietante, o momento que o bombeiro deixava o lar e se dirigia para o trabalho: “Ele voltará são e salvo?”

Uma curva brusca realizada pelo motorista diligente desequilibrou Bruno, que se mantinha agarrado a um dos corrimões do carro. O veículo que singrava no trânsito conturbado da cidade aumentou de velocidade e o som do vento aumentou de volume, penetrando mais fundo em seus ouvidos. Ele esboçou um sorriso cintilante, regozijando-se com a eletrizante emoção causada pelo perpassar do vento no rosto e na alma.

Seus olhos azuis logo avistaram a imensa coluna de fumaça que se erguia para o firmamento. Era uma massa de vapores escuros, em matizes acinzentados, que pelo volume e amplitude deveriam ser de um incêndio de graves proporções. O carro de bombeiros chegava à periferia da cidade, alcançando uma grande rotatória. Passara a hora do rush e o movimento de carros se reduzira ainda mais em decorrência da obstrução da estrada. O grande carro vermelho dobrou mais duas ruas e encaminhou-se para uma das pistas de rolamento. Naquele instante, Bruno identificou que a enorme queima não era em uma fábrica ou posto de combustível como julgara anteriormente. Um grande caminhão-tanque envolveu-se num engavetamento de veículos, tombando e capotando numa das vias. Ocorreu o derramamento de combustível e o fogo se espalhou. Todo o caminhão e mais meia-dúzia de veículos ardiam em chamas. Embora jovem, Bruno era um profissional experiente e cauteloso, fato que lhe proporcionava bons resultados nas ações que se envolvia no combate a incêndios ou no salvamento de acidentados.

O carro de bombeiros deixou a pista de rolamento e derrapou na grama do acostamento central. As sirenes de outras unidades do Corpo de Bombeiros começaram a ser ouvidas. O vento que antes deleitava o jovem bombeiro, agora o preocupava porque era fator agravante no combate que estava para se iniciar. Bruno e seus companheiros desembarcaram energicamente, movidos pelo espírito que impulsiona qualquer soldado do fogo: salvar vidas é sua prioridade. Havia outros veículos avariados pelo choque sucessivo que ocorreu. O chefe da equipe, em voz alta, distribuiu as missões a seus homens. Mangueiras, conexões metálicas e outros equipamentos foram retirados do carro e distribuídos. Iniciava-se uma grande e ativa movimentação dos bombeiros. Súbito, para surpresa de Bruno, seu chefe gritou por ele e mudou sua missão inicial, designando-o para retirar um motorista das ferragens de uma caminhonete Cherokee que havia capotado. Sem titubear, ele correu para o veículo que se encontrava afastado algumas dezenas de metros do núcleo incendiário.

Apesar de a caminhonete exalar vapores na região do motor, não apresentava sinais de fogo, mas poderia incendiar-se a qualquer momento, pois havia derramamento de combustível. O veículo muito danificado estava com a lateral tombada na grama e as rodas no ar, voltadas para a direção que Bruno se aproximava. Ele tentou alcançar o motorista pelo lado de fora, mas encontrou dificuldades. Num movimento célere, subiu na carroceria e entrou pela janela do passageiro. Quando já estava dentro da caminhonete, parou de repente, arregalando os olhos. Percebeu que o motorista apontava uma arma para ele.

- Calma, calma – disse o bombeiro. – Eu vim te salvar...

O homem estava preso nas ferragens. Ele tinha os olhos injetados e olhar esgazeado. Porejava muito, no rosto e no torso.

- Eu, eu acabei de roubar esse carro... assaltei a casa de um ricaço...

Ofegante e premido pela tensão do acidente, o assaltante empunhava a arma com firmeza, demonstrando perícia e intimidade com ela.

- Calma, não precisa apontar essa arma para mim... eu vim te ajudar a sair daqui...

Um odor despertou a atenção de Bruno. Ele olhou ao redor. Havia manchas de sangue pelo interior da caminhonete. Partes metálicas do veículo haviam perfurado e se alojado no corpo do assaltante. Ele contraiu o semblante, numa expressão indicativa de dor. O bombeiro esboçou que se aproximaria.

- Se chegar até aqui... te arrebento os miolos... ai...

A dor parecia aumentar.

- Tenha calma... não atire, eu vim te salvar... está vendo – disse Bruno indicando o uniforme que usava. – Eu sou bombeiro, vim te ajudar, não vim te prender, não sou da polícia...

- Mentira!... ai, ai... você deve estar disfarçado... cadê a tua arma? Mostre!

O bombeiro mostrou a palma das luvas que calçava.

- Não estou carregando arma alguma... fique calmo, eu sou bombeiro e vim te ajudar...

Outro odor atraiu a atenção do bombeiro, fazendo inquietar-se. Não eram mais gotas de suor que desciam do cenho, provocadas pela dinâmica dos movimentos, mas gotas produzidas pela tensão que se agravou.

- Tem vazamento de combustível neste carro, se ficarmos aqui nós vamos morrer...

O assaltante, em desdém, sorriu.

- Morrer? O que me importa?

- Não está sentindo o cheiro de gasolina? Eu vim te salvar, é o meu trabalho... deixe eu te ajudar...

O assaltante meneou a cabeça, demonstrando desesperança.

- Morrer... eu já estou morto, mano...

- Você tem família, tem irmãos?

O assaltante ficou pensativo por um segundo. Bruno percebeu que ele perdia sangue, lentamente.

- Meu pai... aquele desgraçado, me batia... foi morto na favela... minha mãe tinha AIDS e também morreu... minha vida é uma m...

- Infelizmente, muitas pessoas não têm a vida que desejam e nem para isso a melhor solução é a morte...

- Mas a minha vida sempre foi uma bosta, desde criança... só quebrei a cabeça, só dei com os burros n’água... acabei na prisão.

O avançar do tempo preocupava o bombeiro, pela iminência de uma explosão.

