Seja bem vindo

"A literatura insinua e coloca questões muito mais do que as responde ou resolve."

-------------------Milton Hatoum, escritor brasileiro



Contador de visitas

domingo, 25 de julho de 2010

DIA DO ESCRITOR 2010

Poucas pessoas sabem o que se comemora no dia 25 de julho. Tenha certeza que, se o Dia do Escritor se fosse feriado nacional, data que permitisse que todos abandonassem seus empregos e fossem à praia, ao futebol ou às compras, seria um dia lembrado por todos os brasileiros. Mas escrever é algo irrelevante para a maior parte da sociedade brasileira. Certamente esta é a razão de sermos um país “sempre” em desenvolvimento.

Escrever é uma forma de comunicação, de falar com as outras pessoas. Complexa, sem dúvida, mas não inatingível. Para muitas pessoas, escrever é um verdadeiro suplício. Quando elas têm que expressar suas ideias ou pensamentos através da escrita, para redigir uma simples carta ou redação escolar sentem imensas dificuldades. Para outras, escrever é algo muito simples, quando não percebem que o que escrevem não passa de bobagem, de texto sem estrutura e teor, ou ainda, quando julgam que aquilo que depositaram sobre o papel é algo criativo, inovador, formidável. Realmente, escrever para quem não gosta, não tem aptidão ou pendor, é atividade desconfortável, desagradável e entediante. Porque escrever é uma atividade que exige criatividade, entusiasmo, perseverança, equilíbrio e dedicação, qualidades imprescindíveis ao escritor. Aqueles que escrevem com seriedade e primor tentam, a duras penas, compartilhar equilíbrio, emoções, sentimentos, conhecimentos e apoio a seu semelhante. Escrever é atividade de criação a partir do nada, do papel em branco, imprimindo-lhe sinais gráficos, letras, que formarão palavras, que darão forma e conteúdo ao texto. Escrever uma narrativa ou redigir uma redação não é simplesmente colocar no papel aquilo que corre na mente como as torrentes de um ribeirão revolto. É harmonizar palavras, frases, dando-lhes teor, consistência, brilho estético, profundidade. Escrever com primor é tarefa de lapidação que nos obriga a ter disciplina, esmero, meticulosidade, mansidão e inesgotável paciência. Escrever não pode ser uma atividade encarada como bobagem, como idiotice como inúmeras pessoas julgam. É triste que pensem assim.

Escrever é um ofício menosprezado pela maioria dos brasileiros. Até porque poucas pessoas realmente leem. Elas acham que ler é perda de tempo, ainda mais escrever. Acham que a escrita é coisa inútil, improdutiva, que quem escreve é gente que não tem o que fazer, ociosa, que provavelmente não conseguirá publicar o que escreveu. Mas há pelo menos uma razão para a maioria da população pensar assim. Essa maioria não lê, não porque não gosta, mas porque não é incentivada. Os livros no Brasil são extremamente caros e não há interesse que o povo se torne culto, esclarecido. A classe dominante não deseja que a maioria empobrecida adquira conhecimentos, se torne culta, tenha consciência de princípios e valores morais. Quem sabe quer mais, entende mais, não aceita mais. Infelizmente, devido à conjuntura nacional o povo não tem dúvidas diante do dilema de comprar um livro ou um sanduíche para saciar a fome.

O escritor é um solitário, um ser incompreendido que busca na escrita seu alívio, sua alegria, sua realização. Quando senta diante do monitor ou da folha de papel, sua mente se liberta de todas as correntes que a manietam, expressando livremente o que circula em seu coração. Ele “confessa” seu íntimo ao próximo, sem se preocupar com o que ele ou outrem vão pensar de suas criações. Compartilha sem temor ou vergonha suas alegrias, ideias, emoções, angústias e medos. E apesar das dificuldades, das críticas mordazes, sua maior recompensa emerge de maneira vibrante quando é lido, mesmo que de forma irrelevante e descompromissada.

Muitos que escrevem se intitulam escritores, mas na realidade não o são. Não tem pendor, vocação. Emprestam suas ideias e pensamentos a terceiros que possuem o dom e com recursos financeiros publicam suas criações. Publicam, não são publicados. Na realidade não há mérito em suas obras. Talvez seja essa a razão porque, muitas vezes, compramos livros que depois da leitura nos arrependemos. Nem tudo que é publicado tem valor literário, agrada ao leitor.

Tornar-se um escritor reconhecido é tarefa hercúlea. Tantos escrevem com dedicação e primor, por anos, e nunca são reconhecidos por suas belas obras. Ser um escritor de renome é uma conquista imprevisível. É algo como acertar na loteria. Arrisca-se todas as semanas, mas ganhar sozinho todo o prêmio é fato que não se pode prever.

Que este dia não passe em branco, pelo menos nos corações dos escritores e daqueles que amam a literatura. Aos meus colegas de ofício, não desanimem, continuem a escrever e felicidades.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

UM HOMEM CHAMADO MACÁRIO (6)

- Eduardo? O que foi Eduardo? – disse Cibele percebendo o olhar devaneante do detetive.

Ele despertou, apresentando uma expressão constrangedora.

- No que você estava pensando?

- Na minha vida... sou um homem solitário, não sou de ter muitos relacionamentos, acho que devido à minha profissão, afinal quem quer compartilhar suas emoções, seus sentimentos com um homem que vive arriscando a vida no combate ao crime?... quem deseja ter como marido um sujeito que sai no meio da madrugada para realizar campanas?... acho que poucas mulheres se sujeitam a esse modelo de vida...

- Sim, é verdade, poucas...

- Então?... mas quanto ao fato de não levar você logo para a cama, é uma questão de respeito, gostei de você desde o momento que te vi no pronto-socorro, naquele fim de tarde chuvoso...

As palavras de Macário tinham o efeito de ondas espumosas e cristalinas de um mar bravio, a arrebentar, em sons díspares e estridentes nas encostas escarpadas do coração de Cibele. O olhar da médica novamente cintilou, mas com um brilho diferente.

- Você pode achar que não, mas se tornou importante para mim, para a minha vida...

Um momento mágico estabeleceu-se e eles ficaram calados, tocados pelo calor de suas essências. Suas respirações desequilibraram-se, seus anseios emergiam, exalados pelos poros, como fragrâncias inebriantes que evolavam em torno deles, numa união sideral de identidades.

- Estou, estou apaixonado por você – pronunciou o detetive esfuziante.

A essencialidade de suas palavras envolveu o espírito da médica. Seus olhares encontraram-se e ela sentiu-se tragada a um recôndito do coração do homem da lei. Um coração que inegavelmente era quente para ela e frio para aqueles que maculavam os princípios da justiça.

- Você é importante para mim... quero que acredite nisso – afirmou o detetive compenetrado.

Num movimento tenro e suave, ele estendeu o braço e tocou sua mão que repousava sobre a toalha da mesa. Eles ficaram entreolhando-se.

- Está realmente apaixonado por mim?

- Meus olhos não dizem isso?

- Será que posso acreditar em você?

- Porque eu mentiria?

- Homens já mentiram para mim, visando apenas um objetivo.

Um homem verdadeiramente apaixonado é capaz de atos idílicos. Seu espírito pode desentranhar efusivo o amor desconhecido, o sentimento que lhe é mais caro.

- Não tenho porque mentir... me apaixonei por você, me apaixonei pela sua voz, pelo seu sorriso, por tudo em você...

- Tão rápido?

- Ouvi dizer que o nosso coração desconhece o fator tempo quando o amor está para desabrochar... me apaixonei por você, por cada instante que estivemos juntos, em todos os momentos que nos vimos, que conversamos pelo telefone.

Cada palavra, gesto ou olhar de Macário perturbava o coração de Cibele. Tornava-se difícil para ela não evidenciar o que sua alma desejava manifestar.

- Eduardo, é que eu, eu já sofri muito porque me apaixonei pela pessoa errada – disse a médica, a voz embargada. – Os homens que conheci só queriam uma coisa comigo... minha mãe diz que poucos homens dizem a verdade e eu... eu estou cansada de mentiras.

A mão do detetive, que tocou Cibele, passou a acariciá-la.

- Já abusaram dos meus sentimentos e eu não quero ser mais um objeto nas mãos dos homens, não quero...

- Entendo e imagino que já passou, mas não posso garantir nada, apenas que estou verdadeiramente apaixonado por você e que te respeito... talvez não acredite, mas digo a verdade.

Cibele ficou a encará-lo. Demoradamente. Os segundos que se passaram pareciam para os dois uma eternidade.

- Posso acreditar no que você disse agora há pouco? Posso acreditar que não está mentindo, como os outros?

O detetive apoiou as costas no espaldar da cadeira, fitando-a nos olhos.

- Se eu disser que digo a verdade, seria muito óbvio... acho que meu comportamento prova o que sinto, olhe nos meus olhos, sinta o meu coração, perceba se digo a verdade, se sou sincero com você...

A médica continuou a encará-lo por alguns segundos. Ela também estava apaixonada e não queria demonstrar seus sentimentos. As mãos entrelaçaram-se e ela sorriu.

- Acho que posso acreditar em você.

Eles terminaram o jantar e Macário levou-a para casa. O carro do detetive estacionou em frente ao prédio onde ela morava, no bairro onde se concentrava a classe média da cidade. Eles desceram e caminharam até a porta envidraçada da portaria.

- Gostou do jantar?

