Começou a estalar dos primeiros pingos de chuva nas calçadas e telhados. Minutos depois desabou uma intensa precipitação. Esbranquiçada e ruidosa ao chocar-se com o solo, ela espumava e espalhava-se, transformando-se numa torrente fugaz, a levar todos os resíduos da população que imundava a cidade.
Como todas as noites, exceto na noite de domingo, estava Eugênio Duarte sentado na portaria do Hotel Tejucano. O Duca, como era conhecido desde a adolescência, era um homem rechonchudo e de baixa estatura. Seu rosto tinha contato com uma lâmina de barbear somente quando tinha algum encontro amoroso em vista de acontecer. Vivia constantemente incomodado pela sudorese, fato que o levava a limpar o cenho e os braços com um lenço encardido. Acostumado com o odor desagradável que exalava, tinha a preocupação de ministrar jatos de perfume sobre o corpo, várias vezes por dia, na tentativa de lenificar seu sofrimento pessoal.
Os dias chuvosos tinham um efeito exacerbador sobre o temperamento do desorganizado gerente. A causa de tal exasperação recaía sobre a detestável atividade de impedir o gotejamento nos dois pavimentos do prédio mal conservado. Naquela noite, excepcionalmente, ele estava sozinho. O lacaio que comumente sentava-se num banco de madeira, à frente do balcão da portaria, estava ausente. Sua genitora falecera e ele encontrava-se presente no velório. O corpulento segurança pessoal, além de exercer seu abominável ofício, ainda auxiliava o gerente na atividade que lhe era mais desprezível. Ao lembrar do fato que justificava a falta do assecla, ele ficou mais irritado. Teria que realizar a penosa servidão de afastar móveis e carregar baldes e latas para todos os cantos do hotel, impedindo o corriqueiro estrago causado pelo gotejamento. E para aquele sacrifício, teria apenas a ajuda de uma das arrumadeiras de plantão.
Duca gritou pela arrumadeira que surgiu dos fundos do hotel. Irritadiço, ele determinou-lhe que apanhasse o material necessário e que subisse o quanto antes para ajudá-lo. Calada obedeceu, desaparecendo na escuridão do corredor pelo qual veio até a portaria. Em seguida, ele subiu para o segundo pavimento, locomovendo com inequívoca dificuldade todo o excesso de peso que tinha incorporado ao longo de sua juventude. Em decorrência do gotejamento, percorria todo o hotel, quarto por quarto, dependência por dependência, na procura das antigas e novas goteiras.
Os passos do gerente, que ruidosos elevavam-se do assoalho de madeira, denunciavam sua posição em qualquer lugar que estivesse no hotel. Quando se deslocava pelo corredor do segundo pavimento, uma porta foi aberta, surgindo o homem que solicitou um quarto minutos antes.
- Ei! Preciso de sua ajuda – disse o homem visivelmente nervoso.
O ventrudo gerente encarou-o com surpresa. Não obstante, o movimento febril de clientes e garotas de programa que entravam e saíam do hotel, Duca lembrou-se de sua chegada e da mulher curvilínea que o acompanhava.
- O que você quer?
- Estou com um problema e preciso que me ajude...
O gerente fitou-o com desprezo.
- Eu pago bem – disse o homem.
Duca perscrutou sua aparência, do alto da cabeça aos sapatos de borracha que usava.
- O que precisa?
O homem olhou para os lados e fez um aceno de cabeça para ele, para que entrasse no quarto. O corpo arredondado do gerente seguiu-o, passando pelo umbral da porta. Seus olhos esbugalhados depararam-se com um ambiente ainda em penumbras. Ambos caminharam até próximo da cama.
- O que houve com a garota?
- Exatamente eu não sei... – disse o homem nervosamente. – Ela estava bem, sorrindo... nós bebemos um pouco e depois eu não sei o que aconteceu, ela passou mal e desmaiou...
Duca excitou-se com a nudez da mulher. Seus olhos maliciosos contemplaram a púbis e os seios rijos. Devagar, ele sentou-se na cama e apalpou-lhe o pescoço. O corpo estava pálido e frio. O gerente volveu a cabeça e encarou o homem.
- Cara, essa garota tá morta – disse Duca com naturalidade.
O homem engoliu em seco. Ele já sabia do óbito, mas a confirmação por outra pessoa conscientizou-o da tragédia que aconteceu.
- Essa não – murmurou o amante, meneando a cabeça.
- O que aconteceu? Ela tomou alguma coisa, algum remédio e depois bebeu?
- Eu não sei, eu não sei – retrucou o homem apreensivo. – Tentei animá-la, mas ela não recobrou os sentidos...
- Ela tá morta... e isso é problema... nós temos que tirar esse corpo daqui e desaparecer com ele – disse o gerente levantando-se da cama. – Infelizmente, essas coisas acontecem, todo dia morrem garotas.
- Eu, eu preciso da tua ajuda, eu pago bem – insistiu o homem.
