Ele suava. Uma transpiração fria, fugidia, que corria do alto do cenho para a barriga que se comprimia. A noite era de primavera, mas parecia de verão. Quente, sufocante, com poucas brisas que amenizam o calor que o incomodava, mas não o seu temor. Voltava para casa. A velha casa, carcomida pelos anos e pela desarmonia entre familiares. Ela estava logo ali, adiante, não tão longe do corpo esquelético que muitas vezes consumia apenas duas refeições diárias. Gostava de correr, alucinadamente, pelo quintal empoeirado em perseguição de alguma galinha, somente para vê-la fugir em desespero. Sentia-se forte, ágil, superior. Fazia-o esquecer a miséria em que vivia enredado. Gostava de ser criança. Ser criança para ele era ser inocente, criatura de coração puro, não enlameado pela corrupção dos adultos. Ser criança era não ter as responsabilidades que tanto ouvia os adultos reclamarem. Continuava a caminhar em direção à porta dos fundos, olhos remelentos pelo sono que o derrubara sob o abacateiro. Debandara para lá no fim da tarde, para gozar da sombra imensa. O cansaço inerente ao corpo fraco conseguiu abatê-lo, apesar de ele lutar para não dormir fora de sua cama, ou melhor, catre, aquilo onde estirava o corpo. Sentia medo do escuro, da lua. Um medo visceral, que ao precipitar-se na luz, extinguia-se em celeridade semelhante a um piscar de olhos. Olhos vívidos, não soturnos. Dormia num canto da sala, vigiado pela chama de uma vela. O déspota que o colocara no mundo não permitia que qualquer lâmpada permanecesse acesa depois que todos fossem dormir, afinal onde arrumaria mais dinheiro para pagar a conta de energia. O salário que recebia era mínimo, mínimo num país sempre em desenvolvimento, expressões que o garoto costumava ouvir. E o pai avesso ao trabalho, fazia “bicos” como pintor, mas mesmo assim faltava dinheiro. Ele continuava a caminhar em direção à porta dos fundos. Queria correr, mas sentia-se fraco, as pernas pesavam, não venciam o medo que as fazia tremer. A escuridão que surgira antes que ele acordasse, estava por todos os lados. E ele temia a escuridão. Causava-lhe um medrar aflitivo, que o fazia procurar o aconchego da mãe. Ele que não saía de casa à noite, para não se encontrar com as trevas e com a lua. Esta sim era “ser” que lhe causava forte temor. Quando a via no alto do firmamento enegrecido, cercada muitas vezes por misteriosas estrelas, sentinelas cintilantes, seu pequeno coração disparava e suas mãos transpiravam em abundância. Sentia o esfíncter contrair-se, sem o desejar. Temia ser esmagado por tão vigoroso astro, por gigante tão resplandecente. A lua era divina e, no entanto, ameaçadora. Atraía-o por beleza e obscuridade, mas despertava-lhe uma sensação agourenta, infausta. A porta dos fundos, da cozinha que sua mãe pouco cozinhava pela falta de alimentos, estava entreaberta, como a lhe oferecer uma pequena passagem que o livraria de todos os medos, ou do maior de todos. Tinha medo de cair no chão e ser engolido pela escuridão e depois ser esmagado pela lua. Era um medo breve, circundado por tantos outros. Guardava esse medo infantil, coisa de criança, que o acompanharia por toda a vida, sob outra forma, sob outro conteúdo. Ele saberia, muito mais tarde, que os medos de infância crescem conosco, acompanham-nos por toda a vida. Quem os transforma são nossas iras, ambições, injustiças, maledicências, cobiças, avarezas e egoísmos. Convivemos com o mal, com suas diversas formas e aparências, com a violência que lhe é inerente, para um dia deixarmos de perceber que nos tornamos aquilo que mais tememos.

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"A literatura insinua e coloca questões muito mais do que as responde ou resolve."
-------------------Milton Hatoum, escritor brasileiro
-------------------Milton Hatoum, escritor brasileiro
sábado, 10 de abril de 2010
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Um comentário:
É engraçado, admiro aquelas crianças que passam toda a infância sem medo algum, sem temer um adulto ou uma lua, no caso; Admiro pois são essas pessoas que viram líderes, são elas que viram história; Sabe por quê? Porque sempre estão dispostas a enfrentar o medo, enfrentar o pior. Quantas vezes estivemos cara-a-cara com a pior metade? Quantas vezes temos que encarar a hora da verdade? Tenho medo apenas do medo que as pessoas têm.
Ótimo texto,
Guilherme Conde''
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