- Gostei, claro que gostei, se ainda não disse, eu adorei... há muito tempo eu não saboreava uma comida tão suculenta como aquela.

- O Villeiros é um excelente restaurante – disse o detetive. – Sou cliente da casa.

- Já levou outra mulher para jantar no Villeiros?

O detetive sorriu explicitamente.

- Eu não sabia que você era ciumenta.

- Sou e assumo que sou... sou porque tudo que valorizo, é importante para mim... você já levou outra mulher no Villeiros?

- Não, ali não... como eu disse, sou um homem de poucos relacionamentos.

Ela sorriu.

- Bom, acho melhor eu subir, amanhã tenho um longo dia de trabalho...

Ele aproximou-se e segurou suas mãos.

- É ruim deixar você – disse o detetive. – Gosto de estar com você, a tua companhia me faz bem, como ninguém fez até hoje.

O toque propagou o calor de seu corpo, que aqueceu, ainda mais, o ebulitivo coração da médica. O corpo em formosura, naquele instante, foi perturbado por algo prodigioso, delicado e aconchegante. Ela tentou desviar o olhar. Instintivamente, mordeu o lábio inferior, quando sentiu suas entranhas umedecerem, tentando controlar o desejo irrefreável que a dominou.

- Cibele...

Os olhos azuis, da morenice brejeira, fitaram-no nos olhos. Ele aproximou-se mais e seus rostos tocaram-se. No leve contato da pele, eles cerraram os olhos. A língua de Cibele, num movimento discreto, percorreu a boca retocada no toalete um pouco antes de sair do restaurante, deixando-a umedecida.

- Cibele...

- Eduardo...

Ele passou a beijar, com delicadeza, as faces do rosto macio. O coração da médica passou a palpitar mais rápido.

- Cibele, Cibele... – sussurrou o detetive.

Suas mãos cingiram a cintura torneada e, num ardume, ele beijou-a. A médica abraçou-o com vigor, não conseguindo mais reprimir o desejo que lhe perturbava. As sôfregas mãos acariciavam os corpos, em regozijo, ora passando pelos cabelos, ora percorrendo as costas. O ósculo foi longo, doce, intenso. Ao fim dele, Cibele acariciou o rosto de Macário.

- Acreditei no que você me disse – murmurou a médica. – Até mais ver...

Ela afastou-se rápido e abriu a porta envidraçada. Caminhando depressa, olhou para trás, notando que era perseguida pelo olhar apaixonado do detetive. Em segundos, desapareceu no saguão da portaria, subindo as escadas de acesso ao pavimento superior. O detetive ficou extasiado. Seus pensamentos entraram em efervescência pelo momento que se formou. Súbito, ele percebeu que estava sozinho, com a imagem de Cibele caminhando dentro de sua mente. Com um radiante sorriso nos lábios, embalou a cabeça, volvendo o corpo. Com as mãos nos bolsos retornou para o carro e partiu.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

O CASO BRUNO E O CASO MÉRCIA

A violência aumenta e se diversifica. É o que vemos nos jornais televisivos e lemos nos periódicos. Anteriormente foi o caso Isabela Nardoni, marcado por imensa brutalidade, agora, quase simultaneamente ocorrem os casos Bruno e Mércia. O ponto crucial de todos foi a violência contra a mulher. Matar por ciúme? Matar por não desejar assumir a paternidade de uma criança? O homem, a cada evolução, regride em sua conduta. Animaliza-se. Parece que o universo masculino perdeu o discernimento, esqueceu a empatia por seu semelhante, ou pior, deixou-se levar pelo ódio, pelo ressentimento desperto pelas emoções que o dominam momentaneamente. Por não existir dom maior que a vida, não há o que justifique matar um ser humano ou atentar contra sua integridade física. Mas a culpa deve ser focada unicamente no homem, no macho? Acho que não.

A serpente (fêmea) seduziu Eva, que por sua vez seduziu Adão a cometer o pecado de comer o fruto proibido. Talvez a fonte de todos os erros comece aí. A mulher ao longo do tempo, em todos os tecidos da sociedade, foi buscando, mesmo que de forma discreta, ascender ao patamar masculino. Um grande avanço foi a comercialização da pílula anticoncepcional por volta de 1960. Por inibir a fertilização e promover o planejamento familiar, a pílula foi criticada por diversos setores, pois sua instituição permitiu às mulheres mudanças de comportamento sexual, dando-lhes autoconfiança e maior liberdade, fato que alterou o quadro social e o processo natural de reprodução. A mulher passou a relacionar-se com o homem que desejava sem temer o risco de engravidar. Simultaneamente, permitiu uma maior flexibilização dos valores morais e o ingresso da mulher no mercado de trabalho. Mas a consciência feminina não previa e nem imaginava que essa ampla e redentora liberdade acabasse por distorcer-se tão severamente ao longo dos tempos, levando gerações a despojar-se de valores imprescindíveis ao caráter e a própria valorização da mulher. A imoralidade e a prostituição que se restringiam a uma parcela de mulheres da sociedade, devido à condição econômica em que estavam inseridas, mesclaram-se aos padrões de conduta e decência então vigentes, descaracterizando-se. Em consequência, inúmeras mulheres passaram a adotar uma conduta lasciva e luxuriante sem se a perceber disso. Perderam o senso de preservação, de caráter, deixando de discernir aquilo que era correto, respeitável, daquilo que lhes comprometia a moralidade, a dignidade. Este processo se propagou de geração em geração e a sociedade não tem mais como corrigir essa terrível falha comportamental. Não afirmo que as mulheres envolvidas nas fatalidades em tela pertençam ao referido segmento feminino, entretanto, é visível que não souberam escolher seus consortes em função dos homens com os quais se envolveram.

Em contrapartida, diante desta postura feminina, o homem passou a ver a mulher não como companheira, não como alguém com quem pode compartilhar sua felicidade e anseios, mas como um ser (frágil) que se equiparava a ele, em atributos e capacidades. A mulher passou a ser encarada como um igual, que alçou posições tipicamente pertencentes a esfera masculina. Em face da premissa, o homem passou a não conter suas emoções, permitindo que a violência tomasse conta das relações amorosas que contrai. A mulher tornou-se vítima desta violência, bem como seus filhos.

A advogada Mércia Nakashima, 28 anos de idade, desapareceu em 23 de maio e foi encontrada morta no dia 11 de junho em uma represa em Nazaré Paulista, interior de São Paulo. Exames comprovaram que ela levou um tiro no rosto antes de morrer. A polícia ainda investiga se Mércia foi mantida em cativeiro antes de ser assassinada. O ex-namorado Mizael Bispo de Souza, um homem ciumento com o qual ela manteve relacionamento por quatro anos estava foragido, pois é o principal suspeito de articular e executar a morte da advogada, mas com a suspensão de sua prisão preventiva, ele reapareceu e está para ser ouvido novamente pelo delegado responsável.

A ex-modelo Eliza Samudio, 25 anos de idade, teve um envolvimento amoroso com o goleiro Bruno Fernandes das Dores de Souza, em maio do ano passado. Possivelmente deste relacionamento nasceu uma criança para qual ela solicitava um teste de DNA ao goleiro para verificar a paternidade da criança. Segundo as investigações da polícia, ele e mais sete pessoas estão envolvidos no sequestro, cárcere privado e assassinato de Eliza, que continua desaparecida até o presente momento.

Ambas foram atraídas por seus amantes a lugares adequados a execução de suas mortes. Traídas por aqueles que deveriam zelar por suas vidas, em qualquer contexto social ou amoroso em que estivessem. Os algozes pensavam que poderiam cometer tais atrocidades e permanecer impunes, mas a justiça humana, mesmo que falha algumas vezes, acaba por ser guiada pela justiça divina e somente aquele que nos concede a vida pode retirá-la. Devemos nos compadecer da dor que as famílias estão vivenciando no momento e concentrar nossos anseios para que os responsáveis sejam presos e punidos no rigor da lei.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

UM HOMEM CHAMADO MACÁRIO (5)

O garçom, vestindo calças pretas e camisa branca, aproximou-se da mesa. Estranhamente, ele usava um avental escuro que lhe cobria o corpo até os joelhos. Silente, passou a dispor cuidadosamente sobre a mesa o pedido solicitado meia hora antes. A disposição meticulosa e a imagem colorida do prato principal provocaram um sorriso de satisfação no casal. Um segundo garçom apresentou-se à mesa e serviu o vinho escolhido pelo cavalheiro. Depois de prová-lo, Macário murmurou:

- Huum, esse vinho está ótimo!

Os garçons retiraram-se e o casal iniciou sua lauta refeição. O comportamento à mesa revela seguramente a educação e o grau de sociabilidade de uma pessoa. Suas boas maneiras e a naturalidade com que usa o garfo e a faca demonstram se ela habitualmente manuseia os talheres em casa ou numa mesa de cerimônia. Cibele executava movimentos leves e delicados no comer, característicos de uma mulher de educação refinada.

- Meu prato predileto é este frango à Paris... claro que acompanhado por um bom vinho tinto – disse o detetive.

Preluziam sedosos cabelos pretos sobre os ombros delicados. Garbosamente emolduravam um cariz tenro, sedutor, no qual vicejavam cintilantes olhos azuis. Discretamente, ela sorriu num contentamento íntimo por tê-lo em sua companhia.

- Pela tua satisfação, não tenho dúvidas disso – disse Cibele.

- Sim, realmente gosto muito... acho que o que me atrai é esse sabor inusitado que a carne adquire... esse sabor muito me apetece... você gostou?

