A pequena cidade, outrora denominada Arraial de Nossa Senhora do Pilar, diante do olhar de qualquer um, definia-se como um conjunto colorido de edificações mal conservadas. Dividida pelas águas canalizadas do Córrego do Lenheiro, revelava casas e prédios incrustados no talvegue e nas encostas alcantiladas que a circundavam. Num de seus extremos apresentava um bairro chamado de Águas Férreas. O designativo atípico da localidade remontava à descoberta e presença de grande quantidade de minério de ferro na região. Dos tempos que há muito se foram pouco restou no local por onde paulistas e forasteiros – estes apelidados de emboabas – acorreram. O lugar era formado por casas e barracos que se acotovelavam desordenadamente ante o pauperismo que os envolvia, no avançar da ingremidade das encostas da Serra do Lenheiro. Em verdade, com o advento da impunidade, traficantes infiltraram-se no local e a subserviência assinalou o cotidiano das famílias que ali residiam, transformando o bairro num lucrativo ponto de venda de drogas. As forças legais passaram a evitar o local em prudência às possíveis reações violentas dos integrantes do tráfico. Entretanto, quando o velado armistício estabelecido há um tempo não lembrado por todos era rompido, por qualquer razão, desencadeava-se um embate atroz e sangrento entre as partes.
Uma camada empolada e acinzentada de nuvens avançava, ruidosa e célere, pela cimeira da Serra do Lenheiro, destacável conjunto topográfico na cidade de relevo acidentado. Espantosos trovões ribombavam a expulsar todos os outros sons nas imediações. Milhares de folhas ressequidas eram arrastadas por intermitentes e poderosas rajadas de vento. A precocidade de um inesperado crepúsculo inquietava a todos. A massa úmida e plúmbea rastejava suas sombras por sobre a cidade e os corações de seus moradores. Desaparecia a paz no espírito daqueles que viviam no estreito vale. Emergia o temor que, turbulento, percorria suas artérias, devido à desarmonia entre as forças da natureza. O medo agravava-se ante o lampejar desordenado e sucessivo de relâmpagos em todas as direções, descrevendo circunvoluções pelo firmamento. Num bater macabro, janelas e portas chocavam-se contra suas molduras, num combate clamoroso das madeiras. Nas ruas e calçadas o caos estabeleceu-se, num vai-e-vem frenético de pessoas e veículos, em fuga da tempestade que se aproximava.
Em meio aquele presságio temporal surgiram em velocidade surpreendente viaturas policiais que selaram os acessos às Águas Férreas. O temor ascendeu. Dos veículos estacionados estrategicamente em barricadas, desembarcaram em formação quase tática, vários policiais. Como um enxame exasperado de abelhas, os semblantes embrutecidos passaram a avançar rapidamente pelas ruas e becos da boca-de-fumo. Fortemente armados, vasculhavam casas, barracos, cantos. Onde houvesse uma sombra, ali um cano metálico estava a farejar.
No efetivo que se desdobrava no terreno, uma dupla de homens lançava-se, impulsionada por sua determinação e coragem. Em seus corações, um propósito. Procuravam pelo perigoso traficante Edimar de Souza Brandão, vulgo Mazinho das Águas Férreas. Fugidio às ações repressivas da polícia carioca e oriundo do Comando Vermelho, facção criminosa do Rio de Janeiro, o traficante fora acolhido pelo chamado Comando das Águas Férreas ou CAF. Este era uma das organizações criminosas que controlavam o tráfico de drogas na cidade de São João del Rei. Mazinho em pouco tempo, devido a sua arrogância e impiedade, passou a ser temido pelos moradores da cidade e traficantes de grupos rivais. A malevolência de seus atos passou a comprometer a segurança e a ordem públicas, afetando alguns setores, como o turismo. A evolução dos fatos impingiu uma ação decisiva da polícia local.
O cerco aos soldados do tráfico e moradores deixou todos perplexos. Aquela planejada ação ao principal ponto de venda de drogas da cidade certamente redundaria em sangrenta batalha. Evidentemente uma ação incomum que indicava uma inexplicável falha na contenção – sistema de segurança do tráfico de drogas. Os olheiros – adultos ou crianças cooptadas pelo tráfico, que vigiavam os movimentos em torno da boca-de-fumo – haviam falhado em sua missão. Deixaram de alertar tempestivamente a presença policial. Como efeito, no avançar dos policiais, surgiram rostos velados pelo medo a correr em desvario na busca de proteção. Homens da lei corriam num louco ziguezaguear pelas ruas estreitas e becos úmidos. Eles avançavam sinuosamente para o interior da favela horizontal, numa demonstração orquestrada de um ataque coordenado de forças.