- Entendo teu sofrimento, penso que nem tudo está terminado quando ainda se tem vida... eu sou bombeiro, veja o uniforme, não sou da polícia, minha missão é salvar vidas e não prender pessoas... deixe que eu te ajude a sair desse carro, ele pode explodir a qualquer momento e se ficarmos aqui iremos explodir com ele...

- Ele tem toda razão.

A voz assustou e surpreendeu os dois homens que estavam no interior do carro. Ela vinha do alto da janela por onde Bruno entrou. Era voz de um policial militar que apontava um revólver para o assaltante.

- Largue a arma – ordenou o policial. – Você não tem chance: ou se entrega deixando que o bombeiro te tire daí ou acaba morrendo... nós não temos tempo a perder...

O assaltante fitou Bruno nos olhos. Em seguida, abaixou o olhar.

- O policial tem razão, o carro pode explodir, deixe que eu te tire daí... depois você decide o que vai fazer da tua vida...

O assaltante abaixou a cabeça e logo depois a arma. O bombeiro avançou e retirou a arma da mão do bandido e entregou-a ao policial.

- Agora, aguente mais um pouco, nós vamos tirar você daí...

Bruno saiu e deparou-se com outros bombeiros que se articulavam em torno do carro tombado. Eles aguardavam o desfecho da situação para iniciarem o resgate. Fora da caminhonete, Bruno sorriu aliviado. Ele voltaria para casa no final do turno, vivo para reencontrar seu grande amor. Salvariam aquele homem em desalento com a própria vida e debelariam o incêndio, para depois retornar para o quartel, para uma nova chamada. Talvez, no retorno, ele gozasse mais uma vez o som do vento.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A EXTINÇÃO DAS CARTAS E O ADVENTO DO E-MAIL

UM CAFEZINHO E... EU PAGO A PROSA

Este espaço destina-se a aproximar o leitor do blog deste humilde escritor. Nele abordaremos assuntos e fatos que surgem na hora do cafezinho, naquele momento fugidio que nos afastamos do local onde trabalhamos e vamos respirar um pouco de ar puro, longe do chefe e da burocracia que envolve o papel. Será o momento de expor e ouvir opiniões. Vamos prosear.

Na sociedade contemporânea que vivemos não podia acontecer de outra forma. Quando surge uma invenção em substituição a outra, usada por milhões de pessoas, ocorre uma mudança radical de hábitos e procedimentos. Isso aconteceu com o nosso agradável hábito de escrever cartas para namoradas, parentes, amigos e nas relações comerciais que se fazem necessárias. Tudo “por culpa” da aparição da Internet. A rede mundial de computadores veio para praticamente extinguir o hábito, a rotina de nos comunicarmos através de cartas e cartões-postais com entes queridos e amigos. E como era gostoso escrevermos uma bela carta em papel pautado para uma namorada ou um amigo distante, colocarmos num envelope, lacrarmos, dirigirmo-nos aos correios e postarmos nossa mensagem. Era um hábito que eu me regozijei muitas vezes e acredito que o caro leitor também. E receber uma carta? Ah, era uma festa, uma alegria que nos extasiava, que nos enchia de felicidade. Recebíamos notícias, afagos e carícias em nosso ego solitário. Que saudade! Mas tudo que é bom deixa saudade, assim disse alguém que eu não lembro quem foi. Esse prazer saudoso foi “assassinado” sem alardes pelo surgimento do e-mail, que é cria legítima da Internet. Só para sabermos mais um pouco, esse modismo surgiu nos EUA por volta de 1969 (sinceramente, nem eu sabia quando surgiu a Net). A Internet foi batizada inicialmente com o nome de ARPANET e objetivava conectar departamentos de pesquisa americanos. Mas antes dela existia uma rede virtual que interligava os departamentos de pesquisa que trabalhavam em projetos de defesa com as bases militares americanas, que é a origem da atual rede mundial. Ela foi aberta a outras instituições correlatas em 1970 e depois foi, aos poucos, se expandindo. Em 1975 tinha aproximadamente 100 sites. Depois cresceu, cresceu, cresceu e foi aberta ao público geral, chegando aos dias de hoje.

Voltando ao hábito de escrever cartas. Esse aprazível costume mundial, pelo qual muitos de nós manifestávamos nossas alegrias e angústias, com a aparição da Net foi aos poucos perdendo sua força, seu glamour. A carta, figura emblemática da correspondência, arauto de pensamentos e notícias distantes foi sendo substituída pela figura do e-mail, entidade fria e virtual que é um híbrido de papel de carta em branco, envelope e agência postal. Tudo num só. Muito prático. Ideal para o homem rapidus de hoje. Escreveu, clicou e fui! Logo sua mensagem está na caixa de entrada do destinatário. Ele clica, abre e lê. Quer mais praticidade do que isso? Nada de papel, nada de envelope, nada de caminhar até a agência dos correios mais próxima, nada de selo e muito menos de carteiro. Argh! Que falta de sensibilidade! E a coisa não pára por aí. Uma coisa mata a outra. O hábito de escrever cartas foi se extinguindo, dando lugar ao uso do e-mail e, praticamente, acabou com a alegria de vermos o carteiro batendo em nossa porta, entregando boas novas e afagos que emanavam do papel. Ele está quase virando peça de museu. A modernidade também trouxe mais desemprego, porque diminuindo o fluxo de correspondências, diminuiu a necessidade de mais carteiros e a ECT reduziu a contratação de profissionais da categoria. Que crueldade!

O e-mail facilitou nossa vida, nossa estressante e turbulenta vida. Ele, no qual se escreve pouco não por falta de espaço, mas porque normalmente temos muitos para ler e responder, inegavelmente deixou nossos corações mais frios, mais solitários, mesmo que assim se negue.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

TÍMIDO... EU?

Sua respiração e seus batimentos cardíacos já aceleraram em alguma situação de constrangimento em público? Já sentiu dificuldade de se relacionar com uma pessoa desconhecida, a qual foi recentemente apresentada? Sente desânimo de sair à rua e de relacionar-se em público? Prefere relacionar-se através de sites de relacionamento, por temer críticas alheias? Sente-se inseguro em situações que exijam seu desempenho? Tem enrubescimento involuntário quando se vê diante de uma situação em que será avaliado publicamente? Se você respondeu sim, a pelo menos uma destas questões, pertence à parcela de pouco mais de quarenta por cento da população que se considera ou é tímida.