- Sim, claro, é um prato leve e saboroso... adorei.

Os olhos azuis contemplavam o semblante do detetive, como se pudessem lhe tocar as faces. Ela bebeu um gole de vinho, enquanto o encarava. Tentava ocultar seus sentimentos, mas era traída pela expressão de seu rosto.

- Percebo que você aprecia uma boa gastronomia – disse a beldade.

Ele sorriu.

- Sempre apreciei comidas refinadas, talvez por causa de minha avó, ela gostava de fazer pratos exóticos... mas como todo bom brasileiro, não dispenso uma tradicional comida mineira.

Das curvas encantadoras recendia um perfume que provocava os sentidos de Macário. Em alguns momentos, ele desviava o olhar, como um adolescente em uma de suas primeiras conquistas amorosas, mas seu coração permanecia imantado a energia emanada por Cibele. Ela passou o guardanapo nos lábios, para evitar nódoas de gordura da comida no cálice e bebeu um gole de vinho.

- Como está o ombro? – indagou a médica. – Ainda dói?

- Depois de ser tratado por você eu não poderia estar melhor.

Ela sorriu. A bela cirurgiã atendera Macário no pronto-socorro do Hospital das Mercês, na tarde da operação policial que culminou com a morte do traficante Mazinho.

- Depois dos dois curativos que fiz, você não mais voltou ao hospital... senti sua falta, você precisa cuidar desse ferimento, provavelmente ele ainda não está totalmente cicatrizado...

- Me falta tempo, Cibele... sou um policial muito atribulado.

Ela meneou a cabeleira negra.

- Todos temos muito que fazer, mas se não cuidarmos de nossa saúde, adeus energia para o trabalho...

- Sei que tenho que me cuidar, mas muitas vezes não sobra tempo.

- Não chamo isso de atribulação, chamo de negligência... a saúde deve estar em primeiro lugar e acho que você devia pensar assim...

- Obrigado por se preocupar comigo.

- Se é tão importante estar bem fisicamente no exercício da tua profissão, como você já disse, acho que deveria tratar dos ferimentos com mais cuidado.

- Sim, você tem razão, mas procure me entender, existem prioridades profissionais que eu não posso desprezar.

Ela ficou calada, fitando-o nos olhos, por um instante.

- Está bem, já vi que você não entende.

- Não há nada mais importante que a saúde, pelo menos eu penso assim...

- Não é por acaso que você é médica.

- E acredito que você pensa da mesma forma com relação à Justiça...

- Não posso negar.

Cibele bebeu um gole de vinho.

- Sabe que acho você um homem diferente...

O detetive parou de comer.

- Diferente? Eu?

- Sim, acho você um homem diferente... diferente de todos os homens que eu já conheci... e conheci poucos...

O detetive sorriu.

- Será que realmente conheceu poucos? – disse Macário jocosamente.

- Não fale assim, você pensa que eu sou o quê?! – murmurou Cibele tomada por um leve rubor.

- Uma linda e respeitável mulher que aceitou jantar comigo depois de dois convites recusados...

Cibele sorriu.

- Você não tem jeito, sempre bem humorado... mas falando sério, como você, eu me dedico muito à minha profissão, tenho pouco tempo disponível... e não sou muito de sair de casa, não sou de badalação.

O detetive meneou a cabeça em concorde.

- Eu percebi, e isso me levou a gostar de você... mas como é mesmo a desculpa?

Ele modulou a voz.

- “Ah, hoje eu não posso porque estou de plantão...” ou “... hoje eu estou muito cansada, vamos deixar para outro dia?” ou “...não imagina que dor de cabeça que eu estou sentindo... vamos deixar para outro dia?”...

- Ah, Eduardo, procure me entender... como eu podia sair com você? Não te conhecia direito, não sabia quase nada a teu respeito...

A candidez da médica sensibilizava o detetive.

- Afinal de contas, você é um policial e eu nunca me envolvi com um policial, a não ser no exercício do meu trabalho.

- Tudo bem, tudo bem, Eu entendo, mas você está sendo um pouco preconceituosa... apesar da má fama retratada pelos jornais em relação à polícia, policiais não mordem... – retrucou Macário alegremente.

- Mas matam... são assassinos – observou a médica categórica.

O cariz do detetive mudou, mesmo que ele tentasse manter a mesma serenidade e alegria do início do jantar. Cibele percebeu seu desagrado.

- Desculpe, desculpe, eu não queria te ofender...

Macário ficou calado, fitando-a nos olhos.

- Mas me compreenda, eu fiquei insegura em relação a você...

- Tudo bem, mas não há o que temer... se queria me conhecer melhor, saber realmente quem eu sou, você já sabe.

A médica tomou um gole de vinho.

- Sim, acho que te conheço um pouco, pelo menos acho que conheço.

O detetive passou a mão pelos cabelos e bebeu um gole de vinho.

- Mas você disse há alguns segundos atrás que eu sou diferente... no que eu sou diferente?

- Ah, você é gentil, cavalheiro, coisas que nós mulheres não vemos há muito tempo... sabe quem foi o último cavalheiro que eu conheci?

- Não imagino.

- Meu pai...

Macário sorriu.

- Verdade, meu pai... ele era um homem educado, bonito, de lindos dentes... parecido com você... sabia ser gentil, meigo e atencioso com uma mulher... como sempre foi com minha mãe.

Inesperadamente, ela abaixou os olhos, ficando em silêncio por um instante.

- E o que mais?

Cibele ergueu os olhos. Eles cintilavam.

- O que foi que houve? Eu disse alguma coisa errada? – indagou Macário.

- Não, não foi você... fui eu...

- O que foi que houve?

- Quando falo no meu pai, fico assim, desse jeito.

- Ele morreu precocemente?

- Sim, num acidente de automóvel... nós não estávamos com ele... foi uma carreta que destruiu o carro... ele chegou ao hospital com vida, mas os médicos não conseguiram salvá-lo...

- Foi isso que motivou a escolha por medicina?

- Sim... achei que como eu não estava lá para ajudar meu pai, para salvá-lo, deveria tentar salvar as pessoas que pudesse...

- E acabou se identificando com a medicina?

- Sim, descobri minha vocação por acaso, pensei inicialmente em cursar psicologia, mas o destino foi imprevisível e minha vida tomou um novo rumo...

- O destino é imprevisível... veja onde estamos: acabei conhecendo você, também por acaso, no pronto-socorro e já se passaram quase três semanas... quando me conheceu o que te levou a gostar de mim?

- Ah, você parece honesto, embora seja policial...

- Obrigado pela observação...

Cibele sorriu.

- Me respeita, me respeitou desde o primeiro momento que nos conhecemos, não agiu como os outros...

- Não agi como os outros?

- É, você não agiu como os outros homens – disse a médica, a voz levemente embargada. – Hoje em dia os homens são pragmáticos... primeiro levam a mulher para a cama, depois pensam no que fazem com ela, se abrem o coração ou se continuam a usá-la.

- Diante do que você diz, não tenho argumentos, sou suspeito em declarar qualquer coisa a meu favor – disse o detetive em tom jocoso.

- Não, eu não me refiro a você... você é diferente, foi honesto comigo, não me escondeu nada, antes quis me conhecer, formar uma amizade...

- E não te levei para a cama... – murmurou Macário.

- Ainda não – retrucou Cibele, sorrindo.

O olhar do detetive perdeu-se em devaneios nas pupilas da médica. Ele ficou introspectivo. Cibele desconhecia a duplicidade interior do homem que contemplava. No contato com o submundo, Macário não deixava dúvidas quanto a sua agressividade, sendo temido até mesmo pelos criminosos mais perigosos. Entretanto, quando o assunto era relacionamento com mulheres distintas, o intrépido detetive era sensível e amável. Na escola ele não fora um jovem namorador, mesmo porque não se julgava um rapaz atraente a ponto de conquistas fáceis. Contudo, era objeto de velados comentários, picantes em seu teor, das moças de sua classe. Desde a adolescência optara pela carreira policial e pelo modo como se devotava à profissão, deliberou pela solidão, a fim de não magoar a si próprio e alguma mulher.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

UM HOMEM CHAMADO MACÁRIO (4)

Começou a estalar dos primeiros pingos de chuva nas calçadas e telhados. Minutos depois desabou uma intensa precipitação. Esbranquiçada e ruidosa ao chocar-se com o solo, ela espumava e espalhava-se, transformando-se numa torrente fugaz, a levar todos os resíduos da população que imundava a cidade.

Como todas as noites, exceto na noite de domingo, estava Eugênio Duarte sentado na portaria do Hotel Tejucano. O Duca, como era conhecido desde a adolescência, era um homem rechonchudo e de baixa estatura. Seu rosto tinha contato com uma lâmina de barbear somente quando tinha algum encontro amoroso em vista de acontecer. Vivia constantemente incomodado pela sudorese, fato que o levava a limpar o cenho e os braços com um lenço encardido. Acostumado com o odor desagradável que exalava, tinha a preocupação de ministrar jatos de perfume sobre o corpo, várias vezes por dia, na tentativa de lenificar seu sofrimento pessoal.

