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"A literatura insinua e coloca questões muito mais do que as responde ou resolve."

-------------------Milton Hatoum, escritor brasileiro



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domingo, 4 de julho de 2010

UM HOMEM CHAMADO MACÁRIO (3)

UM ANO ANTES...

Era uma noite de outono. Poucas pessoas transitavam pelas ruas de São João del Rei coibidas pelo interlúdio das chuvas e pela temperatura, que tendia a diminuir. Aqueles que saíam à noite em busca de lazer e na conquista de um relacionamento confinavam-se no interior de casas noturnas e bares.

O salão era iluminado por intensas luzes que piscavam intermitentes. A música num volume elevado penetrava nos corpos geminados, que se moviam num alvoroço delirante. Acomodados num canto, o casal trocava beijos e olhares lascivos num bailar de sedução. Depois de beber algumas doses na boate K9, localizada no centro histórico, eles partiram à procura de uma alcova. Alegres e excitados pelos momentos que os aguardavam, queriam privacidade.

Há muito haviam soado doze badaladas no grande relógio de parede, que existia no saguão da portaria. O Hotel Tejucano originariamente fora um casarão construído no período colonial. Seu segundo proprietário, um empresário recém-chegado à cidade, intentava torná-lo num lucrativo investimento, mas seu sonho fora uma utopia. Por desconhecer as peculiaridades do bairro, meses depois de sua inauguração, o espectro da falência cobriu o empreendimento. A figura do abandono instituiu-se devido aos sucessivos assaltos a clientes e pela crescente evasão de turistas. A manutenção interna foi comprometida pela demissão de funcionários e o aumento progressivo dos gastos com concessionárias estatais. A bela fachada muito sofreu, tendo sua iluminação reduzida, devido à contenção de energia elétrica. O tempo e o vento, também contribuíram, incumbindo-se de torná-la acinzentada, por uma vintaneira camada de poeira e limo. A ascendente decadência conduzia o estabelecimento à falência, mas seu último proprietário cedeu às pressões e permitiu que o lugar passasse a ser freqüentado por pessoas do baixo meretrício.

A aparência do hotel ou a clientela que o freqüentava pouco lhes importava. O casal subiu as escadas de madeira, ruidosas e carcomidas, dirigindo-se para o segundo pavimento, convoluto em confidências e sorrisos radiantes.

A penumbra provia o quarto de lugubridade. As paredes eram esmaecidas e o piso escalavrado. Recendia um olor de mofo, exalado pelas cortinas desbotadas ou dos poucos móveis espectadores de tantos coitos. Cada peça da restrita mobília fora testemunha ocular de alguma ação ou movimento amoroso. O abajur, quebrado em uma de suas partes, talvez presenciara uma carícia mais profunda ou o velho armário, sem chaves, acolhera uma palavra obscena. Mas, inegavelmente, a cama de madeira fora a principal testemunha, de muitos relacionamentos, ouvindo todos os sussurros e suportando todas as posições engendradas pelos incontáveis amantes que por ali passaram.

Os lindos cabelos loiros da mulher cintilavam, mesmo sob a penumbra do quarto. O homem bem-apessoado que ela conheceu, numa das boates que freqüentava, retirou-lhe a blusa, com prudência e habilidade. Os seios rijos preencheram suas mãos. O calor e a suavidade da pele macia fustigaram seu estro. Sem que ele pedisse, ela mesma alijou-se do restante das roupas, expondo toda a sua nudez. Os olhos do homem tocaram o corpo lasso que despendia uma beleza encantadora. Quando se conheceram, fizeram sexo várias vezes, envoltos numa selvageria até mesmo desconhecida por ambos. Este fato dominou os sentidos do homem, manietando-o num fascínio que se repetia em todos os momentos em que estavam sozinhos. Para a mulher, ele era um demônio que ao estar dentro de seu corpo, apertando suas tenras carnes, a levava à loucura como nenhum outro. Mas seu cabal delírio sexual só ocorria quando ela entregava-se às drogas.

A vida e a mente da bela jovem tomaram um caminho ruinoso quando ela sentiu que seus pais, preocupados com os próprios compromissos pessoais, deixaram-na à margem dos fatos e anseios da família. O vício principiou pela maconha, droga mais comum e fácil de obter. Com o passar do tempo, a jovem passou a apresentar um comportamento inusitado. Momentos de ansiedade e ausências indefinidas foram algumas das mudanças verificadas. A rica família passou a desconfiar de sua integridade na constatação do desaparecimento de objetos da família e não muito mais tarde veio a descoberta fatal que ela estava inserida no mundo das drogas. Foi tentada uma internação clínica, a título de recuperá-la, mas a ação foi infrutífera. O dinheiro anteriormente disponibilizado a ela, sem restrições, passou a ser severamente controlado. Esse ato deliberado dos pais, como medida paliativa ao problema, só gerou um colérico conflito familiar, deixando-a em crise de abstinência. A necessidade premente da droga animou-a a fazer qualquer coisa para consegui-la. Num momento de aflição extrema, passou a usar o corpo bem fornido como moeda de troca, na saciedade do vício. Numa de suas tentativas de obter a droga, conheceu seu ardoroso amante e foi por ele apresentada aos comprimidos de ecstasy – a droga afrodisíaca para o sexo sem fronteiras.

O vento frio, em rajadas sucessivas, açoitava a janela na tentativa incansável de penetrar no quarto. Como a natureza comportava-se lá fora pouco importava aos amantes absortos em intensa excitação. Sobre o lençol amarelado, o homem beijava o corpo da mulher efusivamente, na contemplação de suas curvas. Ela suspirava e dizia obscenidades ao toque afoito de sua boca e de suas mãos. O roçar dos seios voluptuosos e quentes no tórax desnudo do homem excitava-o cada vez mais. Línguas nervosas passaram a umedecer as partes pudendas, numa libidinagem irrefreada. Súbito, a mulher parou de excitá-lo.

- Eu quero a droga.

O homem sorriu, levantando-se da cama. Caminhou até o casaco que estava pendurado no espaldar de uma cadeira. Um pequeno frasco saiu de um bolso para as mãos da bela mulher.

- Tome.

- O que é isso? – retrucou a mulher.

- É ecstasy, meu amor... o que haveria de ser?

A mulher esboçou um sorriso, meneando os cabelos loiros.

- Tá de sacanagem comigo?

- Não, meu amor, é claro que não.

- Então o que é isso?

- É ecstasy, da melhor qualidade... ecstasy puro...

O homem deitou-se novamente ao lado da mulher, cruzando as mãos em torno da nuca. A mulher observou atentamente o frasco contendo o líquido transparente e encarou o amante.

- É ecstasy mesmo?

- Mas é claro que é.. pode tomar, sem medo, eu já tomei...

- Tem o mesmo efeito? – perguntou a mulher ainda indecisa.

- Claro que tem – afirmou o homem sorrindo. – É até melhor, mais rápido, mais eficaz... não confia em mim?

- Claro que confio, mas...

- Mas o quê? Pode tomar, meu amor...

A mulher ficou olhando para o frasco demoradamente.

- Eu não sei...

- Olha, meu amor, confie em mim, eu já disse que tomei e é muito bom...

- Mas...

- Você vai ficar numa muito melhor, pode tomar sem medo, mas bebe só um pouco, só um pouco...

A mulher continuou a olhar para o frasco.

- Vai bebe, bebe...

A mulher encarou o amante mais uma vez.

- Bebe...

O frasco elevou-se nas mãos da mulher e foi até seus lábios. A metade do que o vidro continha desceu por sua garganta. Ela sorriu com regozijo.

- Agora é você... para ficarmos legal – disse a mulher.

O homem recebeu o frasco das mãos delicadas e bebeu um pequeno gole, deixando aquele sobre um dos criados-mudos. Ele bebera a droga sob aquela forma anteriormente, numa quantidade muito reduzida, desconhecendo seus reais efeitos. Sorridente, o homem agarrou a loira vigorosamente e eles voltaram aos beijos e carícias. A mulher gemia aos afagos mais profundos quando manifestou uma sensação de tontura. Em seguida, ela levou a mão ao peito, dizendo sentir um mal-estar. O homem surpreendeu-se. A mulher afastou-se dele e de sua boca escapou um gemido. O corpo em formosura retesou-se, caindo sobre a cama em espasmos. Ela balbuciou alguma coisa ininteligível. O homem ficou apreensivo com o que estava acontecendo. O corpo da mulher moveu-se numa torção patética e ficou inerte. Assustado, o homem avançou sobre ela. Seus olhos estavam arregalados. A boca ficou semi-aberta e a palidez cadavérica que surgiu em seu rosto, alastrava-se por todo o corpo. O homem procurou a pulsação e não havia nenhuma. Tentou ouvir os batimentos cardíacos. O coração fenecera.

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