O aumento da violência pública criou um temor generalizado nas pessoas. Elas deixaram de freqüentar lugares públicos temendo represálias infundadas e incidentes inesperados. A insegurança social, que se elevou nos últimos anos, levou-as a restringir sua liberdade de ação. O surgimento de sites de relacionamento na Internet, que possibilitam o contato com pessoas desconhecidas sem que se tenha que mostrar como se realmente é, facilitou e reforçou a nova maneira de viver de adultos e jovens: permanecer recluso em seu lar, escondendo-se atrás de um teclado, na segurança que tal situação lhe proporciona, sem deixar de se relacionar com outras pessoas foi a forma adotada de manter-se seguro e afastar o “fantasma” da timidez de suas vidas. Estes se constituem em alguns dos fatores que aumentaram o número de tímidos no mundo. Mas o que é timidez, afinal?

Timidez é um padrão de comportamento que a pessoa não exprime ou exprime pouco seus pensamentos e sentimentos. Ela não interage ativamente com as pessoas que se relaciona. Esse padrão de comportamento se caracteriza basicamente pela inibição do indivíduo em certas ou várias situações. O tímido reconhece sua dificuldade em interagir com outras pessoas ou em situações sociais e pode muitas vezes não admiti-la. Ele anseia em mudar, em ter liberdade de ação, mas depara-se com barreiras internas que impedem a livre expressão de pensamentos, sentimentos e emoções. O desequilíbrio entre estas barreiras internas e os anseios aumenta ou diminue a dificuldade de relacionamento. Os sentimentos e emoções que não são expressos fluem para o plano das fantasias. Neste, os sentimentos e emoções que não são expressos na vida real encontram espaço para “brilhar’, em vista que na fantasia não existe o temor das críticas, o embaraço cruel das opiniões. Por isso vemos muitas pessoas alheias ao mundo em que vivem, falando pouco ou mantendo-se caladas.

Dificuldades, mas não impossibilidade, em participar de atividades em grupo; de praticar esportes coletivos; de realizar apresentações artísticas; de falar em público; de fazer uma pergunta em sala de aula; dificuldade de abordar alguém para namoro ou relação íntima; em escrever o que se pensa; em falar com alguém em posição de autoridade; dificuldade de divertir-se em público, etc. são alguns exemplos que caracterizam uma pessoa tímida. Você é tímido(a)?

As causas da timidez são múltiplas, mas dentre várias podemos citar algumas:

Indivíduo suscetível a críticas – um número significativo de pessoas é capaz de sofrer modificações comportamentais ou adquirir determinadas condutas em função da relevância que dão a críticas alheias;

Experiências de humilhações silenciosas ou públicas – pessoas que vivenciam situações ou fatos sociais que, de alguma forma, corroem seu ego ou produzem distorções no ego que está em desenvolvimento;

Problemas familiares que causem vergonha – é comum crianças ou adolescentes sentirem-se envergonhados da situação financeira ou social que vivem em relação aos demais. Isso pode ser superado em pouco tempo ou permanecer como forma de autodepreciação. Permanecendo na forma de autodepreciação, a pessoa caracteriza-se por diminuir sua autoestima e desejar a compaixão daqueles que a rodeiam. Problemas familiares de outras naturezas podem causar o dano da timidez.

Em certos casos a timidez é vista como algo intransponível. Por esta razão encontramos pessoas tímidas que se comportam como se estivessem presas em seu próprio mundo. Elas estão enganadas. É possível libertar-se da timidez. Os tímidos podem vencer esse dano psicológico a partir do momento que tomam consciência da realidade que vivem e das possibilidades que possuem. Por exemplo, feiúra e pobreza não são motivos que justifiquem a timidez. São fatos que muitas vezes não podemos mudar, entretanto, podemos superá-las tomando atitudes concretas que visem uma mudança positiva e acreditar que todos têm imperfeições, às vezes, muito piores que a ausência de beleza e a falta de dinheiro. Para se libertar da timidez, os tímidos devem desenvolver o autocontrole de suas ações, a fim de não serem barrados pelo estado emocional que os reprime. Por viverem acorrentados em seu próprio mundo necessitam de um estímulo para galgar a liberdade. Existem três princípios básicos para se libertar das barreiras internas da timidez:

Sonhar – o indivíduo deve imaginar que aquilo que deseja pode se tornar real em função de suas verdadeiras possibilidades e de sua autodeterminação;

Criticar – o indivíduo deve criticar a si mesmo, não de forma opressora ou piedosa, mas de maneira fria, criteriosa e realista, percebendo que é possível realizar suas metas e conquistar seus objetivos, como, por exemplo, vencer o temor das críticas de amigos com relação ao corpo, ao cabelo, a maneira de vestir;

Realizar – colocar efetivamente em prática suas reais vontades, seus desejos, sem medo de errar, sem temor das críticas que venha a sofrer, procurando alcançar o bem-estar interno, buscando uma harmonia íntima que lhe traga prazer, felicidade e paz de espírito.

Se o tímido articular harmoniosamente estes princípios perceberá mudanças significativas em seu íntimo, verá surgir nele mesmo comportamentos fantásticos, que o levarão à liberdade. Se você é tímido, não continue a perder momentos irrecuperáveis de sua vida. Lute para vencer a timidez empregando estes princípios ou criando meios que o levem à liberdade. Lute por sua harmonia interior e realização pessoal. Seja livre!