Sinistramente, Duca encarou-o e executando movimentos mecânicos, acendeu um cigarro. Após tragar com intensidade, olhou mais uma vez para o cadáver da mulher, saciando seu encantamento.
- Essas garotas vivem “malhando” em academia e tomam “bombas” para ficar com esse corpo... depois saem na noite e enchem a cara de trago, depois dá nisso...
O gerente fitou-o nos olhos, zombeteiro. Era visível a tensão que dominava o assassino.
- E você quer dar fim no corpo?
Sem hesitar no ato de livrar-se do cadáver, o homem disse:
- Sim, eu não vou conseguir fazer isso sozinho... se usar o meu carro alguém pode ver...
- E você não quer que ninguém saiba o que aconteceu...
- Sim, não quero... eu pago muito bem se me ajudar e manter em segredo esse incidente.
O olhar ganancioso do gerente perscrutou o cadáver e as roupas da mulher, que estavam caídas pelo quarto.
- Esse serviço não vai lhe sair barato...
No mesmo instante, do bolso da calça do homem, surgiu um maço de cédulas que foi para as mãos de Duca. Seus olhos arregalaram-se com o suborno que recebia.
- Isso é só uma parcela – disse o homem, cujo cenho porejava. – Depois de sumir com o corpo nós acertamos o resto.
O maço foi aberto e as notas contadas rapidamente. Duca sorriu ao constatar o valor que lhe aquecia as mãos. Seu apego excessivo ao vil metal expressava-se no cariz alegre que manifestou.
- Pode deixar que eu vou resolver a situação... doutor?
- Sem nomes, é melhor.
- Tudo bem, o senhor é quem manda... fique aqui até eu voltar, não saia daqui, eu volto logo.
A porta do quarto fechou-se atrás do gerente que sorria. Ele caminhou pelo corredor recontando as cédulas do maço. Era um bom dinheiro e significava apenas um sinal para a execução de seus serviços. Certamente conseguiria muito mais do que tinha nas mãos gordachudas. Depois seria fácil extorquir dinheiro do homem que reconheceu. Duca desceu as escadas e foi até seu pequeno escritório, que se localizava no fim do corredor da portaria do hotel. Sentando-se atrás da mesa carcomida, apanhou o telefone e discou um número. Continuava a sorrir, pela satisfação de poder lucrar muito mais do que recebia da garotas de programas que explorava em sua espelunca. O telefone tocou do outro lado. Nada ocorreu. Tocou mais uma vez. Nada. A demora no atendimento começou a irritá-lo. Ele telefonava para Fernando Luiz Lopes, o Taco, perigoso traficante que dividia o poder da boca-de-fumo das Águas Férreas com Mazinho. Devido a dívidas não saldadas, Duca acabou tornando-se mais um dos asseclas do traficante.
- Alô, Taco?
- Quem tá falando?
- É o Duca, patrão...
- E aí, o que foi?
- Aconteceu uma coisa aqui no hotel e eu acho que você gostaria de saber...
- Sem rodeios, o que houve?
- Um meganha subiu com uma garota prum programa e ela morreu.
Taco ficou pensativo por um instante. Ele era um homem cobiçoso cuja mente priorizava o lucro.
- Quem é o sujeito?
- Eu não sei o nome do sujeito, mas eu o conheço, sei que é da polícia, ele tá bem nervoso e pediu a minha ajuda.
- O que ele quer?
- Pediu para desaparecer com o presunto.
- Como a garota morreu?
- Não sei direito, o corpo tá inteiro, não vi sangue nenhum, parece que eles tavam trepando quando ela apagou de repente...
- A garota é gente conhecida? – indagou Taco acendendo um cigarro.
- Ela é muito bonita, eu já vi essa garota em algum lugar, mas não lembro aonde... o meganha tá muito nervoso, aí eu pensei, que o patrão quisesse saber...
O traficante sorriu.
- Segura o meganha que eu tô chegando aí.
As chuvas intermitentes naquele período intensificaram-se, por três dias consecutivos, elevando o nível dos rios. Ocorreram inundações e as fortes torrentes arrastaram e destruíram imóveis e objetos conquistados, com dificuldade, por várias pessoas que residiam às margens do Córrego do Lenheiro. Estes cidadãos ficaram desabrigados, desequilibrados no íntimo, por implacável negligência do governo municipal. A função pública de implementar a limpeza urbana e a drenagem de córregos e riachos fora desprezada há muito tempo atrás. Transcorreram sete dias, até o término das chuvas. Do fundo das águas escuras do Rio das Mortes, expressivo curso d’água na região das Vertentes, emergiu o cadáver da mulher. Devido à maceração, sua identificação só foi possível pela presença de um anel, que permaneceu preso ao corpo. Estranhamente, nele constava o nome da vítima. A mulher chamava-se Suzana e era a filha mais nova do rico e influente prefeito da cidade de São João del Rei.
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