Os dias chuvosos tinham um efeito exacerbador sobre o temperamento do desorganizado gerente. A causa de tal exasperação recaía sobre a detestável atividade de impedir o gotejamento nos dois pavimentos do prédio mal conservado. Naquela noite, excepcionalmente, ele estava sozinho. O lacaio que comumente sentava-se num banco de madeira, à frente do balcão da portaria, estava ausente. Sua genitora falecera e ele encontrava-se presente no velório. O corpulento segurança pessoal, além de exercer seu abominável ofício, ainda auxiliava o gerente na atividade que lhe era mais desprezível. Ao lembrar do fato que justificava a falta do assecla, ele ficou mais irritado. Teria que realizar a penosa servidão de afastar móveis e carregar baldes e latas para todos os cantos do hotel, impedindo o corriqueiro estrago causado pelo gotejamento. E para aquele sacrifício, teria apenas a ajuda de uma das arrumadeiras de plantão.

Duca gritou pela arrumadeira que surgiu dos fundos do hotel. Irritadiço, ele determinou-lhe que apanhasse o material necessário e que subisse o quanto antes para ajudá-lo. Calada obedeceu, desaparecendo na escuridão do corredor pelo qual veio até a portaria. Em seguida, ele subiu para o segundo pavimento, locomovendo com inequívoca dificuldade todo o excesso de peso que tinha incorporado ao longo de sua juventude. Em decorrência do gotejamento, percorria todo o hotel, quarto por quarto, dependência por dependência, na procura das antigas e novas goteiras.

Os passos do gerente, que ruidosos elevavam-se do assoalho de madeira, denunciavam sua posição em qualquer lugar que estivesse no hotel. Quando se deslocava pelo corredor do segundo pavimento, uma porta foi aberta, surgindo o homem que solicitou um quarto minutos antes.

- Ei! Preciso de sua ajuda – disse o homem visivelmente nervoso.

O ventrudo gerente encarou-o com surpresa. Não obstante, o movimento febril de clientes e garotas de programa que entravam e saíam do hotel, Duca lembrou-se de sua chegada e da mulher curvilínea que o acompanhava.

- O que você quer?

- Estou com um problema e preciso que me ajude...

O gerente fitou-o com desprezo.

- Eu pago bem – disse o homem.

Duca perscrutou sua aparência, do alto da cabeça aos sapatos de borracha que usava.

- O que precisa?

O homem olhou para os lados e fez um aceno de cabeça para ele, para que entrasse no quarto. O corpo arredondado do gerente seguiu-o, passando pelo umbral da porta. Seus olhos esbugalhados depararam-se com um ambiente ainda em penumbras. Ambos caminharam até próximo da cama.

- O que houve com a garota?

- Exatamente eu não sei... – disse o homem nervosamente. – Ela estava bem, sorrindo... nós bebemos um pouco e depois eu não sei o que aconteceu, ela passou mal e desmaiou...

Duca excitou-se com a nudez da mulher. Seus olhos maliciosos contemplaram a púbis e os seios rijos. Devagar, ele sentou-se na cama e apalpou-lhe o pescoço. O corpo estava pálido e frio. O gerente volveu a cabeça e encarou o homem.

- Cara, essa garota tá morta – disse Duca com naturalidade.

O homem engoliu em seco. Ele já sabia do óbito, mas a confirmação por outra pessoa conscientizou-o da tragédia que aconteceu.

- Essa não – murmurou o amante, meneando a cabeça.

- O que aconteceu? Ela tomou alguma coisa, algum remédio e depois bebeu?

- Eu não sei, eu não sei – retrucou o homem apreensivo. – Tentei animá-la, mas ela não recobrou os sentidos...

- Ela tá morta... e isso é problema... nós temos que tirar esse corpo daqui e desaparecer com ele – disse o gerente levantando-se da cama. – Infelizmente, essas coisas acontecem, todo dia morrem garotas.

- Eu, eu preciso da tua ajuda, eu pago bem – insistiu o homem.

Sinistramente, Duca encarou-o e executando movimentos mecânicos, acendeu um cigarro. Após tragar com intensidade, olhou mais uma vez para o cadáver da mulher, saciando seu encantamento.

- Essas garotas vivem “malhando” em academia e tomam “bombas” para ficar com esse corpo... depois saem na noite e enchem a cara de trago, depois dá nisso...

O gerente fitou-o nos olhos, zombeteiro. Era visível a tensão que dominava o assassino.

- E você quer dar fim no corpo?

Sem hesitar no ato de livrar-se do cadáver, o homem disse:

- Sim, eu não vou conseguir fazer isso sozinho... se usar o meu carro alguém pode ver...

- E você não quer que ninguém saiba o que aconteceu...

- Sim, não quero... eu pago muito bem se me ajudar e manter em segredo esse incidente.

O olhar ganancioso do gerente perscrutou o cadáver e as roupas da mulher, que estavam caídas pelo quarto.

- Esse serviço não vai lhe sair barato...

No mesmo instante, do bolso da calça do homem, surgiu um maço de cédulas que foi para as mãos de Duca. Seus olhos arregalaram-se com o suborno que recebia.

- Isso é só uma parcela – disse o homem, cujo cenho porejava. – Depois de sumir com o corpo nós acertamos o resto.

O maço foi aberto e as notas contadas rapidamente. Duca sorriu ao constatar o valor que lhe aquecia as mãos. Seu apego excessivo ao vil metal expressava-se no cariz alegre que manifestou.

- Pode deixar que eu vou resolver a situação... doutor?

- Sem nomes, é melhor.

- Tudo bem, o senhor é quem manda... fique aqui até eu voltar, não saia daqui, eu volto logo.

A porta do quarto fechou-se atrás do gerente que sorria. Ele caminhou pelo corredor recontando as cédulas do maço. Era um bom dinheiro e significava apenas um sinal para a execução de seus serviços. Certamente conseguiria muito mais do que tinha nas mãos gordachudas. Depois seria fácil extorquir dinheiro do homem que reconheceu. Duca desceu as escadas e foi até seu pequeno escritório, que se localizava no fim do corredor da portaria do hotel. Sentando-se atrás da mesa carcomida, apanhou o telefone e discou um número. Continuava a sorrir, pela satisfação de poder lucrar muito mais do que recebia da garotas de programas que explorava em sua espelunca. O telefone tocou do outro lado. Nada ocorreu. Tocou mais uma vez. Nada. A demora no atendimento começou a irritá-lo. Ele telefonava para Fernando Luiz Lopes, o Taco, perigoso traficante que dividia o poder da boca-de-fumo das Águas Férreas com Mazinho. Devido a dívidas não saldadas, Duca acabou tornando-se mais um dos asseclas do traficante.

- Alô, Taco?

- Quem tá falando?

- É o Duca, patrão...

- E aí, o que foi?

- Aconteceu uma coisa aqui no hotel e eu acho que você gostaria de saber...

- Sem rodeios, o que houve?

- Um meganha subiu com uma garota prum programa e ela morreu.

Taco ficou pensativo por um instante. Ele era um homem cobiçoso cuja mente priorizava o lucro.

- Quem é o sujeito?

- Eu não sei o nome do sujeito, mas eu o conheço, sei que é da polícia, ele tá bem nervoso e pediu a minha ajuda.

- O que ele quer?

- Pediu para desaparecer com o presunto.

- Como a garota morreu?

- Não sei direito, o corpo tá inteiro, não vi sangue nenhum, parece que eles tavam trepando quando ela apagou de repente...

- A garota é gente conhecida? – indagou Taco acendendo um cigarro.

- Ela é muito bonita, eu já vi essa garota em algum lugar, mas não lembro aonde... o meganha tá muito nervoso, aí eu pensei, que o patrão quisesse saber...

O traficante sorriu.

- Segura o meganha que eu tô chegando aí.

As chuvas intermitentes naquele período intensificaram-se, por três dias consecutivos, elevando o nível dos rios. Ocorreram inundações e as fortes torrentes arrastaram e destruíram imóveis e objetos conquistados, com dificuldade, por várias pessoas que residiam às margens do Córrego do Lenheiro. Estes cidadãos ficaram desabrigados, desequilibrados no íntimo, por implacável negligência do governo municipal. A função pública de implementar a limpeza urbana e a drenagem de córregos e riachos fora desprezada há muito tempo atrás. Transcorreram sete dias, até o término das chuvas. Do fundo das águas escuras do Rio das Mortes, expressivo curso d’água na região das Vertentes, emergiu o cadáver da mulher. Devido à maceração, sua identificação só foi possível pela presença de um anel, que permaneceu preso ao corpo. Estranhamente, nele constava o nome da vítima. A mulher chamava-se Suzana e era a filha mais nova do rico e influente prefeito da cidade de São João del Rei.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

CHEIRO DE CEBOLA (II)

D’Arco desceu do carro. Ele segurava um cassetete. A casa diante dele era pequena e muito velha. Não havia portão ou muro e a fachada debruçava-se sobre a calçada da rua. Seu olhar perscrutador confirmou o endereço e ele apertou a campainha desbotada pelas intempéries. Não demorou e a porta de pintura desbotada foi entreaberta. O rosto carrancudo de um homem apareceu.

- O que quer?

- Sou o detetive Jules D’Arco, da Polícia de Poços de Caldas... procuro por uma jovem chamada Carolina... ela mora aqui?

- Polícia?! O que quer com ela? – indagou o homem demonstrando seu desagrado.

- O senhor é o pai de Carolina?

- O que ela fez? Tem intimação?

- Eu preciso falar com ela.

