Mazinho fugia em desabalada carreira. Numa brusca mudança de direção, penetrou num beco longo e estreito. A penumbra cobria a ruela. O chão irregular era um punhado de pedras que se espalhava por uma superfície barrenta. Da camada viscosa e esverdeada que cobria as paredes do beco emanava uma umidade gélida e fedorenta. Chegando ao fim do beco, o traficante parou de repente. Ofegante, constatou que findavam as moradias das Águas Férreas. Furioso, olhou para trás e depois para frente. Num piscar de olhos percebeu que foi surpreendido pelo destino, que não era por ali que desejava fugir para as alturas da Serra do Lenheiro. O descampado que estava a sua frente e que o separava de seu objetivo não era extenso, mas não permitiria avançar para as alturas da serra sem expor-se, em demasia, a seus perseguidores. O cenho a porejar, ele volveu a cabeça e olhou para o assecla que o defendia, empregando uma metralhadora com toda a intensidade que lhe era possível. Em seguida, olhou novamente para a serra. A polícia não ousaria chegar lá, por dois motivos. O acesso era relativamente difícil, dependendo de para onde se ia, fato constatado até mesmo pelos montanhistas da cidade. Aquele que ocupasse as referidas alturas teria domínio de vistas e fogos sobre os caminhos que acessavam a serra. Olhou para o lado direito e divisou uma moradia isolada.
O barraco era uma pequena obra artística à mendicidade. Isolado no campo esverdeado, exibia-se como um dos ícones perpetuadores das mazelas imemoriais da pobreza. Um grande aglomerado de tábuas apodrecidas e chapas metálicas enferrujadas constituía suas finas paredes. O telhado era outro aglomerado, também de tábuas, coberto por pedaços de lona puída, que tentavam inutilmente impedir a chuva que permeava toda a moradia. As aberturas reduziam-se a uma porta e a três janelas, sendo duas frontais e uma localizada no fundo. Internamente existia um quarto e uma cozinha. O piso era de tábuas velhas, como as que compunham as paredes. Aquelas cobriam o solo argiloso, na tentativa ineficaz de evitar a exposição de pés descalços à umidade constante. Não existiam móveis, mas sim caixas e objetos recolhidos no lixo, que supostamente atendiam as necessidades primárias dos que ali viviam.
Novos disparos. Um grito arrastou para o purgatório aquele que protegia a vida de seu patrão. Sozinho, Mazinho viu-se num impasse. Havia dois policiais obstinados em seu encalço. Acuado, ele precisava fugir, esconder-se. Necessitava decidir e deveria ser rápido. O som do tiroteio entre policiais e traficantes reduzia-se, indicando que o embate lá embaixo logo terminaria. A operação policial seria coroada de êxito com a prisão efetiva do fugitivo traficante. Num movimento fugente, ele correu em direção ao barraco, invadindo-o. Sua ação, apesar de rápida, foi percebida pelos policiais que o perseguiam.
Era incessante o estrondear dos trovões. Relâmpagos rutilavam, iluminando as sombras mais obscuras. Os detetives Macário e Castilho corriam, mantendo a silhueta baixa. Armas em punho e com as costas premidas contra as paredes, eles estacaram no fim do beco. O desconforto que a umidade que efluía do chão e do lodo que cobria quase tudo em torno deles foi percebida instantaneamente. Ofegantes e transpirando em abundância, devido ao esforço físico prolongado no combate, os dois policiais entreolharam-se.
- O filho da mãe correu para aquele barraco! – disse Castilho empunhando uma metralhadora. – E agora?!
Os olhos escuros do outro detetive perscrutaram o lugar. Eduardo Macário era um homem bem-apessoado, de compleição atlética. Dinâmico e intrépido, ele respondeu:
- Acredito que ele está sozinho... vamos abordar o barraco e checar se há alguém...
- Ok, vamos lá.
A dupla avançou, protegendo-se atrás de todo tipo de cobertura que encontrava. Segundos depois, parou a alguns metros da residência. Macário ficou atrás de uma árvore e Castilho escondeu-se por trás de um galão d’água que servia de cisterna.
