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"A literatura insinua e coloca questões muito mais do que as responde ou resolve."

-------------------Milton Hatoum, escritor brasileiro



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sexta-feira, 9 de julho de 2010

CHEIRO DE CEBOLA (II)

D’Arco desceu do carro. Ele segurava um cassetete. A casa diante dele era pequena e muito velha. Não havia portão ou muro e a fachada debruçava-se sobre a calçada da rua. Seu olhar perscrutador confirmou o endereço e ele apertou a campainha desbotada pelas intempéries. Não demorou e a porta de pintura desbotada foi entreaberta. O rosto carrancudo de um homem apareceu.

- O que quer?

- Sou o detetive Jules D’Arco, da Polícia de Poços de Caldas... procuro por uma jovem chamada Carolina... ela mora aqui?

- Polícia?! O que quer com ela? – indagou o homem demonstrando seu desagrado.

- O senhor é o pai de Carolina?

- O que ela fez? Tem intimação?

- Eu preciso falar com ela.

Súbito, o homem fechou bruscamente a porta. O som do choque das madeiras assustou-o. A porta teve seu curso interrompido quando se chocou com o cassetete colocado pelo detetive, um segundo antes do pai de Carolina fechá-la. Ele ficou atônito por um instante, tempo suficiente para que o detetive empurrasse a porta para trás e invadisse a sala. O pai de Carolina caiu no chão e encolheu-se, como um animal acuado.

- Não, não me machuque, por favor!

Empunhando o cassetete e demonstrando disposição para luta, o detetive se aproximou do homem. Naquele momento foi que percebeu que ele era um velho.

- Vou machucá-lo – disse D’Arco mentindo. – A não ser que seja preciso... quem é você?

- Sou, sou o pai de Carolina, mas não me machuque...

D’Arco estendeu-lhe a mão, ajudando-o a levantar-se. Colocou-o sentado numa poltrona de tecido rasgado e seboso.

- Onde está Carolina!? Diga logo!

- Ela, ela está no quarto, mas não machuque a minha filha... ela, ela é tudo que eu tenho...

O detetive volveu a cabeça, olhando para o corredor.

- Qual deles?!

- A porta da esquerda...

D’Arco executou um passo e o velho repetiu:

- Por favor, não faça mal a minha filha... eu só tenho ela.

O detetive fitou-o nos olhos.

- Não tenha medo. Não sou o tipo de pessoa que o senhor está pensando.

D’Arco caminhou depressa pelo corredor. Bateu energicamente na porta que logo se abriu. Apareceu uma jovem de cabelos negros e ondulados, presos no alto da cabeça. Seu rosto era belo e os olhos eram claros. Assustada e com os olhos injetados, ela tentou fechar a porta, sendo impedida pelo detetive.

- Não dificulte as coisas para mim, como seu pai! Eu quero falar com você!

- Quem é você?! Eu não fiz nada! Não tenho nada para falar!!

- Sou da polícia e sei o que você fez!

A janela do quarto estava aberta. Carolina olhou para ela e volveu o corpo numa velocidade que não surpreendeu aquele que a procurava. Ele avançou sobre ela e a segurou pelos braços.

- Não tente fugir!

- Me solta! Me larga!

- Não dê mais desgosto a seu pai do que você já deu!

Carolina não resistiu à força com a qual se deparou. Parou de resistir. Caiu em prantos.

- Não, por favor, não...

- Calma, calma, Carolina... – disse D’Arco percebendo que o quarto recendia a cheiro de cebola.

Ele a ajudou a sentar-se na cama. A jovem mulher chorava muito.

- Eu não fiz nada, nada – disse meneando a cabeça.

- Fez sim... querendo ou não... você matou um homem.

Ela ergueu a cabeça e encarou o policial que a acusava.

- Eu não sei do que o senhor está falando!

- Sabe sim.

- Não, não sei, não tem como me acusar!

- Tenho e vou explicar... fique quieta e não tente fugir...

Carolina fitou-o nos olhos e encolheu-se na cadeira.

- Confirma que trabalha na casa de Heitor e Eva Zenóbio da Silva?

Ela assentiu.