Súbito, o homem fechou bruscamente a porta. O som do choque das madeiras assustou-o. A porta teve seu curso interrompido quando se chocou com o cassetete colocado pelo detetive, um segundo antes do pai de Carolina fechá-la. Ele ficou atônito por um instante, tempo suficiente para que o detetive empurrasse a porta para trás e invadisse a sala. O pai de Carolina caiu no chão e encolheu-se, como um animal acuado.

- Não, não me machuque, por favor!

Empunhando o cassetete e demonstrando disposição para luta, o detetive se aproximou do homem. Naquele momento foi que percebeu que ele era um velho.

- Vou machucá-lo – disse D’Arco mentindo. – A não ser que seja preciso... quem é você?

- Sou, sou o pai de Carolina, mas não me machuque...

D’Arco estendeu-lhe a mão, ajudando-o a levantar-se. Colocou-o sentado numa poltrona de tecido rasgado e seboso.

- Onde está Carolina!? Diga logo!

- Ela, ela está no quarto, mas não machuque a minha filha... ela, ela é tudo que eu tenho...

O detetive volveu a cabeça, olhando para o corredor.

- Qual deles?!

- A porta da esquerda...

D’Arco executou um passo e o velho repetiu:

- Por favor, não faça mal a minha filha... eu só tenho ela.

O detetive fitou-o nos olhos.

- Não tenha medo. Não sou o tipo de pessoa que o senhor está pensando.

D’Arco caminhou depressa pelo corredor. Bateu energicamente na porta que logo se abriu. Apareceu uma jovem de cabelos negros e ondulados, presos no alto da cabeça. Seu rosto era belo e os olhos eram claros. Assustada e com os olhos injetados, ela tentou fechar a porta, sendo impedida pelo detetive.

- Não dificulte as coisas para mim, como seu pai! Eu quero falar com você!

- Quem é você?! Eu não fiz nada! Não tenho nada para falar!!

- Sou da polícia e sei o que você fez!

A janela do quarto estava aberta. Carolina olhou para ela e volveu o corpo numa velocidade que não surpreendeu aquele que a procurava. Ele avançou sobre ela e a segurou pelos braços.

- Não tente fugir!

- Me solta! Me larga!

- Não dê mais desgosto a seu pai do que você já deu!

Carolina não resistiu à força com a qual se deparou. Parou de resistir. Caiu em prantos.

- Não, por favor, não...

- Calma, calma, Carolina... – disse D’Arco percebendo que o quarto recendia a cheiro de cebola.

Ele a ajudou a sentar-se na cama. A jovem mulher chorava muito.

- Eu não fiz nada, nada – disse meneando a cabeça.

- Fez sim... querendo ou não... você matou um homem.

Ela ergueu a cabeça e encarou o policial que a acusava.

- Eu não sei do que o senhor está falando!

- Sabe sim.

- Não, não sei, não tem como me acusar!

- Tenho e vou explicar... fique quieta e não tente fugir...

Carolina fitou-o nos olhos e encolheu-se na cadeira.

- Confirma que trabalha na casa de Heitor e Eva Zenóbio da Silva?

Ela assentiu.

- O filho do casal, Pedro, foi morto ontem à noite, com várias facadas nas costas... verificamos e a casa não apresenta indícios de arrombamento, logo Pedro foi morto por alguém que tinha relacionamento com a família, que tinha facilidade em penetrar na casa, que tinha fácil acesso às dependências internas da residência... quem o matou não tinha o propósito de roubar, visto que nenhum objeto ou dinheiro foi levado do quarto de Pedro ou da casa...

O detetive olhou para o lóbulo da orelha de Carolina.

- E não tenho dúvidas que foi você quem o matou e tenho como provar o que estou afirmando.

- Não, não é verdade, isso não é verdade...

- Então diga: onde perdeu o outro brinco de pérola que está usando?

Carolina engoliu em seco, no mesmo instante que empalideceu.

- Eu, eu...

- Sabe explicar porque o cadáver de Pedro cheira a cebola?... porque os lençóis da cama dele também têm cheiro de cebola?... porque suas roupas, que estão no armário do quarto de empregada na casa dos Zenóbio, também têm cheiro de cebola?

- Eu cozinho muito na casa dos meus patrões... faço muitas comidas com cebola... é isso...

- A faca que encontramos nas costas de Pedro pertence a um conjunto de talheres da casa... com ela você preparava a comida, cortava legumes, carne, cebolas... e pelo fato de usar cebola em abundância na confecção da comida, o odor penetrava nas tuas roupas... e você sabe porque Pedro gostava do cheiro de cebola, porque o cheiro lhe lembrava seu corpo, lembrava os abusos que cometia com você...

Carolina abaixou a cabeça e continuou a chorar.

- Precisava do emprego, para sustentar seu pai, um velho doente... era obrigada a fazer o que Pedro queria... e era abusava por ele... abusada na cama do filho dos patrões... você sofria muito, sentia-se humilhada... e queria vingar-se, vingar-se do homem que a humilhava, que se aproveitava da situação desvantajosa que você vive... porque sabia que você estava refém de uma situação... a faca serviu para sua vingança, para acabar com o sofrimento que não mais suportava...

Ela ergueu a cabeça e encarou o detetive que se mantinha de pé.

- Diga a verdade: matou Pedro Zenóbio da Silva porque o odiava, porque ele abusava sexualmente de você?

Lágrimas e mais lágrimas escorriam pelo rosto de Carolina. Os olhos marejados não escondiam seu ódio.

- Matei, matei sim, matei aquele cachorro, filho da p...!

Ela levantou e com o dedo em riste apontou para a parede, como se indicasse a pessoa de Pedro.

- Aquele desgraçado abusava de mim! Me humilhava, que me chamava de vagabunda!

Ofegante e nervosa, ela fechou os punhos e batê-los na região das coxas.

- E eu não sou vagabunda! Eu nunca fui! Sou moça direita, eu aceitei tudo porque precisava, porque não tenho mãe nem irmãos para me defender, apenas meu pai, e ele é um homem velho, doente, muito doente...

- Eu percebi – retrucou o detetive demonstrando empatia. – Mas porque não denunciou Pedro?

- Olha para mim, olha para essa casa onde moro, para meu pai... somos pobres e eu precisava do emprego, da miséria que eles me pagam...

Ela secava as lágrimas que continuavam a escorrer.

- E eu fiz porque o maldito não parava, eu pedia para parar, mas ele não parava... eu fiz para ele parar... para me vingar daquele filho da p...!

D’Arco ficou calado, observando-a por um instante.

- Seu pai sabe o que você fez?

Ele balançou a cabeça em negativa.

- Tem que explicar a ele tudo o que aconteceu...

- E depois? – indagou Carolina.

- Nós vamos para a delegacia, vamos conversar com o delegado... você vai explicar para ele o que aconteceu na casa dos Zenóbio na noite passada.

A dupla movimentou-se em direção à porta. Carolina estacou. D’Arco encarou sua fisionomia contraída. Ela uniu os punhos finos e ergueu-os em direção a ele.

- Não vai me algemar?

Ele fitou-a nos olhos.

- Acredito que não seja necessário... a sua natureza e o peso da culpa que carrega na consciência já são suficientes para impedi-la de fugir.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

CHEIRO DE CEBOLA (I)

A penumbra cobria-os de uma tonalidade acinzentada. Ele porejava sobre ela. Suas mãos apertavam, possuíam o corpo que se permitia ultrajar. Ele expressava o regozijo. Ela, uma lividez quase cadavérica. A jovem mulher não agia, não reagia. O premir pelo corpo rejeitado arremetia sua essência ao abandono físico, a ausência mental. O desmando despertava-lhe um único sentimento. Noites... várias noites...

O sol tenro do fim da manhã penetrava pelos vidros quadriculados da janela de madeira. O quarto se localizava no segundo pavimento da casa e estava revirado, como se um vendaval tivesse invadido a janela e escapado pela porta aberta. O corpo foi encontrado pelos pais que viajavam e chegaram pela manhã. A cama de casal, no quarto de um jovem solteiro de vinte e seis anos de idade, chamou-lhe a atenção. Aproximou-se, sem esbarrar no perito que fotografava a cena do crime. Outro coletava impressões digitais e mais outro levantava distâncias. Passou a verificar o cadáver seminu, de bruços sobre a cama. O homem assassinado morava com os pais. Tinha porte atlético atestado pelas medalhas penduradas numa das paredes do quarto. Usava apenas as calças do pijama e provavelmente foi morto à noite, atacado enquanto dormia. Embora a bagunça exagerada no ambiente denotasse a ocorrência de luta corporal, a posição do corpo e a faca de lâmina longa, enterrada no torso da vítima, causaram uma estranha sensação no íntimo do detetive. Havia aproximadamente quatorze perfurações não perfeitamente visíveis nas costas do jovem, indicando que o assassino o ferira não apenas para neutralizá-lo, mas que ele fora eliminado por vingança. O detetive caminhou pelo quarto. Uma flâmula do Atlético Mineiro, pendurada na parede, arrancou-lhe um sorriso. Seu olhar percorreu gavetas abertas, roupas reviradas, objetos caídos, tapete, paredes, cômoda, armário, janela e porta. Não encontrou drogas, remédios ou cigarros. Novamente a sensação de estranheza.

- Há quanto tempo ele foi morto? – indagou Jules D’Arco ao perito que coordenava os trabalhos de levantamento.

- Aproximadamente nove ou dez horas.

- Quer dizer que foi morto por volta de uma ou duas horas da madrugada?

- Acredito que sim, talvez um pouco antes.

- Indícios de arrombamento?

- Nada, nem aqui e nem lá embaixo – respondeu um dos peritos.

- Algum objeto furtado?

- Apesar da bagunça e pelo que verificamos, parece que nada foi roubado.

- Perguntaram aos pais?

- Eles verificaram e disseram que parece que nada desapareceu.

D’Arco estava próximo da porta do quarto. Retornou para junto do corpo, para examiná-lo mais uma vez. Junto à cama, agachou-se e analisou o rosto da vítima. Ele não lhe era estranho. Talvez o tivesse encontrado na “esquina dos esquisitos”, ou seja, no cruzamento da Rua Barros Cobra com Santa Catarina. Aquele cruzamento era assim chamado pelo detetive porque sempre que por ali passava se deparava com algum indivíduo de aparência incomum ou sinistra, vestido de cowboy, pizzaiolo, hippie, punk ou emo.

O senso de observação e o olfato fizeram D’Arco se aproximar do corpo estendido sobre os lençóis empapados de sangue. Ele percebeu um odor acentuado de cebola. Naquele instante, notou uma pequena pérola branca, caída atrás do criado-mudo. Levantou-se e perguntou:

- É impressão minha, mas perceberam cheiro de cebola no ar?

- Percebemos. O corpo e os lençóis também estão cheirando.

- Ok, obrigado... ah, vi uma pérola caída atrás do criado-mudo, recolham ela como prova.

Antes de sair do quarto, ele olhou atentamente para a faca cravada nas costas da vítima. Era uma faca comum, usada como utensílio de cozinha. Enquanto caminhava para o andar de baixo, sua mente articulava tudo aquilo que ele viu e “sentiu” na cena do crime.

Um jovem solteiro morto à noite, no próprio quarto, durante a ausência dos pais... uma faca de cozinha, como arma do crime, que foi deixada no corpo da vítima... a cena do crime revirada, indicando possível luta corporal travada entre a vítima e o assassino... nenhum objeto roubado... e um forte odor de cebola no recinto...

D’Arco desceu as escadas e foi para a cozinha. Passou a verificar gavetas e armários. Encontrou um conjunto de talheres cujos cabos eram iguais ao da faca usada no crime. Contou quantas unidades e constatou que faltava uma faca, certamente a usada pelo assassino.

A casa não foi arrombada e o assassino usou uma faca da própria cozinha para cometer o crime...

Ele percorreu o ambiente. Aproximou-se de uma das janelas que tinham vista para os fundos. Avistou um quarto, isolado da casa. Saiu pela porta da cozinha e caminhou até o cômodo. Girou a maçaneta da porta e entrou. Deu alguns passos e parou. Balançou a cabeça.

Cheiro de cebola... cheiro de cebola...

O odor era mais intenso do que no quarto onde o jovem foi morto. Olhou ao redor. O cômodo era pequeno e tinha apenas uma cama, armário, cadeira e uma mesa de madeira. Contíguo, existia um estreito banheiro. As paredes não tinham quadros ou estampas. D’Arco abriu o armário. Encontrou duas calças femininas, algumas blusas e vestidos. Todos com tecido desgastado e de baixa qualidade. Na parte de baixo, havia dois pares de sapatos velhos e um par de tênis deformado e de sola gasta. Não encontrou jóias ou acessórios femininos. Notou novamente o odor de cebola. Retirou um dos vestidos do armário e o aproximou do rosto. O mesmo odor. Fechou o armário e retornou para a casa.

D’Arco encontrou os pais da vítima na sala. A mãe chorava intensamente, abraçada ao pai.

- Senhor...? – indagou D’Arco.

- Heitor...

- Sei que o momento é difícil, mas preciso fazer algumas perguntas...

- O delegado já fez um monte de perguntas – murmurou a mãe, erguendo a cabeça e expondo os olhos marejados.

- Eu sei, eu sei, mas farei apenas mais algumas perguntas... e procurarei ser breve.

O casal assentiu.

- Seu filho tinha namorada?

- Pedro namorava várias garotas... ele não tinha namorada fixa.

- Tinha inimigos declarados ou alguém que, sabidamente, não gostasse dele?

- Não, não sabemos se ele tinha inimigos.

- Embora eu tenha visto medalhas na parede do quarto de Pedro e acredito que ele fosse um desportista...

- Ele praticava corrida de aventura... uma modalidade esportiva que demanda muita resistência...

- Eu conheço esse tipo de esporte.

- Pedro era um atleta...

- Mas, senhor Heitor, mesmo bons atletas podem consumir algum tipo de droga para aumentar sua performance... ainda mais se participam de provas que possuem exercício intensos e prolongados... ele consumia algum tipo de droga ou remédio?

- Não.

- Estava envolvido com pessoas viciadas?

- Não.

- Bebia? Fumava?

- Não... eu já disse que ele era um atleta e dos bons.

- Desculpe... por acaso Pedro se envolveu, nos últimos meses, em alguma briga?

- Não é do nosso conhecimento.

D’Arco coçou a nuca e olhou ao redor.

- A casa de vocês é grande, bonita e deve dar trabalho para limpar... vocês tem jardineiro, faxineira?

- Temos apenas uma empregada.

- Qual o nome dela?

- Carolina.

- Ela trabalha diariamente?

- Sim.

- É jovem, bonita?

- Tem dezoito anos de idade – disse a mãe. – Trabalha conosco há pouco mais de dois anos.

- Por que essas perguntas? – indagou a mãe de Pedro.

- Numa investigação policial precisamos investigar tudo que possa nos levar ao assassino... às vezes, um mero detalhe irrelevante para uma pessoa comum, nos é fundamental para descobrir o autor de um crime.

- Entendemos detetive, pode perguntar o que quiser – disse o pai.

- Quando eu olhava a casa pude ver um quartinho nos fundos... a empregada mora aqui?

- Não, ela somente usa o quarto para se trocar.

- Ela gosta de trabalhar para vocês?

- Parece que sim.

- É uma garota pobre, precisa do emprego?

- Sim, ela é muito pobre.

- Pedro costumava permanecer em casa, sozinho, com Carolina?

- Sim, algumas vezes viajávamos e ela vinha fazer a limpeza diária na nossa ausência e depois ia embora.

- Carolina falou alguma coisa a respeito de Pedro, alguma vez? Reclamou dele em algum sentido?

O pai de Pedro olhou para a mulher e ela respondeu, murmurando:

- Não, não lembro disso... mas eu a achava uma moça triste... talvez por sua família passar por dificuldades.

- Parece que ela era de confiança, estou certo?

- Sim, era de nossa inteira confiança.

- Por acaso tinha as chaves da casa?

- Não, embora fosse de confiança e como Pedro também permanecia em casa quando viajávamos, achamos que não havia necessidade de dar-lhe as chaves de casa, até por questão de segurança.

- Sabe onde ela mora?

- Rua Francisco Resende, 44, no bairro Country Club I.

- Certo... quando fui à cozinha percebi um cheiro... um cheiro acentuado de cebola...

Naquele instante, o pai que respondia às perguntas foi interrompido pela esposa.

- Carolina... ela fazia a comida da casa... fazia a comida com muita cebola... nós detestávamos, sempre pedimos que diminuísse a quantidade de cebola, mas Pedro adorava, ele adorava sentir o cheiro de cebola na cozinha, o gosto na comida... eu não aprovava esse jeito dela, mas aceitava por ver meu filho feliz...

D’Arco fez um instante de silêncio enquanto encarava o casal e disse, levantando-se:

- Acho que por enquanto é suficiente.

- Detetive... a polícia vai descobrir que matou meu filho? – perguntou a mãe.

- Acho que estou mais perto do assassino do que a senhora imagina.

- Não entendo... – disse ela.

- O senhor já sabe quem matou Pedro?! – indagou o pai apreensivo.

- Ainda preciso investigar algumas coisas... em breve terão notícias minhas, até logo.

domingo, 4 de julho de 2010

UM HOMEM CHAMADO MACÁRIO (3)

UM ANO ANTES...

Era uma noite de outono. Poucas pessoas transitavam pelas ruas de São João del Rei coibidas pelo interlúdio das chuvas e pela temperatura, que tendia a diminuir. Aqueles que saíam à noite em busca de lazer e na conquista de um relacionamento confinavam-se no interior de casas noturnas e bares.

O salão era iluminado por intensas luzes que piscavam intermitentes. A música num volume elevado penetrava nos corpos geminados, que se moviam num alvoroço delirante. Acomodados num canto, o casal trocava beijos e olhares lascivos num bailar de sedução. Depois de beber algumas doses na boate K9, localizada no centro histórico, eles partiram à procura de uma alcova. Alegres e excitados pelos momentos que os aguardavam, queriam privacidade.

Há muito haviam soado doze badaladas no grande relógio de parede, que existia no saguão da portaria. O Hotel Tejucano originariamente fora um casarão construído no período colonial. Seu segundo proprietário, um empresário recém-chegado à cidade, intentava torná-lo num lucrativo investimento, mas seu sonho fora uma utopia. Por desconhecer as peculiaridades do bairro, meses depois de sua inauguração, o espectro da falência cobriu o empreendimento. A figura do abandono instituiu-se devido aos sucessivos assaltos a clientes e pela crescente evasão de turistas. A manutenção interna foi comprometida pela demissão de funcionários e o aumento progressivo dos gastos com concessionárias estatais. A bela fachada muito sofreu, tendo sua iluminação reduzida, devido à contenção de energia elétrica. O tempo e o vento, também contribuíram, incumbindo-se de torná-la acinzentada, por uma vintaneira camada de poeira e limo. A ascendente decadência conduzia o estabelecimento à falência, mas seu último proprietário cedeu às pressões e permitiu que o lugar passasse a ser freqüentado por pessoas do baixo meretrício.