- Mazinho! Mazinho! – gritou Castilho. – Você está preso! Não adianta mais fugir! Jogue suas armas para fora e saia com as mãos na cabeça... agora!
Não houve nenhuma resposta ativa. Uma constante brisa calorosa fazia-os transpirar cada vez mais. Ouvia-se o farfalhar das copas das árvores e a fuga inquietante de pássaros e animais, que pressentiam a tempestade onímoda que raiava.
- Mazinho! Jogue suas armas para fora e saia agora! – repetiu o policial.
Nada, nenhuma resposta à ordem de rendição.
- Ele deve estar sozinho porque não apareceu com nenhum refém... – observou Castilho, apontando sua metralhadora para uma das janelas do barraco.
Macário assentiu com um aceno de cabeça.
- Mazinho, renda-se! – gritou Macário. – Você não tem como escapar, saia com as mãos na cabeça!
Nada. Apenas o ressoar dos trovões e o luzir dos relâmpagos. Castilho encarou seu colega.
- Vamos invadir – ordenou Macário.
Incontinenti, os dois avançaram correndo. Castilho parou a alguns metros da porta do barraco, atrás do tronco de uma árvore. Protegido pela metralhadora do colega, Macário abordou a moradia pela lateral. Empunhando uma pistola e com as costas junto à parede, ele avançou, devagar, posicionando-se junto à porta. Fitou Castilho, executando um vivo aceno de cabeça. Em seguida, chutou a porta com força, arremessando-a para trás. O movimento da abertura em torno de seu eixo foi subitamente interrompido, deixando-a entreaberta.
Momentos de tensão.
Macário transpirava profusamente. O perigo estava à espreita. Premendo as costas contra a porta, numa inarredável determinação, ele apontou a pistola para o interior do barraco. O lugar era um misto de sombras e claridade. Parecia-lhe que as trevas que encobriram a cidade de São João del Rei ali estavam em colusão. A mão que empunhava a pistola vasculhou veloz, orientada pelo olhar vigilante, o lugar onde estava escondido o traficante.
Nada.
Mais uma vez o cano da pistola vasculhou o lugar. Algo se moveu!
Repentinamente, prorrompeu o alarido de crianças chorando. Macário concentrou sua visão e percebeu, a alguns passos, uma mulher esquálida agarrada a seus seis filhos pequenos. Todos estavam acomodados no fundo do quarto. O olfato do detetive logo se sensibilizou com o odor de urina e madeira umedecida que catingava do interior do barraco. A voz rouca e suplicante da mulher destacou-se na gritaria infantil. Temerosa, ela passou a clamar pela misericórdia daquele que tinha a morte nas mãos. Não desviando a arma que empunhava, ele gritou:
- Onde está o Mazinho?! Onde está o Mazinho?!
Naquele instante, desabou uma inclemente e fria precipitação.
O ruído de gritos de seres indefesos, chorando, suplicando piedade, impedia qualquer conversação.
- Saiam daí agora! Saiam! Rápido! Saiam! – ordenou Macário.
A intensa chuva engolfou a todos. A tempestade que se deflagrou era assinalada por terríveis trovões e fulgurantes relâmpagos. Torrentes pluviais passaram a arrastar tudo que encontravam em seu caminho. A natureza estava em desatino.
A primeira criança, muito magra, saiu correndo. Ela chorava muito. No momento que passou pela porta foi atacada pela chuva. Segui-se mais uma. A terceira quando saía, tropeçou no pé do detetive. Ele distraiu-se por um segundo.
Erro.
Um único momento de distração para um policial pode lhe trazer conseqüências fatais.
No desvão à retaguarda da porta de madeira, insidiosamente surgiu a figura de Mazinho. O som explosivo e seco repercutiu até o fundo do cérebro do detetive. O poder de impacto da munição arremessou-o violentamente para fora do barraco, fazendo-o cair de costas no chão enlameado. A besta selvagem proferiu a sentença de morte do homem da lei. Macário ficou zonzo pela dor repentina que invadiu seu corpo. A forte chuva embaciava sua visão. Os reflexos ficaram lentos. A mente ficou confusa. Qualquer movimento era um ato difícil e desconfortável de executar. O tiro que o atingiu engendrou uma falta de energia. Ele queria levantar, mas faltava-lhe vontade.
Agindo rápido, Mazinho aproveitou o êxito de seu traiçoeiro ataque, e avançou sobre o detetive. Cego pelo ódio que o dominava, o traficante passou a atirar contra o policial. Mas negligentemente expôs a silhueta ao alcance da arma de Castilho. Movido pela adrenalina que irrigava suas entranhas, Castilho atirou contra ele, esvaziando o carregador de sua metralhadora. Sulcos e esguichos de sangue surgiram no tórax alvejado, fazendo o corpo perder a rigidez. A boca semi-aberta de Mazinho emitiu um grunhido. Torso em si, ele tombou para trás, caindo no solo lamacento.
Tudo aconteceu rápido demais, muito mais rápido do que se pudesse imaginar. Quando a mente de Castilho compreendeu o que havia ocorrido, descortinava-se à sua frente um quadro desolador. Adiante dele, a poucos metros, estavam caídos, sob a chuva torrencial, os corpos inertes de dois homens. Suas vidas tinham originariamente linhas tão distintas, como a noite e o dia, mas eles estavam ali, próximos como nunca tinham estado até então. Não refeito do momento de estresse, o detetive saiu correndo. Chovia copiosamente e ele afundava os pés nas poças que encontrava pelo caminho. Num movimento enérgico, lançou-se de joelhos na lama pegajosa, parando junto ao amigo.
- Macário?! Macário?! – gritou Castilho, sacudindo-o pelo colete à prova de balas.
Castilho apalpou o corpo do amigo na busca de ferimentos, momento que descobriu em seu ombro uma nódoa avermelhada que se expandia. Sua outra mão tocou a jugular. A pulsação estava alta! Ele estava vivo!
- Macário?! Macário?! – gritou novamente Castilho.
Numa pachorra somente vista depois de uma noite insone, regada a álcool, o detetive moveu a cabeça e abriu os olhos. Em seguida ele tossiu. Mitigado, Castilho sorriu.
- Que susto! Eu pensei que você...
- Não... ainda não...
Ainda que resoluto em seu desejo, a sobrecarga emocional desequilibrou o controle dos movimentos de Mazinho. Ele acertou um único tiro no ombro do policial; depois do primeiro disparo que atingiu o colete à prova de balas. Todos os demais disparos foram imprudentemente desperdiçados pelo traficante.
O pai de Macário foi um policial competente e dedicado ao cumprimento da lei. Presenteou o filho com o colete de origem americana quando este ingressou na força policial. Num infortúnio do destino, foi traiçoeiramente assassinado por um traficante de drogas, quando estava de folga. O fato influenciou decisivamente a vida e o destino do jovem Eduardo, que anos depois ingressou na corporação.
Trovões com sua melodia macabra rumoravam, rompendo o ruído da precipitação intensa. As trevas, difusas e amalgamadas, eram inquietadas pela luminosidade de relâmpagos que não davam trégua. A chuva fria e torrencial encharcava as roupas dos dois policiais. Zonzo e tíbio, pelo forte impacto do projétil disparado pelo traficante, Macário levantou-se, auxiliado pelo amigo.
- Ainda bem que esse vagabundo tem uma péssima pontaria e não me acertou na cabeça...
- Sorte sua – disse Castilho com um leve sorriso. – Vamos, vamos voltar, você precisa ir para o hospital.
Castilho colocou o braço do detetive ferido por cima de seu ombro e passou a ajudá-lo a caminhar. Antes de afastar-se do cadáver do traficante, Macário olhou para Castilho e disse:
- Se não fosse você, eu não estaria vivo nesse momento...
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