Repentino como um dos luzentes raios que esquivos disparavam pelo céu, um estampido sibilou longínquo, figadal. O estrepitoso som denunciou o disparo de um potente fuzil dotado de mira telescópica. Um corpo vergou, caindo ruidosamente junto à sarjeta de uma das vielas. Gritos. Homens acudiam o morto. Sangue aos borbotões. Um policial foi abatido, ferido no cenho. A morte ascendeu das profundezas da terra e obliterou ruidosamente a primeira vida. No instante seguinte, irrompeu numa prematuridade indesejável o portento ataque. Instituiu-se um intenso tiroteio e com ele veio a lume o pânico. Moradores subservientes ao tráfico passaram a fugir diante do terror convoluto. O espocar caótico de rajadas de projéteis flamejantes, de ambos os lados, passou a destruir tudo o que encontrava pelo caminho, edificando um rastro decadente. Ainda era dia, fim da tarde, contudo a escuridão espreitava nos becos catingosos do bairro. Uma exuberância de disparos era ouvida. Policiais impulsionados por densa adrenalina, porejando sob as vestes, atiravam ferozmente, avançando pelo labirinto mísero e úmido de moradias. Sombras. Gritos. A cada passo executado tresandava um odor fétido, mescla de esgoto e menarquia, que lhes invadia as narinas e as profundezas do espírito.
Mazinho, nervosamente, através do rádio comandava as ações dos soldados do tráfico, praguejando e determinando enérgica reação. Disparos. Inúmeros disparos estourando janelas, portas, penetrando paredes, no impacto fulminante de projéteis. Homens, mulheres e crianças corriam difusos, fustigados pelo pavor. Dor. Gritos. Manchas e respingos de sangue começavam a macular as Águas Férreas, cuja configuração mudou, tornando-se num campo de batalha. Corpos de traficantes e de homens da lei começaram a ornar ruas, becos e vielas, abatidos pelo fogo intenso. Das mãos de jovens delinqüentes, granadas adquiriram trajetória por cima de telhados e lajes. Explosões. Gritos. Disparos. Homens, mulheres e crianças, com semblantes atemorizados continuavam a fugir, desesperados, em busca de proteção. Muitos não chegavam à redenção almejada. O fogo das armas consumia-lhes a vida, num niilismo chocante. Barracos desabavam. Inocentes morriam. Ignominiosa destruição. Mulheres agarravam-se às suas crianças e choravam, diante do terror que se espalhava.
Fogo e fumaça. Dor e desgraça. Traficantes atiravam, resistiam, emboscavam. Policiais tombavam, sucumbindo à insidiosa ação dos criminosos. Sangue. Gritos. Dor. A morte materializava-se numa incongruência atroz nos corpos que feridos, estatelavam-se no chão, de onde o sangue purgava, manchando o solo por onde caíam. Cadáveres enodoados, esparramavam-se por todos os lados, transfigurando a natureza do bairro.
O cerco policial ao perigoso traficante fechava-se a cada instante. A polícia avançava, bravia. O poder da massa imperava. A tensão superlativa dominava Mazinho, que percebia que sua liberdade estava ameaçada, como nunca ocorrera anteriormente naquela pequena cidade onde se homiziara. Ele transpirava, gritava impropérios. Seus dedos apertavam continuamente o gatilho das pistolas que conduzia. Seus asseclas foram tombando ou passaram a fugir, devido à perda de homens e à falta de munição. Embora tivessem bom poder de fogo, não mais resistiam. A palavra de ordem era retirada. A boca-de-fumo fazia comércio, não guerra.
O traficante continuou a fugir para o interior das Águas Férreas, alçando alturas onde casas e barracos rareavam-se. Ele corria, protegido por um par de asseclas que tentavam retardar o avanço de dois policiais que estavam em seu encalço. Suando em abundância, seu corpo começava a manifestar cansaço. Ele pouco dormiu na noite anterior, na qual bebeu durante quase toda a madrugada, bailando seus sapatos em torno de uma mesa de bilhar. Desesperado, abria portas, pulava janelas, fugindo das garras da Justiça, que avançava intolerante. Num movimento imprudente, sua calça rasgou numa das pernas; em outro, perdeu o relógio, no romper da pulseira quando esta se prendeu numa maçaneta. Seu espírito estava em fúria, devido à iminência de perda da liberdade. Os dois asseclas mantinham contato com os policiais pelo fogo, quando um tiro transpassou a cabeça de um deles. Uma golfada sanguinolenta projetou-se e pedaços do encéfalo emergiram da parte posterior do crânio. O corpo caiu, inerte. Mazinho e o outro criminoso nem olharam para o companheiro morto. No tráfico de drogas não existe solidariedade, existe benefício. Um cadáver não serve a ninguém, nem à viúva, que passará a servir aos desmandos do tráfico, de uma forma ou de outra. Se jovem, servirá aos prazeres carnais do patrão e de seus capangas mais próximos. Se velha, será serviçal, cozinheira da boca, mensageira ou qualquer outra servidão menos relevante. Mazinho e o assecla continuaram a subir, fugindo, atirando, protegendo-se atrás de tudo que encontravam pelo caminho. Lá embaixo, o espocar dos projéteis começava a diminuir. A força dos soldados do tráfico tornou-se débil e eles espalharam-se, fugindo para outros bairros próximos, não mais reagindo ao fogo intenso das armas dos policiais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário