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"A literatura insinua e coloca questões muito mais do que as responde ou resolve."

-------------------Milton Hatoum, escritor brasileiro



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quarta-feira, 7 de julho de 2010

CHEIRO DE CEBOLA (I)

A penumbra cobria-os de uma tonalidade acinzentada. Ele porejava sobre ela. Suas mãos apertavam, possuíam o corpo que se permitia ultrajar. Ele expressava o regozijo. Ela, uma lividez quase cadavérica. A jovem mulher não agia, não reagia. O premir pelo corpo rejeitado arremetia sua essência ao abandono físico, a ausência mental. O desmando despertava-lhe um único sentimento. Noites... várias noites...

O sol tenro do fim da manhã penetrava pelos vidros quadriculados da janela de madeira. O quarto se localizava no segundo pavimento da casa e estava revirado, como se um vendaval tivesse invadido a janela e escapado pela porta aberta. O corpo foi encontrado pelos pais que viajavam e chegaram pela manhã. A cama de casal, no quarto de um jovem solteiro de vinte e seis anos de idade, chamou-lhe a atenção. Aproximou-se, sem esbarrar no perito que fotografava a cena do crime. Outro coletava impressões digitais e mais outro levantava distâncias. Passou a verificar o cadáver seminu, de bruços sobre a cama. O homem assassinado morava com os pais. Tinha porte atlético atestado pelas medalhas penduradas numa das paredes do quarto. Usava apenas as calças do pijama e provavelmente foi morto à noite, atacado enquanto dormia. Embora a bagunça exagerada no ambiente denotasse a ocorrência de luta corporal, a posição do corpo e a faca de lâmina longa, enterrada no torso da vítima, causaram uma estranha sensação no íntimo do detetive. Havia aproximadamente quatorze perfurações não perfeitamente visíveis nas costas do jovem, indicando que o assassino o ferira não apenas para neutralizá-lo, mas que ele fora eliminado por vingança. O detetive caminhou pelo quarto. Uma flâmula do Atlético Mineiro, pendurada na parede, arrancou-lhe um sorriso. Seu olhar percorreu gavetas abertas, roupas reviradas, objetos caídos, tapete, paredes, cômoda, armário, janela e porta. Não encontrou drogas, remédios ou cigarros. Novamente a sensação de estranheza.

- Há quanto tempo ele foi morto? – indagou Jules D’Arco ao perito que coordenava os trabalhos de levantamento.

- Aproximadamente nove ou dez horas.

- Quer dizer que foi morto por volta de uma ou duas horas da madrugada?

- Acredito que sim, talvez um pouco antes.

- Indícios de arrombamento?

- Nada, nem aqui e nem lá embaixo – respondeu um dos peritos.

- Algum objeto furtado?

- Apesar da bagunça e pelo que verificamos, parece que nada foi roubado.

- Perguntaram aos pais?

- Eles verificaram e disseram que parece que nada desapareceu.

D’Arco estava próximo da porta do quarto. Retornou para junto do corpo, para examiná-lo mais uma vez. Junto à cama, agachou-se e analisou o rosto da vítima. Ele não lhe era estranho. Talvez o tivesse encontrado na “esquina dos esquisitos”, ou seja, no cruzamento da Rua Barros Cobra com Santa Catarina. Aquele cruzamento era assim chamado pelo detetive porque sempre que por ali passava se deparava com algum indivíduo de aparência incomum ou sinistra, vestido de cowboy, pizzaiolo, hippie, punk ou emo.

O senso de observação e o olfato fizeram D’Arco se aproximar do corpo estendido sobre os lençóis empapados de sangue. Ele percebeu um odor acentuado de cebola. Naquele instante, notou uma pequena pérola branca, caída atrás do criado-mudo. Levantou-se e perguntou:

- É impressão minha, mas perceberam cheiro de cebola no ar?

- Percebemos. O corpo e os lençóis também estão cheirando.

- Ok, obrigado... ah, vi uma pérola caída atrás do criado-mudo, recolham ela como prova.

Antes de sair do quarto, ele olhou atentamente para a faca cravada nas costas da vítima. Era uma faca comum, usada como utensílio de cozinha. Enquanto caminhava para o andar de baixo, sua mente articulava tudo aquilo que ele viu e “sentiu” na cena do crime.

Um jovem solteiro morto à noite, no próprio quarto, durante a ausência dos pais... uma faca de cozinha, como arma do crime, que foi deixada no corpo da vítima... a cena do crime revirada, indicando possível luta corporal travada entre a vítima e o assassino... nenhum objeto roubado... e um forte odor de cebola no recinto...

D’Arco desceu as escadas e foi para a cozinha. Passou a verificar gavetas e armários. Encontrou um conjunto de talheres cujos cabos eram iguais ao da faca usada no crime. Contou quantas unidades e constatou que faltava uma faca, certamente a usada pelo assassino.

A casa não foi arrombada e o assassino usou uma faca da própria cozinha para cometer o crime...

Ele percorreu o ambiente. Aproximou-se de uma das janelas que tinham vista para os fundos. Avistou um quarto, isolado da casa. Saiu pela porta da cozinha e caminhou até o cômodo. Girou a maçaneta da porta e entrou. Deu alguns passos e parou. Balançou a cabeça.

Cheiro de cebola... cheiro de cebola...

O odor era mais intenso do que no quarto onde o jovem foi morto. Olhou ao redor. O cômodo era pequeno e tinha apenas uma cama, armário, cadeira e uma mesa de madeira. Contíguo, existia um estreito banheiro. As paredes não tinham quadros ou estampas. D’Arco abriu o armário. Encontrou duas calças femininas, algumas blusas e vestidos. Todos com tecido desgastado e de baixa qualidade. Na parte de baixo, havia dois pares de sapatos velhos e um par de tênis deformado e de sola gasta. Não encontrou jóias ou acessórios femininos. Notou novamente o odor de cebola. Retirou um dos vestidos do armário e o aproximou do rosto. O mesmo odor. Fechou o armário e retornou para a casa.

D’Arco encontrou os pais da vítima na sala. A mãe chorava intensamente, abraçada ao pai.

- Senhor...? – indagou D’Arco.

- Heitor...

- Sei que o momento é difícil, mas preciso fazer algumas perguntas...

- O delegado já fez um monte de perguntas – murmurou a mãe, erguendo a cabeça e expondo os olhos marejados.

- Eu sei, eu sei, mas farei apenas mais algumas perguntas... e procurarei ser breve.

O casal assentiu.

- Seu filho tinha namorada?

- Pedro namorava várias garotas... ele não tinha namorada fixa.

- Tinha inimigos declarados ou alguém que, sabidamente, não gostasse dele?

- Não, não sabemos se ele tinha inimigos.

- Embora eu tenha visto medalhas na parede do quarto de Pedro e acredito que ele fosse um desportista...

- Ele praticava corrida de aventura... uma modalidade esportiva que demanda muita resistência...

- Eu conheço esse tipo de esporte.

- Pedro era um atleta...

- Mas, senhor Heitor, mesmo bons atletas podem consumir algum tipo de droga para aumentar sua performance... ainda mais se participam de provas que possuem exercício intensos e prolongados... ele consumia algum tipo de droga ou remédio?

- Não.

- Estava envolvido com pessoas viciadas?

- Não.

- Bebia? Fumava?

- Não... eu já disse que ele era um atleta e dos bons.

- Desculpe... por acaso Pedro se envolveu, nos últimos meses, em alguma briga?

- Não é do nosso conhecimento.

D’Arco coçou a nuca e olhou ao redor.

- A casa de vocês é grande, bonita e deve dar trabalho para limpar... vocês tem jardineiro, faxineira?

- Temos apenas uma empregada.

- Qual o nome dela?

- Carolina.

- Ela trabalha diariamente?

- Sim.

- É jovem, bonita?

- Tem dezoito anos de idade – disse a mãe. – Trabalha conosco há pouco mais de dois anos.

- Por que essas perguntas? – indagou a mãe de Pedro.

- Numa investigação policial precisamos investigar tudo que possa nos levar ao assassino... às vezes, um mero detalhe irrelevante para uma pessoa comum, nos é fundamental para descobrir o autor de um crime.

- Entendemos detetive, pode perguntar o que quiser – disse o pai.

- Quando eu olhava a casa pude ver um quartinho nos fundos... a empregada mora aqui?

- Não, ela somente usa o quarto para se trocar.

- Ela gosta de trabalhar para vocês?

- Parece que sim.

- É uma garota pobre, precisa do emprego?

- Sim, ela é muito pobre.

- Pedro costumava permanecer em casa, sozinho, com Carolina?

- Sim, algumas vezes viajávamos e ela vinha fazer a limpeza diária na nossa ausência e depois ia embora.

- Carolina falou alguma coisa a respeito de Pedro, alguma vez? Reclamou dele em algum sentido?

O pai de Pedro olhou para a mulher e ela respondeu, murmurando:

- Não, não lembro disso... mas eu a achava uma moça triste... talvez por sua família passar por dificuldades.

- Parece que ela era de confiança, estou certo?

- Sim, era de nossa inteira confiança.

- Por acaso tinha as chaves da casa?

- Não, embora fosse de confiança e como Pedro também permanecia em casa quando viajávamos, achamos que não havia necessidade de dar-lhe as chaves de casa, até por questão de segurança.

- Sabe onde ela mora?

- Rua Francisco Resende, 44, no bairro Country Club I.

- Certo... quando fui à cozinha percebi um cheiro... um cheiro acentuado de cebola...

Naquele instante, o pai que respondia às perguntas foi interrompido pela esposa.

- Carolina... ela fazia a comida da casa... fazia a comida com muita cebola... nós detestávamos, sempre pedimos que diminuísse a quantidade de cebola, mas Pedro adorava, ele adorava sentir o cheiro de cebola na cozinha, o gosto na comida... eu não aprovava esse jeito dela, mas aceitava por ver meu filho feliz...

D’Arco fez um instante de silêncio enquanto encarava o casal e disse, levantando-se:

- Acho que por enquanto é suficiente.

- Detetive... a polícia vai descobrir que matou meu filho? – perguntou a mãe.

- Acho que estou mais perto do assassino do que a senhora imagina.

- Não entendo... – disse ela.

- O senhor já sabe quem matou Pedro?! – indagou o pai apreensivo.

- Ainda preciso investigar algumas coisas... em breve terão notícias minhas, até logo.

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