- O filho do casal, Pedro, foi morto ontem à noite, com várias facadas nas costas... verificamos e a casa não apresenta indícios de arrombamento, logo Pedro foi morto por alguém que tinha relacionamento com a família, que tinha facilidade em penetrar na casa, que tinha fácil acesso às dependências internas da residência... quem o matou não tinha o propósito de roubar, visto que nenhum objeto ou dinheiro foi levado do quarto de Pedro ou da casa...

O detetive olhou para o lóbulo da orelha de Carolina.

- E não tenho dúvidas que foi você quem o matou e tenho como provar o que estou afirmando.

- Não, não é verdade, isso não é verdade...

- Então diga: onde perdeu o outro brinco de pérola que está usando?

Carolina engoliu em seco, no mesmo instante que empalideceu.

- Eu, eu...

- Sabe explicar porque o cadáver de Pedro cheira a cebola?... porque os lençóis da cama dele também têm cheiro de cebola?... porque suas roupas, que estão no armário do quarto de empregada na casa dos Zenóbio, também têm cheiro de cebola?

- Eu cozinho muito na casa dos meus patrões... faço muitas comidas com cebola... é isso...

- A faca que encontramos nas costas de Pedro pertence a um conjunto de talheres da casa... com ela você preparava a comida, cortava legumes, carne, cebolas... e pelo fato de usar cebola em abundância na confecção da comida, o odor penetrava nas tuas roupas... e você sabe porque Pedro gostava do cheiro de cebola, porque o cheiro lhe lembrava seu corpo, lembrava os abusos que cometia com você...

Carolina abaixou a cabeça e continuou a chorar.

- Precisava do emprego, para sustentar seu pai, um velho doente... era obrigada a fazer o que Pedro queria... e era abusava por ele... abusada na cama do filho dos patrões... você sofria muito, sentia-se humilhada... e queria vingar-se, vingar-se do homem que a humilhava, que se aproveitava da situação desvantajosa que você vive... porque sabia que você estava refém de uma situação... a faca serviu para sua vingança, para acabar com o sofrimento que não mais suportava...

Ela ergueu a cabeça e encarou o detetive que se mantinha de pé.

- Diga a verdade: matou Pedro Zenóbio da Silva porque o odiava, porque ele abusava sexualmente de você?

Lágrimas e mais lágrimas escorriam pelo rosto de Carolina. Os olhos marejados não escondiam seu ódio.

- Matei, matei sim, matei aquele cachorro, filho da p...!

Ela levantou e com o dedo em riste apontou para a parede, como se indicasse a pessoa de Pedro.

- Aquele desgraçado abusava de mim! Me humilhava, que me chamava de vagabunda!

Ofegante e nervosa, ela fechou os punhos e batê-los na região das coxas.

- E eu não sou vagabunda! Eu nunca fui! Sou moça direita, eu aceitei tudo porque precisava, porque não tenho mãe nem irmãos para me defender, apenas meu pai, e ele é um homem velho, doente, muito doente...

- Eu percebi – retrucou o detetive demonstrando empatia. – Mas porque não denunciou Pedro?

- Olha para mim, olha para essa casa onde moro, para meu pai... somos pobres e eu precisava do emprego, da miséria que eles me pagam...

Ela secava as lágrimas que continuavam a escorrer.

- E eu fiz porque o maldito não parava, eu pedia para parar, mas ele não parava... eu fiz para ele parar... para me vingar daquele filho da p...!

D’Arco ficou calado, observando-a por um instante.

- Seu pai sabe o que você fez?

Ele balançou a cabeça em negativa.

- Tem que explicar a ele tudo o que aconteceu...

- E depois? – indagou Carolina.

- Nós vamos para a delegacia, vamos conversar com o delegado... você vai explicar para ele o que aconteceu na casa dos Zenóbio na noite passada.

A dupla movimentou-se em direção à porta. Carolina estacou. D’Arco encarou sua fisionomia contraída. Ela uniu os punhos finos e ergueu-os em direção a ele.

- Não vai me algemar?

Ele fitou-a nos olhos.

- Acredito que não seja necessário... a sua natureza e o peso da culpa que carrega na consciência já são suficientes para impedi-la de fugir.

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