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

NÃO FALE COM ESTRANHOS

Completara sessenta anos de idade. Estava casado há trinta e cansado. Tinha dois filhos adolescentes, que mais o aborreciam do que lhe davam satisfação. A loja de material de caça e pesca ia bem, rendia bons lucros, permitindo uma estabilidade financeira agradável. Apesar da idade, a saúde física estava equilibrada. Entretanto, a mental não ia bem. Quanto tempo já se passara desde que saiu da miséria. O tempo não o fizera esquecer as dificuldades e frustrações do passado. Deixara talvez de viver dias melhores e mais felizes devido a um casamento precoce. No início tudo era paixão, tudo era amor e rosas. Os conflitos e divergências surgiam e desapareciam, como os pássaros que vinham, pela manhã, pousar nos galhos frondosos da árvore que crescera ao lado da janela do quarto do casal. Não se separara por recear o espectro da solidão ou por não desejar iniciar tudo novamente? O tempo era inflexível. Não adiantavam súplicas ou rogos. Não permitia recuperação daquilo que deixara de fazer. O tempo lhe traía e ele tentava não pensar, mas quando lembrava se tornava melancólico assim que o percebia. O tempo se encarregou de minimizar a incandescência do amor e murchou as rosas. Vivia uma relação de conveniências. Mas e se conseguisse voltar atrás, no tempo? Caminhar novamente pelo labirinto da vida em caminhos que ainda não havia percorrido? Como seria sua vida? Certamente não faria as escolhas que fez, não perpetraria os erros que cometeu. Em certos momentos achava-se grotesco em relação aos devaneios que o acometiam, que traziam à superfície suas maiores dores, suas maiores frustrações. Não tinha com mudar sua vida e muito menos alterar o tempo. Acreditava que a vida não era feita de tentativas e erros, mas sim de dilemas e escolhas.

Cláudio retornava para casa, a pé. Devido a um problema mecânico, deixara o carro numa oficina. Caminhava sozinho, convoluto em melancolia. Quando chegasse em casa, começaria outra rotina. Beijar a mulher que esquecera da auto-estima que tinha quando o namorava. Sentir o aroma de alho e azeite que o corpo rotundo exalava, desestimulando-o a qualquer desejo quando estivesse na cama. Ele balançou a cabeleira grisalha, como se alguém estivesse a seu lado ouvindo seus pensamentos.

Faltavam apenas dois quarteirões para chegar em casa, quando ele se deparou com um homem de aparência sombria que caminhava em sua direção. Evitando o encontro, abaixou a cabeça e atravessou a rua, dirigindo-se para a calçada oposta. Quando lá chegou, assustou-se. O homem o aguardava, postado sobre o meio-fio.

- Por que está fugindo de mim?

Cláudio surpreso, parou de repente.

- Sim, porque está fugindo de mim? – perguntou novamente o desconhecido.

- Eu, eu não estou fugindo, nem o conheço...

- Claro que conhece, só não acredita que eu possa fazer alguma coisa por você.

Cláudio contraiu o rosto. Estava confuso.

- Quem é você?

- Sou aquele que muitos rejeitam, mas que muitos se tornam adeptos...

- Não estou entendendo...

- Veja bem, você está com sessenta anos, cansado do casamento, frustrado com essa vida regrada e cheia de responsabilidades e contas para pagar... imagine que pudesse voltar no tempo, pudesse realizar tudo aquilo que deseja e que não pôde realizar... você não gostaria de sair com lindas mulheres, mulheres que quando você era jovem, não existiam e que agora existem... não é verdade?

A hesitação impregnou o rosto de Cláudio. Sua expressão denunciou-o, confirmando um dos desejos que o perturbavam, mas que ele recalcava. O desconhecido penetrara na redoma que Cláudio criara para ele mesmo. Descrente, ele sorriu em desdém e disse:

- Não o conheço e ainda estou aqui ouvindo essas asneiras...

- Não acredita no que eu digo?

- Desculpe, mas mesmo que conseguisse me fazer voltar no tempo, coisa que considero absurda, eu estaria velho, cansado como estou, pouco atraente...

- Acha que não posso? Pense na proposta...

- Não, desculpe, mas eu tenho que ir, até logo.

Cláudio foi embora. O homem observava-o caminhar. Percebeu que tocara no íntimo melancólico do sexagenário, que conseguira atingir suas fragilidades tão ocultas.

No momento que fechava o estabelecimento, Cláudio foi abordado pelo mesmo homem de aparência sombria que encontrara há três dias atrás.

- Lembra de mim? – perguntou o desconhecido com um discreto sorriso.

Assustado, Cláudio fitou-o nos olhos escuros e amedrontadores.

- Então, pensou na minha proposta?

- O que você quer comigo? Eu, eu não estou entendendo...

- Não se faça de desentendido... sei que no fundo desejaria ter outra vida, outra oportunidade de viver prazeres que essa vida que considera medíocre não lhe permite...

Cláudio ficou surpreso e confuso. Como aquele desconhecido poderia saber tanto a seu respeito, sem que ele nada lhe tivesse dito.

- Quem é você?!

- Quem eu sou não importa no momento... então, aceita voltar no tempo ainda jovem, na época atual, totalmente livre, para viver uma nova vida?

Cláudio estava atordoado.

- Como pode saber tanto sobre mim?

- Não importa... aceita minha proposta?

- Não, isso é bobagem, desculpe, eu preciso ir e... por favor, não me procure mais.

O homem sorriu, vendo-o caminhar depressa para casa. Passaram-se três dias e ele se preparava para fechar a loja, quando foi abordado novamente pelo mesmo homem.

- Aceitou a minha proposta?

- Por que insiste com esse absurdo?

- Porque sei que no fundo assim o deseja.

Cláudio ficou encarando o desconhecido. Estava indeciso, mas algo o levava a aceitar, afinal que mal haveria voltar no tempo e fazer tudo aquilo que tanto desejava e que por uma escolha errada, sua vida enveredou por caminhos que acabaram tornando-o um homem melancólico e infeliz. Súbito, ele disse:

- Está bem, está bem, eu aceito... que mal vai haver? Talvez aceitando essa bobagem você desapareça da minha frente... o que tenho que fazer?

- Simples – disse o homem. – Somente aperte a minha mão... agora!

Cláudio hesitou, mas depois obedeceu. No instante que as mãos se uniram, algo insólito aconteceu. Todo o corpo de Cláudio se arrepiou. A mão do desconhecido era áspera e fria. Ele sorriu tenebrosamente e um esgar surgiu no rosto empalidecido do comerciante. A visão deste ficou turva e ele nada mais viu.