A aparência do hotel ou a clientela que o freqüentava pouco lhes importava. O casal subiu as escadas de madeira, ruidosas e carcomidas, dirigindo-se para o segundo pavimento, convoluto em confidências e sorrisos radiantes.

A penumbra provia o quarto de lugubridade. As paredes eram esmaecidas e o piso escalavrado. Recendia um olor de mofo, exalado pelas cortinas desbotadas ou dos poucos móveis espectadores de tantos coitos. Cada peça da restrita mobília fora testemunha ocular de alguma ação ou movimento amoroso. O abajur, quebrado em uma de suas partes, talvez presenciara uma carícia mais profunda ou o velho armário, sem chaves, acolhera uma palavra obscena. Mas, inegavelmente, a cama de madeira fora a principal testemunha, de muitos relacionamentos, ouvindo todos os sussurros e suportando todas as posições engendradas pelos incontáveis amantes que por ali passaram.

Os lindos cabelos loiros da mulher cintilavam, mesmo sob a penumbra do quarto. O homem bem-apessoado que ela conheceu, numa das boates que freqüentava, retirou-lhe a blusa, com prudência e habilidade. Os seios rijos preencheram suas mãos. O calor e a suavidade da pele macia fustigaram seu estro. Sem que ele pedisse, ela mesma alijou-se do restante das roupas, expondo toda a sua nudez. Os olhos do homem tocaram o corpo lasso que despendia uma beleza encantadora. Quando se conheceram, fizeram sexo várias vezes, envoltos numa selvageria até mesmo desconhecida por ambos. Este fato dominou os sentidos do homem, manietando-o num fascínio que se repetia em todos os momentos em que estavam sozinhos. Para a mulher, ele era um demônio que ao estar dentro de seu corpo, apertando suas tenras carnes, a levava à loucura como nenhum outro. Mas seu cabal delírio sexual só ocorria quando ela entregava-se às drogas.

A vida e a mente da bela jovem tomaram um caminho ruinoso quando ela sentiu que seus pais, preocupados com os próprios compromissos pessoais, deixaram-na à margem dos fatos e anseios da família. O vício principiou pela maconha, droga mais comum e fácil de obter. Com o passar do tempo, a jovem passou a apresentar um comportamento inusitado. Momentos de ansiedade e ausências indefinidas foram algumas das mudanças verificadas. A rica família passou a desconfiar de sua integridade na constatação do desaparecimento de objetos da família e não muito mais tarde veio a descoberta fatal que ela estava inserida no mundo das drogas. Foi tentada uma internação clínica, a título de recuperá-la, mas a ação foi infrutífera. O dinheiro anteriormente disponibilizado a ela, sem restrições, passou a ser severamente controlado. Esse ato deliberado dos pais, como medida paliativa ao problema, só gerou um colérico conflito familiar, deixando-a em crise de abstinência. A necessidade premente da droga animou-a a fazer qualquer coisa para consegui-la. Num momento de aflição extrema, passou a usar o corpo bem fornido como moeda de troca, na saciedade do vício. Numa de suas tentativas de obter a droga, conheceu seu ardoroso amante e foi por ele apresentada aos comprimidos de ecstasy – a droga afrodisíaca para o sexo sem fronteiras.

O vento frio, em rajadas sucessivas, açoitava a janela na tentativa incansável de penetrar no quarto. Como a natureza comportava-se lá fora pouco importava aos amantes absortos em intensa excitação. Sobre o lençol amarelado, o homem beijava o corpo da mulher efusivamente, na contemplação de suas curvas. Ela suspirava e dizia obscenidades ao toque afoito de sua boca e de suas mãos. O roçar dos seios voluptuosos e quentes no tórax desnudo do homem excitava-o cada vez mais. Línguas nervosas passaram a umedecer as partes pudendas, numa libidinagem irrefreada. Súbito, a mulher parou de excitá-lo.

- Eu quero a droga.

O homem sorriu, levantando-se da cama. Caminhou até o casaco que estava pendurado no espaldar de uma cadeira. Um pequeno frasco saiu de um bolso para as mãos da bela mulher.

- Tome.

- O que é isso? – retrucou a mulher.

- É ecstasy, meu amor... o que haveria de ser?

A mulher esboçou um sorriso, meneando os cabelos loiros.

- Tá de sacanagem comigo?

- Não, meu amor, é claro que não.

- Então o que é isso?

- É ecstasy, da melhor qualidade... ecstasy puro...

O homem deitou-se novamente ao lado da mulher, cruzando as mãos em torno da nuca. A mulher observou atentamente o frasco contendo o líquido transparente e encarou o amante.

- É ecstasy mesmo?

- Mas é claro que é.. pode tomar, sem medo, eu já tomei...

- Tem o mesmo efeito? – perguntou a mulher ainda indecisa.

- Claro que tem – afirmou o homem sorrindo. – É até melhor, mais rápido, mais eficaz... não confia em mim?

- Claro que confio, mas...

- Mas o quê? Pode tomar, meu amor...

A mulher ficou olhando para o frasco demoradamente.

- Eu não sei...

- Olha, meu amor, confie em mim, eu já disse que tomei e é muito bom...

- Mas...

- Você vai ficar numa muito melhor, pode tomar sem medo, mas bebe só um pouco, só um pouco...

A mulher continuou a olhar para o frasco.

- Vai bebe, bebe...

A mulher encarou o amante mais uma vez.

- Bebe...

O frasco elevou-se nas mãos da mulher e foi até seus lábios. A metade do que o vidro continha desceu por sua garganta. Ela sorriu com regozijo.

- Agora é você... para ficarmos legal – disse a mulher.

O homem recebeu o frasco das mãos delicadas e bebeu um pequeno gole, deixando aquele sobre um dos criados-mudos. Ele bebera a droga sob aquela forma anteriormente, numa quantidade muito reduzida, desconhecendo seus reais efeitos. Sorridente, o homem agarrou a loira vigorosamente e eles voltaram aos beijos e carícias. A mulher gemia aos afagos mais profundos quando manifestou uma sensação de tontura. Em seguida, ela levou a mão ao peito, dizendo sentir um mal-estar. O homem surpreendeu-se. A mulher afastou-se dele e de sua boca escapou um gemido. O corpo em formosura retesou-se, caindo sobre a cama em espasmos. Ela balbuciou alguma coisa ininteligível. O homem ficou apreensivo com o que estava acontecendo. O corpo da mulher moveu-se numa torção patética e ficou inerte. Assustado, o homem avançou sobre ela. Seus olhos estavam arregalados. A boca ficou semi-aberta e a palidez cadavérica que surgiu em seu rosto, alastrava-se por todo o corpo. O homem procurou a pulsação e não havia nenhuma. Tentou ouvir os batimentos cardíacos. O coração fenecera.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

UM HOMEM CHAMADO MACÁRIO (2)

Mazinho fugia em desabalada carreira. Numa brusca mudança de direção, penetrou num beco longo e estreito. A penumbra cobria a ruela. O chão irregular era um punhado de pedras que se espalhava por uma superfície barrenta. Da camada viscosa e esverdeada que cobria as paredes do beco emanava uma umidade gélida e fedorenta. Chegando ao fim do beco, o traficante parou de repente. Ofegante, constatou que findavam as moradias das Águas Férreas. Furioso, olhou para trás e depois para frente. Num piscar de olhos percebeu que foi surpreendido pelo destino, que não era por ali que desejava fugir para as alturas da Serra do Lenheiro. O descampado que estava a sua frente e que o separava de seu objetivo não era extenso, mas não permitiria avançar para as alturas da serra sem expor-se, em demasia, a seus perseguidores. O cenho a porejar, ele volveu a cabeça e olhou para o assecla que o defendia, empregando uma metralhadora com toda a intensidade que lhe era possível. Em seguida, olhou novamente para a serra. A polícia não ousaria chegar lá, por dois motivos. O acesso era relativamente difícil, dependendo de para onde se ia, fato constatado até mesmo pelos montanhistas da cidade. Aquele que ocupasse as referidas alturas teria domínio de vistas e fogos sobre os caminhos que acessavam a serra. Olhou para o lado direito e divisou uma moradia isolada.

O barraco era uma pequena obra artística à mendicidade. Isolado no campo esverdeado, exibia-se como um dos ícones perpetuadores das mazelas imemoriais da pobreza. Um grande aglomerado de tábuas apodrecidas e chapas metálicas enferrujadas constituía suas finas paredes. O telhado era outro aglomerado, também de tábuas, coberto por pedaços de lona puída, que tentavam inutilmente impedir a chuva que permeava toda a moradia. As aberturas reduziam-se a uma porta e a três janelas, sendo duas frontais e uma localizada no fundo. Internamente existia um quarto e uma cozinha. O piso era de tábuas velhas, como as que compunham as paredes. Aquelas cobriam o solo argiloso, na tentativa ineficaz de evitar a exposição de pés descalços à umidade constante. Não existiam móveis, mas sim caixas e objetos recolhidos no lixo, que supostamente atendiam as necessidades primárias dos que ali viviam.

