A mãe voltara do cinema com uma tia. Era final de uma tarde de primavera e não havia brisas. Ele estava com medo. Não por que ficara em casa sozinho, mas porque o pai, homem frio e despótico, que sentia prazer em demonstrar sua força física com os filhos, acabara de chegar. O pai fumava nervosamente, quando lhe perguntou pela mãe. O garoto esquelético, de olhos encovados, respondeu temerosamente. Embora ausente, o pai xingou a esposa. O garoto sentiu um medrar aflitivo e encolheu-se, como se encolhia quando o pai, por motivo fútil, espancava-o. O pai suava. Uma transpiração que porejava o cenho. Tenso, foi para o quarto e trocou de roupa, retornando com uma camisa e uma bermuda. O garoto, enquanto o pai se mudava de roupa, foi para a porta do barraco onde moravam e ficou aguardando a chegada da mãe.
O barraco era de pau-a-pique. Não havia forro ou laje, apenas o telhado que, visto por dentro, era um misto de barro e fuligem vinda das bocas de fogo da cozinha. O piso era uma argamassa porosa, coberta por tinta avermelhada, que sua mãe encerava e lustrava com um pano enrolado numa vassoura. Havia um quarto, onde seus pais dormiam; uma sala pequena, que servia de dormitório para ele e o irmão mais velho; uma cozinha muito pequena, onde a mãe preparava o pouco que vinha para a mesa e de onde a gordura vaporizada se espalhava pelo barraco.
O garoto sentou-se na soleira da porta e ficou olhando para o abacateiro, que cresceu ao lado do barraco, criando uma grande sombra sobre ele. Estava aflito. Sentia as pernas tremeram dentro das calças curtas, pelo ruído causado pelo andar pesado do pai dentro de casa. Sentia-se fraco por saber que nada poderia fazer para mudar o que estava por acontecer. Sabia que, pela atitude agressiva e impaciente do pai, a situação resultaria em mais uma das brigas que tanto o atormentavam. O garoto queria paz, harmonia entre o pai e a mãe, mas o pai nunca assim o desejou, nem mesmo depois que ele cresceu e tornou-se um adulto. Gostava de correr, alucinadamente, tanto pelo quintal empoeirado, como pelas ruas sem asfaltamento, quando ia comprar alguma coisa por ordem do pai que o via apenas como um serviçal. Pensou em abandonar seu posto no fundo do terreno e correr para o portão de casa e aguardar a mãe. Tentaria, com o seu pequeno vocabulário, expressar-lhe o perigo que enfrentaria. Mas sabia que sua atitude de nada adiantaria. A tarde estava terminando e a demora da mãe em chegar do cinema aumentava a agressividade do pai. Ele temia pelo porvir.
A figura da mãe acompanhada pela tia surgiu no portão. Ela sorria, demonstrando um dos raros momentos de alegria que marcaram sua vida depois que casou com aquele sujeito à toa. O pai, desde jovem, fora avesso ao trabalho. A mãe veio caminhando devagar. Parecia que comentava cenas interessantes do filme que assistira. O garoto levantou e foi encontrá-la. Abraçou-a forte e ela ficou surpresa com sua atitude.
- Tudo bem filho?
Rosto erguido e olhar fixo nos olhos da mãe, ele nada respondeu, cingido às pernas que muito o conduziram até o posto médico mais próximo quando doente. A mãe e a tia seguiram para o fundo do terreno. Ele seguiu-as. A porta da cozinha estava aberta e elas entraram por ela. O garoto foi para junto da porta e ficou encostado na parede que a ladeava. Não tardou irromper uma forte discussão. Por perceber a aflição da mãe que se defendia das acusações infundadas do pai, o garoto entrou na sala. Pensava que sua presença poderia inibir a agressividade do pai. Estava enganado. O pai estava para agredir a mãe quando ele foi arrastado pela tia para fora, que o conduziu para uma pedra próxima de uma goiabeira afastada do barraco. O garoto tentava livrar-se das mãos da tia, que um dia o faria macho, mas não conseguiu vencer a força arrebatadora. Sentados e abraçados na pedra fria, a tia e ele passaram a ouvir a forte briga. Palavrões, gritos, atitudes agressivas soavam como estrondos no fundo dos ouvidos do garoto, que tentava fugir dos braços que o manietavam. Ele queria interceder em favor da mãe. E esta tentativa de socorro se repetiu por um tempo muito longo para sua mente em pânico. Enquanto chorava nos braços da tia, a mãe era acusada de leviandade, de traição, quando adúltero era o pai. De repente, ouviu, aterrorizado, a mãe gritar, suplicar para que o pai não fizesse aquilo. No instante seguinte, através da porta da cozinha, viu um facão na mão do pai e este decepando ao meio a sandália, de salto de cortiça, que a mãe usava quando chegou do cinema. Ele tentou socorrê-la, mas estava exausto e fraco para fazer qualquer coisa. Os olhos marejados viram o pai sair pela porta da cozinha e desaparecer no portão de casa. A tia o soltou e ele correu desesperadamente ao encontro da mãe. O que viu cravou-se no inconsciente, uma imagem impactante, pungente, que deixou uma mancha esbraseada, nódoa que nunca mais desapareceria. A mãe estava caída no chão da cozinha. O vestido de algodão estampado encontrava-se rasgado, despedaçado, desvelando um dos seios. Ela soluçava muito e a sandália dilacerada pelo facão estava diante do corpo dolorido. Não por apanhar, porque o marido não a agredia fisicamente, apenas a ameaçava, impondo-lhe tortura psicológica. Era uma guerra de nervos, de intensa tensão mental. O garoto se aproximou devagar. As lágrimas que escorriam da face contraída, o tremor das mãos que costuravam dias e noites, o choro lamentoso do coração que o gerou. Ele ajoelhou e abraçou a mãe. Ficou a chorar com ela. O terror novamente permeara seu lar, não, não poderia chamar de lar aquele barraco, aquela existência degradante. Desejava um desfecho diferente para sua vida cheia de violência e penúria. Desejava expurgar do íntimo todas aquelas imagens, todos aqueles momentos que mais pareciam cenas de um tétrico filme hollywoodiano.
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