Cláudio acordou e foi ao banheiro. Um brilhante sorriso estampou seu rosto jovem quando ele se contemplou no espelho do banheiro. Era jovem novamente, como nos seus vinte e dois anos de idade. O corpo tornara-se vigoroso e esbelto. Os cabelos adquiriram a negritude da época. Ele sorriu. Foi até a sala e percebeu que estava no apartamento que morou quando ainda solteiro. Olhou para a mão esquerda e não havia aliança de matrimônio e nem marca pretérita dela. Ele sorriu de alegria. Consultou o relógio e era noite. Vestiu-se elegantemente e saiu. Foi a uma boate. Conquistou uma linda mulher, de curvas enlouquecedoras. Eles fizeram sexo por toda a madrugada. Pela manhã, Cláudio acordou com forte dor de cabeça. Foi ao espelho e contemplou-se. Era jovem, forte e atraente. Passou o dia a comprar roupas. Comprou um carro esporte, consumindo todas as economias que tinha. À noite, vestiu-se e saiu. Foi a outra boate. Nesta dançavam possantes morenas e grandes loiras. Envolveu-se com duas belas mulheres. Uma morena e uma loira. Compartilharam um ménage à trois. Cláudio passou a beber, mesmo durante o dia, o qual praticamente não via, em vista que acordava no fim da tarde. Ele passara a viver na noite, em bares e boates, recrutando minissaias e calças justas para partilhar uma cama. Noites e noites e novas e emocionantes aventuras sexuais. Ele gozava de prazeres carnais com as mais belas mulheres que conhecia. Passara a andar em alta velocidade com o carro esportivo, sempre em companhia de alguma beldade de cabelos esvoaçantes. Meses se passaram e ele sorria, não acreditando que tudo aquilo realmente acontecia e que não era um sonho.

Numa noite, quando deixava o apartamento, Cláudio deparou-se com o homem que mudou sua vida.

- Você?! O que está fazendo aqui?!

- Vim cobrar o que me deve...

- Não lhe devo nada!

O homem sorriu, balançando a cabeça de um lado para o outro.

- Esqueceu que vendeu sua alma para mim?

Houve um instante de silêncio. Cláudio arregalou os olhos quando percebeu o que estava acontecendo.

- Não!! Impossível! Isso não é verdade!! Não pode ser verdade!!

O homem se aproximou e fulminou-o nos olhos.

- Achou que podia voltar no tempo, adquirir sua juventude de volta, mudar sua escolha de vida sem que para isso nada tivesse que dar em troca?

O homem volveu o corpo e desapareceu tão rápido que ele não pôde ver para onde foi. No instante seguinte, uma dupla de assaltantes o abordou. Cláudio reagiu quando um dos bandidos lhe pediu o relógio Rolex que usava. Foi morto a tiros.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

A MULHER ÍMPAR

Você conhece a mulher ímpar? Se não conhece, é melhor se reciclar. Volte ao útero de onde veio e tente descobrir este novo tipo de mulher. Uma raridade. Ser maravilhoso e oculto na multidão consumista, perceptível somente na busca intrincada e constante. Gênero simbiótico de mulher que guarda os valores de “Amélia que era mulher de verdade...”, bem como apresenta características da mulher atual, emancipada, atuante no mercado de trabalho, ativa e comprometida com a felicidade dos filhos, engajada com a promoção do amor pelo marido, pelo homem que a completa e realiza.

A mulher que falamos não se encontra em boates, bares, na vida noturna, em academias de musculação e muito menos no ambiente trabalhista. Ela pode estar lá sim, mas está encoberta, preservada dos machões e aventureiros de plantão. A mulher ímpar é única, invulgar, algo quase em extinção. Ela valoriza o amor verdadeiro, o respeito, a dignidade, não se expõe desnecessariamente, a não ser na conquista de seus objetivos. Procura o homem ideal, aquele que a fará feliz, completa, realizada, que com ela constituirá uma família. Não cede aos conquistadores baratos e oportunistas de tocaia que desejam apenas usá-la como objeto descartável, ou assumir o poder aquisitivo que ela detém em decorrência de uma herança familiar ou emprego estável, situação que desejam, para colocá-los muito longe da penúria. Pela difícil identificação e pelo valor inestimável que apresenta é muito procurada pelos homens hoje em dia. É a mulher com as qualidades ideais para o matrimônio, para a construção de uma família, para dividir-se problemas e compartilhar alegrias. É a amante ideal, que não irá debochar da impotência temporária do homem ou de suas fraquezas psicológicas, que saberá apoiá-lo em momentos críticos, como no desemprego ou na perda de um ente querido.

A emancipação da mulher concedeu-lhe maior liberdade, mas também promoveu a sua ousadia, no sentido que ela não mais dependesse do homem, seja no lar, no trabalho, no lazer. A mulher descobriu os mistérios da vida noturna, de ser dona de sua liberdade, de não se ocupar com afazeres domésticos ou problemas financeiros familiares, muito menos com os sentimentos do homem com o qual compartilha sua cama. O homem passou a ser visto como elemento importante, mas não fundamental para a realização feminina. Tornou-se objeto que proporciona prazer, que funciona bem no serviço braçal que lhe é mais adequado, para as situações que exigem agressividade e atitude. Com esta postura, a mulher distanciou-se do matrimônio, da constituição da célula-mãe da sociedade que é a família. Optou por ter filhos de maneira independente, empregando o homem apenas como reprodutor, não como marido, pois não depende mais financeiramente dele para sustentar sua prole e definir seu destino. Esse perfil de mulher expandiu-se de tal maneira pela sociedade, gerações e gerações, que a mulher ímpar foi desaparecendo, tornando-se uma mulher infrequente.