Novos disparos. Um grito arrastou para o purgatório aquele que protegia a vida de seu patrão. Sozinho, Mazinho viu-se num impasse. Havia dois policiais obstinados em seu encalço. Acuado, ele precisava fugir, esconder-se. Necessitava decidir e deveria ser rápido. O som do tiroteio entre policiais e traficantes reduzia-se, indicando que o embate lá embaixo logo terminaria. A operação policial seria coroada de êxito com a prisão efetiva do fugitivo traficante. Num movimento fugente, ele correu em direção ao barraco, invadindo-o. Sua ação, apesar de rápida, foi percebida pelos policiais que o perseguiam.

Era incessante o estrondear dos trovões. Relâmpagos rutilavam, iluminando as sombras mais obscuras. Os detetives Macário e Castilho corriam, mantendo a silhueta baixa. Armas em punho e com as costas premidas contra as paredes, eles estacaram no fim do beco. O desconforto que a umidade que efluía do chão e do lodo que cobria quase tudo em torno deles foi percebida instantaneamente. Ofegantes e transpirando em abundância, devido ao esforço físico prolongado no combate, os dois policiais entreolharam-se.

- O filho da mãe correu para aquele barraco! – disse Castilho empunhando uma metralhadora. – E agora?!

Os olhos escuros do outro detetive perscrutaram o lugar. Eduardo Macário era um homem bem-apessoado, de compleição atlética. Dinâmico e intrépido, ele respondeu:

- Acredito que ele está sozinho... vamos abordar o barraco e checar se há alguém...

- Ok, vamos lá.

A dupla avançou, protegendo-se atrás de todo tipo de cobertura que encontrava. Segundos depois, parou a alguns metros da residência. Macário ficou atrás de uma árvore e Castilho escondeu-se por trás de um galão d’água que servia de cisterna.

- Mazinho! Mazinho! – gritou Castilho. – Você está preso! Não adianta mais fugir! Jogue suas armas para fora e saia com as mãos na cabeça... agora!

Não houve nenhuma resposta ativa. Uma constante brisa calorosa fazia-os transpirar cada vez mais. Ouvia-se o farfalhar das copas das árvores e a fuga inquietante de pássaros e animais, que pressentiam a tempestade onímoda que raiava.

- Mazinho! Jogue suas armas para fora e saia agora! – repetiu o policial.

Nada, nenhuma resposta à ordem de rendição.

- Ele deve estar sozinho porque não apareceu com nenhum refém... – observou Castilho, apontando sua metralhadora para uma das janelas do barraco.

Macário assentiu com um aceno de cabeça.

- Mazinho, renda-se! – gritou Macário. – Você não tem como escapar, saia com as mãos na cabeça!

Nada. Apenas o ressoar dos trovões e o luzir dos relâmpagos. Castilho encarou seu colega.

- Vamos invadir – ordenou Macário.

Incontinenti, os dois avançaram correndo. Castilho parou a alguns metros da porta do barraco, atrás do tronco de uma árvore. Protegido pela metralhadora do colega, Macário abordou a moradia pela lateral. Empunhando uma pistola e com as costas junto à parede, ele avançou, devagar, posicionando-se junto à porta. Fitou Castilho, executando um vivo aceno de cabeça. Em seguida, chutou a porta com força, arremessando-a para trás. O movimento da abertura em torno de seu eixo foi subitamente interrompido, deixando-a entreaberta.

Momentos de tensão.

Macário transpirava profusamente. O perigo estava à espreita. Premendo as costas contra a porta, numa inarredável determinação, ele apontou a pistola para o interior do barraco. O lugar era um misto de sombras e claridade. Parecia-lhe que as trevas que encobriram a cidade de São João del Rei ali estavam em colusão. A mão que empunhava a pistola vasculhou veloz, orientada pelo olhar vigilante, o lugar onde estava escondido o traficante.

Nada.

Mais uma vez o cano da pistola vasculhou o lugar. Algo se moveu!

Repentinamente, prorrompeu o alarido de crianças chorando. Macário concentrou sua visão e percebeu, a alguns passos, uma mulher esquálida agarrada a seus seis filhos pequenos. Todos estavam acomodados no fundo do quarto. O olfato do detetive logo se sensibilizou com o odor de urina e madeira umedecida que catingava do interior do barraco. A voz rouca e suplicante da mulher destacou-se na gritaria infantil. Temerosa, ela passou a clamar pela misericórdia daquele que tinha a morte nas mãos. Não desviando a arma que empunhava, ele gritou:

- Onde está o Mazinho?! Onde está o Mazinho?!

Naquele instante, desabou uma inclemente e fria precipitação.

O ruído de gritos de seres indefesos, chorando, suplicando piedade, impedia qualquer conversação.

- Saiam daí agora! Saiam! Rápido! Saiam! – ordenou Macário.

A intensa chuva engolfou a todos. A tempestade que se deflagrou era assinalada por terríveis trovões e fulgurantes relâmpagos. Torrentes pluviais passaram a arrastar tudo que encontravam em seu caminho. A natureza estava em desatino.

A primeira criança, muito magra, saiu correndo. Ela chorava muito. No momento que passou pela porta foi atacada pela chuva. Segui-se mais uma. A terceira quando saía, tropeçou no pé do detetive. Ele distraiu-se por um segundo.

Erro.

Um único momento de distração para um policial pode lhe trazer conseqüências fatais.

No desvão à retaguarda da porta de madeira, insidiosamente surgiu a figura de Mazinho. O som explosivo e seco repercutiu até o fundo do cérebro do detetive. O poder de impacto da munição arremessou-o violentamente para fora do barraco, fazendo-o cair de costas no chão enlameado. A besta selvagem proferiu a sentença de morte do homem da lei. Macário ficou zonzo pela dor repentina que invadiu seu corpo. A forte chuva embaciava sua visão. Os reflexos ficaram lentos. A mente ficou confusa. Qualquer movimento era um ato difícil e desconfortável de executar. O tiro que o atingiu engendrou uma falta de energia. Ele queria levantar, mas faltava-lhe vontade.

Agindo rápido, Mazinho aproveitou o êxito de seu traiçoeiro ataque, e avançou sobre o detetive. Cego pelo ódio que o dominava, o traficante passou a atirar contra o policial. Mas negligentemente expôs a silhueta ao alcance da arma de Castilho. Movido pela adrenalina que irrigava suas entranhas, Castilho atirou contra ele, esvaziando o carregador de sua metralhadora. Sulcos e esguichos de sangue surgiram no tórax alvejado, fazendo o corpo perder a rigidez. A boca semi-aberta de Mazinho emitiu um grunhido. Torso em si, ele tombou para trás, caindo no solo lamacento.

Tudo aconteceu rápido demais, muito mais rápido do que se pudesse imaginar. Quando a mente de Castilho compreendeu o que havia ocorrido, descortinava-se à sua frente um quadro desolador. Adiante dele, a poucos metros, estavam caídos, sob a chuva torrencial, os corpos inertes de dois homens. Suas vidas tinham originariamente linhas tão distintas, como a noite e o dia, mas eles estavam ali, próximos como nunca tinham estado até então. Não refeito do momento de estresse, o detetive saiu correndo. Chovia copiosamente e ele afundava os pés nas poças que encontrava pelo caminho. Num movimento enérgico, lançou-se de joelhos na lama pegajosa, parando junto ao amigo.

- Macário?! Macário?! – gritou Castilho, sacudindo-o pelo colete à prova de balas.

Castilho apalpou o corpo do amigo na busca de ferimentos, momento que descobriu em seu ombro uma nódoa avermelhada que se expandia. Sua outra mão tocou a jugular. A pulsação estava alta! Ele estava vivo!

- Macário?! Macário?! – gritou novamente Castilho.

Numa pachorra somente vista depois de uma noite insone, regada a álcool, o detetive moveu a cabeça e abriu os olhos. Em seguida ele tossiu. Mitigado, Castilho sorriu.

- Que susto! Eu pensei que você...

- Não... ainda não...

Ainda que resoluto em seu desejo, a sobrecarga emocional desequilibrou o controle dos movimentos de Mazinho. Ele acertou um único tiro no ombro do policial; depois do primeiro disparo que atingiu o colete à prova de balas. Todos os demais disparos foram imprudentemente desperdiçados pelo traficante.

O pai de Macário foi um policial competente e dedicado ao cumprimento da lei. Presenteou o filho com o colete de origem americana quando este ingressou na força policial. Num infortúnio do destino, foi traiçoeiramente assassinado por um traficante de drogas, quando estava de folga. O fato influenciou decisivamente a vida e o destino do jovem Eduardo, que anos depois ingressou na corporação.

Trovões com sua melodia macabra rumoravam, rompendo o ruído da precipitação intensa. As trevas, difusas e amalgamadas, eram inquietadas pela luminosidade de relâmpagos que não davam trégua. A chuva fria e torrencial encharcava as roupas dos dois policiais. Zonzo e tíbio, pelo forte impacto do projétil disparado pelo traficante, Macário levantou-se, auxiliado pelo amigo.

- Ainda bem que esse vagabundo tem uma péssima pontaria e não me acertou na cabeça...

- Sorte sua – disse Castilho com um leve sorriso. – Vamos, vamos voltar, você precisa ir para o hospital.

Castilho colocou o braço do detetive ferido por cima de seu ombro e passou a ajudá-lo a caminhar. Antes de afastar-se do cadáver do traficante, Macário olhou para Castilho e disse:

- Se não fosse você, eu não estaria vivo nesse momento...