Procura-se a mulher ímpar, exaustivamente. Desejam-na e ela tem consciência de seu valor, do que significa e representa. Sua essência é rara. Misto de musa e mulher recatada. Consciente de seu poder sabe ser mulher e amante, reconhece quando o homem merece seu amor e carinho. Cede o corpo na mesma proporção que recebe daquele com o qual se envolve. Identifica a sinceridade, valoriza o respeito e respeita, tem dignidade e não abre mão dela. Sabe de suas possibilidades, que não são poucas, e como usá-las, sem menosprezar o homem ou qualquer outro semelhante que se relacione. Sabe agir, como, quando e onde, quando for preciso.

Se encontrar uma mulher ímpar por aí, não a deixe escapar. Você tem uma preciosidade nas mãos. Cuide-a com carinho e devoção, pois só tem a ganhar. Será feliz e realizado como homem, marido ou companheiro. Se fores uma mulher ímpar, sorria, tirou a sorte grande e não precisa se preocupar. Uma multidão de homens está a sua procura e outra, igualmente de mulheres, inveja-a, visceralmente.

sábado, 7 de novembro de 2009

ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL

Ele bateu a porta no momento que saía. Dentro da pequena sala estava quente, o ambiente abafado. Lá fora estava frio, decorrente da chuva fina e fria que caía. Ficara nervoso, como todas as outras vezes, mas conseguira ocultar sua aflição. Não tinha certeza exatamente qual a razão para tal comportamento. Talvez fosse pela beleza da psicóloga, mulher mais velha, entretanto bonita, de cabelos longos e encaracolados nas pontas. Sentia-se atraído por mulher tão interessante, mas não lhe passava na cabeça nada mais que pura atração. A bela tinha idade para ser sua mãe e ele a respeitava como se o fosse. Talvez a aflição decorresse do medo. Medo que o patrão descobrisse por onde andava.

Hugo voltou a pé para casa. Andando com as mãos nos bolsos da calça jeans desbotada, entregava-se aos devaneios. Tinha consciência que o aquilo que fazia não era errado. Queria ser alguém na vida, deixar as desgraças e tristezas da favela para trás, livrar sua mãe da vida miserável que levavam. Tinha dúvidas que profissão deveria seguir e descobriu que na universidade, numa clínica que lá existia, atendiam gente carente, ajudando a descobrir que carreira seguir. Disseram que era fácil: conversar com uma moça e fazer uns testes simples. Ele achou ótimo e pensou que não poderia perder a oportunidade. Sopros de vento sacudiam suas roupas baratas e velhas. Num momento ele caminhava nas calçadas, no outra palmilhava as ondulações das ruas. Veículos passavam rapidamente por ele, atingindo-o com rajadas de respingos das poças d’água da chuva que não cessava. Sorriu ao lembrar-se das sessões que participara com a “doutora”. Dissera que interrompeu os estudos por necessidade, por ter que trabalhar para ajudar em casa. O tempo que passou nos bancos escolares permitiu que percebesse que gostava de estudar, de fazer cálculos, escrever histórias nas aulas de língua portuguesa. Conseguirá chegar até o ensino médio. Tinha boa memória, lembrou-se das sessões, dos testes aplicados pela “doutora”. Perguntava tudo, chegando a constrangê-la e ela não lhe negava o conhecimento.

- Como se chama esse teste?

- Quati...

- O que quer dizer?

- Questionário de Avaliação Tipológica.

- E aquele outro, que fiz?

- QVI...

- O que significa?

- Como você é curioso... isso não é um dos objetivos da orientação, mas tudo bem, significa Questionário Vocacional de Interesses...

- Estou gostando... – disse o jovem, sorrindo.

- Vamos ao questionário pessoal... o que você gosta de fazer?

E durante as entrevistas não paravam as perguntas. Hugo queria aproveitar o máximo os conhecimentos da orientadora. Receava que sua presença na clínica da universidade fosse interrompida de uma hora para outra.

Ele sorriu, denunciando do interior da boca o único brilho que existia em sua vida medíocre. Pensava em ser engenheiro, trabalhar numa grande obra, usando capacete de proteção, coordenando as ações dos operários. Pensava em ser advogado, envergar um daqueles ternos escuros e impecáveis, como daqueles homens sérios que via na frente do fórum, quando ocorriam audiências de gente do tráfico e ele era obrigado a ir, para no caso do patrão mandar invadir. Sempre temia que isso acontecesse.

O percurso até a entrada da favela foi vencido sem que seu corpo percebesse o esforço despendido. Hugo parou na subida do morro. Embora a escuridão começasse a espalhar-se pela cidade, seus olhos miúdos e esperançosos miraram a elevação encoberta por moradias insalubres. Eram casas com ou sem reboco que se acotovelavam e geminavam com barracos de madeira reaproveitada. Pessoas se moviam lentamente, subindo e descendo escadas, rústicos acessos criados na terra e na rocha. Seres esmolambados, desapontados com as autoridades, com os políticos que só pareciam no período eleitoral esbanjando hipocrisia. Prometiam de tudo e não cumpriam nada. Seu público eram homens, mulheres e crianças sem perspectiva de vida, com um único estilo de vestir e viver, amedrontados e oprimidos pelo mal do tráfico. O mal das drogas na favela representa o câncer que se alastra, que mata aos poucos, proporcionando uma vida agônica. Os moradores respeitam a lei do silêncio. Sofrem calados, cedem suas vidas, de uma forma ou de outra, para o comércio injusto e cruel. E isso Hugo sabia perfeitamente o que significava. Embora com apenas dezessete anos de idade, prestes a alistar-se no serviço militar obrigatório, mesmo sem ter colocado os pés dentro de um quartel, já conhecia muito da guerra. Era um legionário do tráfico. Participara de tiroteios, ferira e fora ferido, conduzira drogas de um local para outro. Uma lágrima correu silenciosa pelo rosto marcado pela acne e, no mesmo instante, ele sentiu uma dor no peito, como sentira muitas outras vezes.

Hugo enveredou por um caminho que ora se estreitava, ora se alargava, em direção ao alto do morro. O jovem esquálido e de boné virado para trás, subia devagar, rejeitando no íntimo o avançar imposto por uma escolha que não fizera. Não queria ser um traficante pelo resto de sua vida. Queria dignidade, respeito, admiração, felicidade. Súbito, no desvão de um barraco, da escuridão que o circundava, parte das sombras desmembrou-se para, violentamente, agarrá-lo por trás. Ele se debateu, tentando escapar e logo percebeu que eram dois homens, muito mais fortes que ele. Das sombras também surgiu uma figura que aquietou o jovem aprisionado. Ele arregalou os olhos quando se deparou com um dos homens mais temidos da favela.

- E aí, meu irmãozinho, por onde tem andado?

Hugo relutou em falar, e mentiu.

- Eu, eu fui lá no centro, comprar um remédio pra minha mãe...

Gino Quarenta era filho de Nonato Zinca, o patrão do tráfico na favela onde Hugo morava. O sujeito com tatuagens pelos ombros e braços se aproximou e, com um aceno de cabeça, viu seus asseclas revistarem Hugo.

- Deixa de mentir! Você tá sem remédio nenhum nos bolsos!

Gino agarrou a camiseta de Hugo e torceu-a, estrangulando-o. O jovem esperneou, por começar-lhe a faltar o oxigênio.

- Argh! Ginoo! Vo-cê vaai me mataaarr!

O criminoso sorriu, explicitando sua crueldade.

- É o que tô pensando... – disse Gino apertando ainda mais a garganta de Hugo. – O que o mano tá fazendo com aquela mulher bonita lá da faculdade?...

- Argh! Eu...

- Tô sabendo que tá indo lá toda semana... fazê o quê, mano?!

- Não tô... conseguinndo falá...

Gino soltou a camiseta e se afastou de Hugo. Com as mãos em concha, acendeu um cigarro.

- Vai, fala logo o que tá fazendo lá...

- Orientação profissional...

- Orienta, o quê?!

- Orientação profissional...

- O que é isso?!

- É pra ajudar as pessoas descobrirem que profissão devem seguir...

Gino balançou a cabeça enquanto sorria, manifestando a ausência de dentes e a presença de cáries discretas.

- Pra quê o mano quer saber o que vai ser?... meu mano, você é nosso, é da família, entendeu?... profissão, profissão, a tua profissão é aviãozinho... por enquanto – disse o traficante requebrando o corpo no momento que tragava.

- Eu... não quero ficar morando na favela... a minha vida toda...

- Tá ficando mais velho, daqui a pouco melhora de situação... aí vai recebê mais... tua vida vai melhorá.

- Eu quero dar uma vida melhor pra minha mãe e... pra mim.

Gino balançou a cabeça e tragou o cigarro. Olhou para os comparsas e disse:

- O mano tá ficando metido, tá se achando, galera... se achando melhó que nós... vê se te enxerga!

- Não!Não é nada disso, eu só quero estudar, Gino, quero ir pra a faculdade, pra ajudar minha mãe...

- Cala a boca de merda! Daqui você não vai sair pra faculdade nenhuma! Ouviu?! Nem pense em ser um bacana, nem pense!

Os dois asseclas, num aceno do criminoso, passaram a espancar Hugo. Ele gemia enquanto levava socos e pontapés. Logo caiu no chão, onde chutaram suas costas. Gino se aproximou e inclinou o corpo sobre o jovem caído.

- Nem pense em entrar nesse negócio de faculdade... não quero sabê de você ir falá com a mulher bonita, ouviu?! Nem parece lá! – vociferou o traficante.

O grupo deixou o local e desapareceu tão rápido quanto surgiu. Hugo rolou no chão. O rosto e o corpo doíam. Muito. Um gosto amargo de sangue apareceu em sua boca. Passou a mão pelo rosto e percebeu uma mancha de sangue na palma da mão. Levantou-se devagar e continuou a subir. As costas e o rosto doíam bastante. Chegando ao lar, foi interpelado pela mãe que notou os ferimentos. Negou todas as afirmações condenatórias. Tomou banho, comeu alguma coisa das panelas enegrecidas pelo fogão enferrujado, e foi dormir.

- O que houve com você?! – indagou a psicóloga quando viu os hematomas no rosto de Hugo.

- Nada, moça, nada.

- Nada?! Como nada?!... você está todo machucado! Quem te bateu?

Silêncio, um silêncio marcado pelo abaixar da cabeça e o apertar dos dedos, uns contra os outros.

- Hugo, você é um bom rapaz, mora na favela, mas tem condições de ter um futuro melhor, dar algo melhor para sua mãe, como conversamos... diga, não tenha medo, quem fez isso... eu vou tentar te ajudar...

Hugo ergueu a cabeça e fitou a psicóloga. O medo e a vergonha não foram suficientes para impedi-lo de falar.

- Com todo respeito, moça, mas se o governo não acaba com o tráfico no morro onde moro, se não dá emprego pra quem vive lá... acho difícil, muito difícil, a senhora resolver o meu problema.

A sessão de orientação profissional terminou antes do previsto. Hugo foi para casa. Subia os caminhos estreitos e tortuosos do morro, quando foi novamente abordado por Gino Quarenta e seus comparsas.

- Não te falei pra não voltar lá na faculdade? Não falei pra não conversá com a mulher?! Não te falei, mané?!

Os olhos do jovem marejaram. Seu coração batia aceleradamente. A violência do tráfico se materializava na figura de Gino.

- Gino, eu, eu quero entrar na faculdade, eu não tenho nada contra você, nem contra seu pai, eu quero ser alguém, entenda, eu quero...

Antes mesmo de Hugo terminar de falar, o criminoso sacou um revólver, de trás da cintura. O estrondo dos disparos espalhou-se pelos barracos ao redor. Nenhuma das janelas foi aberta e ninguém saiu para ver o que estava acontecendo. O corpo esquálido tombou na terra úmida do caminho. A camiseta molhada pelo suor passou a umedecer-se pelo sangue que começou a sair das perfurações no peito. Os olhos de Hugo ficaram abertos, arregalados pelo terror que o cobriu. A boca não expelira o grito de agonia do ser esperançoso. O coração entusiasmado com planos para o futuro parou de bater. O sonho do jovem da favela, de receber seu diploma num dos auditórios da universidade pública, volatilizou-se num instante.

- E a mãe dele, quando soubé? – indagou um dos asseclas.

- Que interre esse vacilão, esse babaca que queria ser doutô – respondeu Gino.

Ele cuspiu sobre o corpo de Hugo. Com um aceno de cabeça, foi seguido pelos comparsas. O grupo passou a subir pelo caminho onde estavam e desapareceu por entre os barracos. Segundos depois, moradores saíram e circundaram o cadáver do jovem caído. Um menino logo gritou:

- É o “fio” da Dona Mirtes!

- Meu Deus! É o Huguinho! – bradou uma sexagenária colocando as mãos no rosto.

O menino disparou, subindo o caminho. Minutos depois, a mãe de Hugo avançou por entre aqueles que estavam ao redor do cadáver ensangüentado. Quando viu o filho morto, caiu de joelhos e abraçou o corpo imóvel, passando a chorar intensamente.

Hugo foi morto na velada guerra civil que ocorre diariamente nas favelas dominadas por um exército descaracterizado e que conhecemos muito bem. Pertencia a um dos lados, por questão das circunstâncias e do lugar onde nasceu. Por tentar mudar seu destino, por tentar buscar uma nova sorte, por tentar ser uma pessoa digna, respeitável, foi considerado traidor do código de ética da facção a qual pertencia, passando a ser mais uma vítima dele.

Em memória dos jovens que não tiveram escolha em suas vidas


e que foram vítimas do tráfico de drogas.

domingo, 1 de novembro de 2009

O HOMEM BETA

A mulher-de-hoje, emancipada, dona de seu destino, procura por homens de lindos olhos azuis, de aparência viril e sedutora, prontos para o prazer, que nem de perto pensam em matrimônio, família ou em compartilhar dificuldades conjugais? Parece que não. Os homens sarados, que vivem de “bicos” ou respaldados por subempregos, descomprometidos com a dignidade, o respeito e os princípios do apoio, do compartilhamento dos problemas conjugais, não figuram atualmente nos objetivos primordiais do universo feminino. Homens assim, as mulheres não querem. Quando a pauta é matrimônio e comprometimento, elas não demonstram dúvidas: querem um tipo raro de homem, um modelo masculino em transformação, conhecido por homem beta.

A terminologia origina-se da biologia. O homem beta é o oposto do macho alfa, sendo este perfil do líder dos animais. O alfa demonstra força, coragem, valentia e é responsável pela caça, pelo alimento do grupo. Os machos alfas são aqueles que conquistam as fêmeas do bando. Já o beta é o macho subordinado, que acompanha os demais e não exige em participar das disputas masculinas. Claro que tudo isso no cenário da ciência. Na selva social em que vivemos nota-se alguma semelhança nos personagens, mas os papéis são outros.

No Brasil, a sociedade apresenta-se tradicionalmente conservadora, patriarcal e machista. O homem acha que ceder ao carinho, ao amor verdadeiro, à harmonia, à igualdade de direitos, constitui-se numa depreciação de sua masculinidade, de sua virilidade. A mulher atual prefere o perfil do homem beta, ser com o qual mais se identifica. O homem beta não esconde sua humildade, seus conflitos, seu amor e suas peculiares manifestações. Ele não se preocupa se a mulher que ama é profissionalmente superior a ele. Busca a harmonia, repudiando os conflitos preciosistas e as diferenças contextuais. Demonstra paciência e domínio de si, não se exasperando com a mulher quando ela está “atacada” pela tensão pré-menstrual ou por momentos de estresse. E a mulher atual, bem resolvida, competente profissionalmente, não deseja um homem que quer mandar, competir, discutir com ela. Deseja um homem que a compreenda e apóie.

Os homens líderes-protetores-provedores cansaram a mulher-de-hoje, emancipada e conhecedora de seu poder. Ela não deixou de viver, de gozar dos prazeres da companhia masculina, entretanto, passou a ser extremamente seletiva, não aceitando o modelo masculino tradicional, dominador. O homem beta caracteriza-se pela sensibilidade, respeito, atenção, harmonia. Não teme assumir suas fraquezas; chora se for preciso na presença da mulher que ama, derrubando o dogma que “homem não chora”; não teme o poder exercido pelas mulheres; tem autoestima, mas não maximiza sua aparência, até porque seus valores pessoais transcendem a carne; gosta do recanto do lar; de cozinhar; assistir televisão abraçado à mulher; de dormir agarradinho; servir café na cama para sua amada. O homem beta não é o senhor da guerra e nem pretende ser. Despreza a violência, primando pela força do argumento.

O homem de que falamos gosta de cuidar da mulher e dos filhos, do lar, da vida orçamentária e doméstica. Procura a conciliação, empregando a tolerância e a habilidade de comunicação. Com ele a mulher se sente segura, pode contar nos momentos críticos de sua vida, porque não o vê como concorrente ou modelo líder-protetor-provedor. Pode parecer que o beta não tem atitude e iniciativa, que não tem “pegada” como algumas mulheres costumam dizer, e aí reside um engano. O homem beta embora demonstre ser atencioso, carinhoso, tolerante e harmônico, ainda se mantém pragmático, dinâmico, pronto para agir energicamente quando a situação assim o exigir. Se o propósito impor, ele desvelará sua “pegada” talvez muito maior que a do macho alfa. Por seu comportamento sereno e características pouco agressivas, o homem beta enfrenta preconceitos de pessoas que o julgam como “feminino”, fraco, pouco másculo. Não poderia ser diferente de uma sociedade marcada pelo sistema patriarcal, no qual o macho deve ser agressivo, violento e pouco sensível.

O homem beta é um modelo em transformação, como o mundo atual, em constante mudança. É um arquétipo que tenta sobreviver aos meandros e às agruras da relação homem-mulher na conquista da felicidade e do amor pleno, resistindo às tragédias e desastres do contexto social. Ele quer ter uma família, filhos que possa cuidar, que o valorizem e amem. Quer ter uma mulher que possa apoiar e que também o apóie, para juntos superarem os problemas e desafios da vida contemporânea.